terça-feira, 30 de abril de 2013

Entender tudo no jardim



Era eu tão jovem quando aprendi como podia ser bom enfiar uma mão nos cabelos de quem se ama e rodar os dedos devagarinho. Como tu tinhas caracóis, podia brincar de os prender na minha mão, tentando desfazê-los como quem mergulha nas ondas do mar. Amei-te a sério e durante muito tempo.
 
Ali no jardim estavam as nossas sombras e o primeiro tremor da pele. Sei  onde estás no presente mas o que quero de ti está no passado, as minhas visitas a amores anteriores são apenas a lugares dentro de mim, estás ali a sorrir nos meus dezasseis anos, com o teu lenço palestiniano e a tua roupa preta e é aí que te quero, é só aí que ainda te amo. Já não te levo assim comigo a ver a exposição da Clarice.
 
Clarice Lispector roubou todas as minhas palavras para dizer as coisas e por isso quase não vale a pena dizer mais nada. Ainda por cima ela usa a língua com açúcar.
 
Fiquem com este bocadinho: Um modo imprevisto de entender é achar bonito.
 
Há lá melhor modo de entender tudo.
 
~CC~

segunda-feira, 29 de abril de 2013

É bom conversar...



Uma miúda loira com ar impertinente que interrompia as aulas com voz assertiva. Comentávamos que cabia no retrato da jornalista com pinta, já a ensaiar uma carreira na cabeça dela, em que encostaria os políticos à parede ou mostraria as fraquezas dos ídolos da TV. A colega que trabalhava comigo falou-me dela algumas vezes, comentando o seu tom agressivo. Nessa altura eu já lhe tinha descoberto outro rosto porque ela assim o tinha querido, se tinha deixado descobrir. Mas o tempo passa depressa e aquilo era só uma opção, não fazia parte da estrutura do curso dela e fui deixando de a ver. Hoje encontrei-a à porta da escola, o mesmo rosto que mostra sempre dureza, apesar de ser bonita. Cumprimentei-a de longe e ela veio até mais próximo, cruzou-se comigo e disse alto:
 
- Que saudades professora da sua opção!
- Então? Porquê?
- Lá conversávamos...
 
E assim se foi, tão rápido como tinha passado por mim. Tantas foram as vezes que interroguei a pertinência do trabalho feito e se eles tinham efectivamente ganho alguma coisa. Pelos vistos conversaram, não baixinho e com o parceiro do lado, mas alto e uns com os outros...já não é mau.
 
~CC~

domingo, 28 de abril de 2013

Essa tristeza de Domingo


As pessoas deprimem-se, umas com razão, outras sem razão nenhuma. São estados prolongados ou mais ligeiros que exigem todo o coração de quem as ama e às vezes não chega.

Eu e a minha irmã mais velha costumamos de dizer de nós que caímos num caldeirão de motivação à nascença, dada o amor explosivo e ardente que temos pela vida, por viver.

No entanto agora às vezes entristeço, vejo-me sem a força que sempre senti para dar a volta à vida. Entristeço por não conseguir mais coisas, por não poder dar corpo inteiro a todos os sonhos que me habitam e uma parte deles não é só para mim, estão outros lá dentro a quem queria fazer bem.

Mas entristeço quase sempre aos domingos com a minha partida ou com a tua. Entristeço por esse Alentejo fora, mesmo belo que ele anda, atapetado de flores amarelas e roxas.  São os teus abraços que ficam para trás a cada km que ando para a frente, são eles que irão faltar-me no final de cada dia, somados cinco dias da semana.
 
~CC~

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Abril



Ela veio chamada pelos animadores à escola, linda e digna nos seus 90 anos. Enquanto o bisneto lhe punha a mão no ombro, ela tirava da malinha as fotos da sua juventude e uma delas era da mãe dela, uma foto com 120 anos. Eles tinham pedido aos avós que trouxessem fotos antigas para a partir daí explicar o que era um arquivo e qual a função de um arquivo municipal.
 
Disse aos meninos que só tinha ido à escola aos 12 anos e depois teve que voltar para o trabalho no campo, frequentou a escola apenas dois anos, mal aprendeu a ler. Explicou o que se comia naquele tempo ao almoço no campo e ao jantar em casa, histórias que ouvi contar inúmeras vezes por esses lares e centros de dia por onde ando. E de cada vez que os oiço ganho sempre consciência da importância desse Abril de 1974. Penso que perdemos a noção de como viviam as pessoas naquele tempo.
 
Enquanto este pensamento me ocorria ela chegou-se mais para o pé de mim. Confidenciou: sabe naquele tempo era difícil mas agora é pior. Duvidei, e disse-lhe que não me parecia que agora fosse pior, atendendo ao que contara. Ao que ela respondeu: mas sabíamos o que queríamos, o que era bom e o que era mau, agora está tudo muito confuso.
 
Pois é, pois é...o que se consegue saber com 90 anos.
 
