domingo, 25 de agosto de 2013

Dizer-te como é



Tem cheiro mas não é sempre o mesmo, às vezes ténue e outras muito intenso, depende da quantidade de algas circulantes e da dimensão da maré. É a maior coisa que possas imaginar, tem um princípio que nos toca os pés e o fim no horizonte que a nossa vista alcança. Dizem que é verde, às vezes escuro, dizem que é azul claro. Cerca-nos, abraça-nos, pode assustar-nos. É um abrigo para animais de sangue frio e uma paixão para os de sangue quente. Liberta-nos, pode aprisionar-nos. Sei que nunca o viste mas já viste o céu estrelado por cima do monte onde guardas os animais, é a mesma essa imensidão impossível de ter, que nos dá a dimensão da nossa pequenez e a ilusão de que na terra tudo é belo. Um dia vais crescer e virás. Contigo virão as cabras do monte dentro do teu olhar, irás soltá-las e elas fugirão dunas acima embriagadas pelo cheiro da perpétua das areias. Experimentarás, então, embriagado, enfrentar a tua primeira onda. Se tiveres medo não fujas, eu também tenho.*

Nos dias piores mergulhar nele é deixar lá uma parte da minha tristeza. Passo a língua pela minha própria pele e sinto o sal, não tomo logo banho, nem ele, deixamos ficar os corpos salgados a vaguear pela casa. Divido-me entre a beleza dos rios e a do mar, mas a segunda é mais parecida com o sangue que me corre por dentro.

~CC~

* A imagem do rapazinho, objecto de uma reportagem da TV, por passar as suas férias montes acima a tomar conta das cabras, misturou-se com a imagem dos meus primeiros alunos, miúdos que vivendo a 100km de Lisboa, no final dos anos oitenta, nunca tinham visto o mar. Queria, na altura, dizer-lhes como era, ao mesmo tempo que a vergonha de poder ter uma coisa que eles não tinham, tomava conta de mim.


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Oitenta e cinco



Ontem à noite levei-a a comprar a prenda dos seus 85 anos. Enquanto procurava a blusa que ela especificamente tinha descrito, ela cirandava pela loja, até que a vislumbrei lá ao fundo. Estava parada junto a um espelho, mirando-se cuidadosamente e arranjando o seu cabelinho. Jamais parei assim a olhar-me num espelho.

No regresso, por volta da meia-noite, disse: está uma noite tão boa que me apetecia ficar aqui até às 2 da manhã. Essa sede de vida, isso sim, reconheço em mim.

~CC~

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sociologia de praia


Ontem a minha filha fez-me uma pergunta difícil: mãe, esta praia é de ricos, não é? Porque perguntas? O que vês?

Seguiu-se o retrato sociológico desta praia e daquela em que tínhamos estado no dia anterior. Ela começou: as mulheres usam mais fato de banho e até as crianças...depois comparou essa regra com a de uma família que ela conhecia em que as meninas só foram autorizadas a mudar para biquíni aos catorze anos. Reparámos depois em conjunto no novo transporte para a praia: a reinvenção dos antigos carrinhos de compras para transporte das toalhas e afins, em geral de outras cores, com bolinhas e riscas. Estes carrinhos não raro combinam com os fatos de banho das mulheres e das jovens, têm um tom ou um padrão que mostra que se identifica ali uma estética que vai do chapéu de sol ao tom do bronzeado. As toalhas de banho também fazem toda a diferença, os turcos estão fora de moda substituídos por outras texturas, quanto muito o turco está de um lado e do outro pano bonito com cores de Verão. Há pares de homens e de mulheres a conversar junto  orla do mar, conversam de pé e em tom baixo, raramente se ouvem gritos ou conflitos domésticos trazidos para o areal. É uma praia em que as bolas de Berlim custam vinte cêntimos a mais.

Sobre a praia de ontem já sei quase tudo. Conheço o homem gordo que fala muito alto, as duas mulheres quase velhas que dão a volta à família e aos cozinhados numa tagarelice sem descanso durante mais de duas horas, os rapazes que enfiam uma asneira dita a cada bola enviada. Os chapéus de sol foram comprados nos chineses e ninguém se rala com a qualidade das toalhas. Não vejo o Mário, vendedor planetário desde final de Junho, eram dele as melhores rimas a vender bolas de berlim de praia. Há ruído, conflito, às vezes não consigo ler. 

As praias, meus amigos, como quase tudo o resto, estão longe de ser todas iguais.

Só os sorrisos são mais ou menos os mesmos no quente mar de Agosto Algarvio: a água está tão boa!

~CC~


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Arte Intervenção


Vi primeiro num blogue que infelizmente é reservado só a leitores convidados. São crucificações modernas, vale a pena espreitar. É a arte que grita.

http://erikravelo.info/los-intocables/#more


~CC~

sábado, 17 de agosto de 2013

Dia de anos




As relações podem mudar com o tempo tornando o afecto outra coisa diferente e ainda assim de uma solidez à prova de bala. Tenho poucas certezas na vida, uma delas é que este laço se tornou indestrutível. Agradeço a tua existência, aconteça o que acontecer. É o teu dia, parabéns.