~CC~

terça-feira, 23 de abril de 2013

Ainda os livros



Quando nada parecia sobrar da minha infância e nem sabia bem quem era, começaram a chegar os livros do meu pai em caixas toscas de papelão. A colecção RTP, a colecção Brasil e muitos outros desalinhados de colecções, foram uma tábua de salvação. Foram eles a minha verdadeira escola, com eles um mundo mais além, antes e depois de mim.
 
~CC~

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Livros para um país

Foto tirada pelo meu querido cunhado numa escola antiga. 2012, Lagos.

Amanhã festejamos o livro. Com os livros festejamos o que de melhor há em nós.

~CC~



sexta-feira, 19 de abril de 2013

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Aqui aceitam-se homens bonitos


Recado

Meus caros, vocês não se preocupem, aqui no prédio ainda há apartamentos vazios...e como dizia uma ex. aluna minha, não faz nada mal "lavar os olhos".

~CC~

Maravilha, maravilha...


 
Nicolau da Claudina não é mais um rapaz como o descreve Sebastião da Gama no Diário, envelheceu sim, mas os olhos que espreitam entre as rugas têm a mesma luz daquele tempo. Desta vez faltou-nos o Fosco, esse rapaz que lutava contra o seu demónio interior que o levava a perturbar invariavelmente as aulas. Apetecia-me dizer o mesmo que Pedro Afonso* quando canta com a voz linda dos seus oito anos " Maravilha, maravilha...".
 
Conhecer estes rapazes do Diário tem sido um dos maiores privilégios da minha vida. Ainda me tratam por senhora e doutora mas é certo que no fim chega um abraço que me sabe ao mar desta serra.
 
Perguntam vocês, talvez, o que fazemos juntos?! Não deixamos Sebastião morrer porque ele alimenta a nossa esperança nesta profissão de professor e queremos transmitir isso a todos aqueles que connosco se cruzarem.
 
Diria Sebastião com toda a certeza: passei a tarde com os rapazes e que bem me soube.

* Pedro Afonso, filho de José Afonso.

~CC~

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Casas contentores jantares de pão


 
Oito horas num supermercado nos arredores da minha cidade. Nunca lá vou, hoje foi um acaso. Um supermercado cheio de homens, em geral mal vestidos, mal arranjados. Juntando dois mais dois percebo que são homens das obras. A cidade cresce para ali, ainda cresce, mesmo que ninguém venha mais comprar as casas. O que levam eles no cesto? Duas ou três coisas no máximo. Leite, pão e queijo. Cervejas, pão e chouriço. Não há carne ou peixe, não há nada para ser cozinhado. Provavelmente estão deslocados das suas famílias, talvez a viver em contentores casas quartos. Cada um come a sua coisa, juntando a sua solidão à do outro sem, no entanto, a perder. Homens que não aprenderam a cozinhar, homens sem as suas mulheres.
 
Há uma fila enorme em cada uma das duas caixas abertas, cada homem levando apenas duas ou três coisas. Coisas que os confortam sem os alimentar nem consolar. Levam batatas fritas, chocolates e invariavelmente pão, pois apesar do pão estar tão caro é ainda o mais barato. Deixo passar um e outro porque tenho o cesto cheio de coisas e o agradecimento que me fazem é de uma educação sem mácula. Não fazem barulho, não conversam uns com os outros, estão assim calados na fila do supermercado, são a imagem do país com os seus cestos com duas ou três coisas. De repente lembro-me dos homens das obras da minha adolescência e de como tinha tanto medo deles, eram absolutamente intrusivos e ruidosos e comentavam cada mulher que passava. Podiam ser um bocadinho ordinários por deformação profissional mas tinham também uma alegria incorporada que os fazia sentir senhores do mundo. Nesse tempo as obras eram à medida de um país que julgou que quanto mais as fizesse mais se podia tornar grande.
 
~CC~

domingo, 14 de abril de 2013

Ode às odes


Uma ode é uma coisa em que nos maravilhamos com alguma coisa como se nós e ela tivéssemos nascido naquele dia. É uma coisa que é linda e ao mesmo tempo é um bocadinho pirosa.
 
 
Maravilho-me assim às vezes como o Pablo Neruda se encantava com uma cebola. Há alguma coisa que podemos ter visto inúmeras vezes mas aparece-nos com outra luz. Este fim de semana encantei-me assim. Fiz odes a uma terra, a pessoas, a uma ideia de museu, a um modo de fazer arte.
 
 
Diria mesmo que a minha matéria prima celular é feita desses encantamentos e que são eles que me tornam solar, queimam lentamente as minhas sombras.
 
~CC~



sexta-feira, 12 de abril de 2013

Exercício gráfico



Belíssimo monstro
Dolce Vita dois mil e tal
era por ali
Ramal da Lousã
mil novecentos e bocadinhos

vinte anos
nenhum relógio
um vigorosos abanar
ruidosa automotora

O túnel
Tantos túneis
incontáveis beijos parados
com a máquina
desligada

Era eu e não eras tu
eras já tu
era o meu beijo
ainda não era o teu
Ramal da Lousã
dois mil e bocadinhos

Dá-me um bocadinho
de beijo
automotor
és tu.

~CC~





quarta-feira, 10 de abril de 2013

Abrigo



Ontem um homem gritava tão alto na minha rua que as janelas se encheram de gente. Era uma hora tranquila, cerca das duas da tarde. Tinha despido a roupa e para além de gritar sem nexo, deitava-se de quando em quando no meio da rua, de costas para baixo.
 
Um homem perdido, enlouquecido por uma razão ou pela ausência total dela. Jamais o saberei.
A imagem dele, apenas com cuecas, deitado na rua de barriga para baixo, essa acompanhou o meu dia. Estava desamparado e sozinho.
 
Mais tarde pude pensar novamente nele quando ouvia refugiados de vários países, quase todos muitos jovens. Em vez de contarem a história na sua própria voz, encenaram as suas vozes numa polifonia e trouxeram até nós uma peça intitulada abrigo. Nunca tinha reparado como a palavra é bonita e encerra nela tudo quanto desejamos. E foi bom ouvi-los falar do nosso país como um abrigo, logo nós que nos temos sentido tão desabrigados, tão desiludidos com este chão que nos acolhe. Chorámos quase todos com eles porque alguns deles também choraram connosco.
 
Como eles abrigo também foi o que procurei toda a vida. E isso é mais do que uma casa, uma família, um nome no cartão do cidadão, embora essas coisas sejam as primeiras e sejam importantes. Apesar da minha experiência ser muito menos dolorosa também sei o que é partir de um lugar à força e sem saber porquê, deixar a nossa infância para trás e não ter sequer um brinquedo que lhe pertença.Também sei o que é não ter abrigo. Também sei o que é encontrá-lo e depois voltar a perdê-lo. Também sei o que é ser o abrigo de alguém. Hoje a incerteza abate-se sobre quase toda a nossa vida e tantas são as vezes que sei que tenho abrigo como aquelas em que sinto que não o tenho.
 
Se puderem, sejam o abrigo de alguém, alguém único e especial que só vocês podem abrigar e que só junto de vós se pode abrigar.
 
 
~CC~
 
 
 

domingo, 7 de abril de 2013

Os Agapornis



Deixa que use o meu bico para tirar esses bocadinhos de lama que arranjaste a espraiar-te na lama depois destas chuvas, olha que o sol já veio  e deves estar tão brilhante como ele. Deixa que te dê um bocadinho desta espantosa semente que o vento deixou solta e que é ligeiramente adocicada. Debica aqui este bocadinho do meu pescoço onde é o teu bico é um afago. Fica aí.
 
~CC~
 
 
 
Nota 1. É bom ir observar estágios por aí em plena natureza, sempre enriqueço o meu conhecimento zoológico.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Cor de laranja


O que eu gosto destas coisas fora de tudo. O braço dado no braço, a canção que sai porque está dentro da vida, é a vida. E há aquele cor de laranja da parede, a minha África é essa cor.

~CC~

Estilo sms


Meu caro:

Porque esperou tanto tempo para se ir embora? E vai assim sem levar um amigo consigo? Um ou mais...todos!

~CC~

terça-feira, 2 de abril de 2013

À procura do Norte



Tenho alunos que me inspiram cuidados do ponto de vista psicológico, antes era raro passar por aqui alguém que tivesse problemas sérios de depressão ou quadros complexos de debilidade a nível da saúde mental. Lembro-me - em dez anos que já lá vão- de apenas dois casos que acompanhei de perto, duas raparigas. Uma apoiei de muito perto e terminou o curso, gostei sempre muito dela embora me custasse compreender como é que alguém tão belo e tão competente revelava uma tremenda insegurança. E não queria escavar muito na infância dela, não me competia, só queria ajudá-la a rir um bocadinho e a acreditar mais nela. Sei que vive em Inglaterra e está bem, continuo a pensar nela como a minha A (esta coisa de os sentir meus vem dos meus tempos iniciais de professora do 1º ciclo...ou de outra coisa qualquer...). A outra desistiu do curso mas voltou há pouco tempo atrás e bem melhor, menos zangada.
 
Nestes últimos anos estes casos têm sido mais e mais, não apenas sintomas depressivos, coisa que todos podemos ter. Casos aparentemente de psicose, com muita agressividade à mistura, quer dirigida a professores, quer a colegas. Sinto uma enorme ambiguidade face aos mesmos e sou por vezes muito pressionada para os excluir. Alguns deles têm até apoio psiquiátrico e apresentam atestado comprovativo mas isso não lhes chega para enfrentar o que o mundo deles exige.
 
Eles estão à beira do precipício mas é assim que também me sinto muitas vezes quando penso como ajudá-los e se devo ajudá-los de facto. Há um lado que me diz que ainda assim estão melhor aqui porque estão a tentar fazer alguma coisa da vida deles, outro que me diz que talvez não seja aqui o seu lugar, nomeadamente porque a opção de curso que escolheram envolve relações humanas, ou seja, aquilo que é neles o seu ponto mais fraco.
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Quando penso neles, sinto-me à procura do Norte e que o faço muitas vezes sozinha.
 
~CC~