~CC~

Banhos de água doce


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Lado B


Tinha vinte anos e pouco conhecia de Portugal quando subi a primeira vez até às aldeias de xisto da Lousã. Eram aldeias fantasma, ninguém vivia lá e algumas casas que se mantinham de pé tinham as portas escancaradas e brincávamos de lá entrar e espreitar um mundo que tinha acabado. De vez em quando enxames de abelhas expulsavam-nos do que sobrava da vida humana. O calor abrasava porque estas odisseias ocorriam invariavelmente a cada Agosto. Assisti à primeira recuperação de uma casa abrigo e passámos a dormir lá uma noite para fazermos sentir aos nossos miúdos (das colónias de férias) o que era uma noite estrelada e uma manhã de silêncio. Nenhum habitante. Isto aconteceu a meio dos anos oitenta e durou até ao início dos anos noventa. Sensivelmente no fim desta minha primeira trajetória associativa em terrenos da animação sociocultural, chegavam os primeiros estrangeiros com desígnio de moradores permanentes. Dizia-se que eram alemães em busca de um reduto de paz e de sol.
 
As autarquias demoravam a despertar para o potencial turístico que a serra guardava, mais abaixo junto aos rios estavam a nascer as primeiras praias fluviais com esse nome e era aí que se começavam a depositar as esperanças, mas no meu tempo ainda só lhe chamávamos açudes e buscávamos os mais escondidos e tranquilos. Hoje a paisagem mudou e as aspirações também. Não vale a pena ir procurar as aldeias de xisto velhos desígnios, elas são hoje já outra coisa, parte tradição, parte modernidade, num saudável encontro que me parece guardar o que de melhor temos. Para quem acha que só são verdadeiras as aldeias com as ruas cheias de bosta, as moscas a invadir tudo, a água tirada do poço e a luz do petróleo, para quem vê no esforço tremendo dos homens e mulheres que viviam de tudo isolados  a verdadeira natureza, não vale a pena vir. Se falarmos com as pessoas que viviam e ainda hoje há quem viva nessas condições, elas não dirão que é bom, dirão que é triste. Sabemos que a Urbe foi a grande aspiração dos anos 60 e que o êxodo tornou Portugal numa faixa litoral. Para fazer agora diferente, tem que ser com outras condições, habitar no interior não é fácil e morar numa aldeia muito menos. A Água Formosa tem casais de reformados que voltaram da cidade e um casal novo, mas é muito no que já foi nada. E tem gente como nós, que no Verão escolhe este turismo. Nós fomos da aldeia durante aqueles dias, quando apareciam visitantes dizíamos: nós agora moramos aqui. É preciso que mais pessoas façam esta escolha para que o esforço destas pessoas possa salvar estas aldeias, nem que seja dando-lhes moradores ocasionais, gente que as ama durante uns dias como se lá tivessem nascido.
 
É publicidade gratuita e de coração.
 
~CC~
 
 
 
 

domingo, 11 de agosto de 2013

Lado A



Uma ribeirinha corre lentamente junto à casa, o fio de água tem a pressa dos cágados que descem por ela e se ocultam dos nossos olhares. Este lugar poderia ser desenhado por uma criança para ser a aldeia perfeita e por isso parece não existir realmente. Quando nos afastamos da aldeia e a olhamos de uma das encostas, o conjunto das dez/vinte casas e das suas ruas pequeninas lavadas e floridas, afigura-se um postal.
 
Hoje, aqui na cidade, o conjunto harmonioso das casas de xisto, as pequenas ruas cheias de flores, o caminho para a fonte, as pequenas hortas muito cuidadas, o forno colectivo do pão, o silêncio total a cada manhã e o céu maravilhosamente estrelado a cada noite, os telemóveis sempre abandonados porque sem rede, os cães mansos que por lá vagueavam como propriedade semi colectiva, os gatos fugidios, o casal de velhos ainda novos que nos trazia bolos acabadinhos de fazer, tudo parece ter sido afinal uma fantasia minha para me abrigar.
 
Esta aldeia foi posta aqui para ser a minha aldeia porque eu nunca tive uma e esta é a ideal para quem ama o campo e detesta a matança do porco, se inebria com o cheiro intenso das ervas mas não tolera o cheiro do leite acabado de ordenhar. Eu não sou do campo, eu sou alguém da cidade que ama o campo. Estou na fronteira das coisas, sou um produto de fusão, habita-me a contradição própria dos impuros. Esta é a aldeia perfeita para mim porque é uma aldeia e já não é uma aldeia, é tradição e já não é tradição, é gente da aldeia mas que viveu uma vida na cidade e agora voltou, escolheu a aldeia para viver, ela não foi uma fatalidade na vida deles, deixaram-na quando a vida ali era insuportável e voltam com a luz, a água canalizada, a recolha selectiva do lixo (sim, esta aldeia tem).
 
Diria que voltaria uma e mais vezes, se ela pudesse ser o meu lugar. Mas foi paixão temporária, ainda não o meu amor para sempre, aquele que busco.
 
 

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Um lugar


Escolhi uma aldeia que me é desconhecida para passar férias.
Vou no rumo das cascatas para repousar no canto das cigarras.
~CC~