sexta-feira, 28 de junho de 2019

Juno



É por causa das cerejas.

Parte da responsabilidade só pode ser delas.

Uma parte de mim está presente em cada reunião, em cada formação, em cada trabalho que vejo, enquanto uma outra parte se desliga e sai pela janela, por mais pequena que ela seja.

E essa parte que voa toma banho num rio, senta-se a ver o por do sol numa varanda, abana-se ao ar livre ao som de um concerto, fecha os olhos depois de um poema bonito, lambe os dedos depois de umas quitetas, bebe só um golinho ou dois golinhos de gin porque não pode beber mais.

Junho, mês das cerejas, é em ti que começa a minha lenta dissolução em ser alado.

~CC~

domingo, 23 de junho de 2019

Na rota das enguias, no caminho dos arrozais, junto das cegonhas



Algumas coisas nunca me interessaram. Por alguma razão entre mim e elas instalou-se a distância, a falta de curiosidade, até alguma rejeição. Por esse motivo provei sardinhas pela primeira vez com 43 anos. Minto, acho que o fiz antes numa experiência que apenas memorizou que era um peixe intenso e cheio de espinhas pequeninas que me arranhavam a língua e a garganta e eram impossíveis de retirar em condições, risquei-as do meu mapa alimentar. Aos 43, voltei a provar, acho que o fiz por paixão, se ele me falava delas com tamanha devoção, se lhe brilhavam os olhos assim, os peixinhos pequenos com mau aspecto até deviam ser bons. E eram, se eram. 

Com as enguias o clique nunca aconteceu. Pelo contrário, ainda me percorre um arrepio só de pensar em provar. Mas este fim de semana conheci um lugar que não vem no google maps. É verdade, o carro que tudo filma, não passou por lá. E é encantador. Passa lá o meu rio que deixa as margens repletas de grandes arrozais e há dezenas de cegonhas e centenas de andorinhas, o céu é grande e pintado de sol e depois de estrelas.

Parece que já houve enguias, muitas. Mas basta chover diz o rapaz com os olhos a brilhar. E explica tudo, com grandes gestos e um sorriso de miúdo. Percebi os diferentes tamanhos necessários para as fritas e as de ensopado. Esperava ver um velhote a falar assim num lugarejo perdido onde se vai quase de propósito para comer enguias, não um homem ainda novo. É preciso que volte a chover diz abrindo os braços como numa prece. Acho que algum santo padroeiro o ouviu pois hoje chuviscou. Provavelmente não chega. Há vidas estranhas, que nunca imaginamos. Quando penso que conheço este país como as palmas das minhas mãos, ainda há surpresas. Qualquer dia também descubro novas linhas nas palmas das minhas mãos. Não me importava se numa delas estivesse ali um poiso para mim, não exactamente pelas enguias, mas quem sabe, um dia provarei.

~CC~







quinta-feira, 20 de junho de 2019

Sabor de silêncio



O (quase) silêncio do dia diz-me tudo sobre ele. Gosto de manhãs silenciosas na minha rua barulhenta. Ouvem-se apenas os carros na rua lá ao longe e não as dezenas de pessoas que todos os dias chegam de comboio e se dirigem ao centro de emprego. Olho-as muitas vezes pois é com elas que mais me cruzo e mesmo sem a rua ter passadeira para peões paro para as deixar passar, achava que por ser simpática, mas agora sei que é só para ver se têm olhos tristes. E têm quase sempre. Mas também falam muito alto, muitas parecem zangadas e outras devem estar mesmo.

Logo chegas tu, parece que não vens há tanto tempo. Chegas tu e parece que não estamos há tanto tempo os dois sozinhos. Não me adaptei ainda bem a essa mudança de estarmos quase sempre rodeados de gente. É por causa do nosso silêncio a dois. Gosto quando estamos calados e juntos. Para mim a intimidade é o silêncio entre as pessoas não pesar, poder fluir.

As estações do ano também têm ruído e amando o Verão sei que é a estação mais ruidosa de todas, é o seu defeito. 

Vou ver como é o silêncio da serra do louro, se o posso colher para descansar por dentro.

~CC~

sábado, 15 de junho de 2019

Por tu existires



Talvez por causa da intensidade de um dia inteiro de sábado a trabalhar, do cansaço que chegou ao final da tarde. Só pode ser essa a explicação para a vontade enorme de um abraço que chegou acompanhada daquele sentimento de abandono e solidão, é raro me sentir assim e quando sinto tenho os meus roteiros para respirar mas desta vez não queria ir para casa e não sabia para onde ir.

Liguei mas a tua voz, do outro lado da linha, atendeu numa casa cheia de amigos, não tinhas tempo para aliviar a pressão sobre o músculo no meio do meu peito. E foste tu, de Veneza, lá tão longe, que me levaste pelos canais que afinal não o são, vi com os teus olhos esse mar, essa luz, essas pessoas e quase pude saborear o gelado que comeste. E nem fui eu a ligar, costumo poupar-te ao meu lado triste. Tens agora uma voz mais doce ou fui eu que a senti assim. Consegui sorrir e sentir-me menos só. E grata, tão grata por tu existires.

~CC~





sexta-feira, 14 de junho de 2019

Errar



Os erros dos outros causam-me alguma zanga, os meus uma insuportável dor. Em vez de me perdoar, considerando que o erro foi tudo menos deliberado, volto a esse momento em que fui tudo menos o que quero e julgo ser e sinto-o como se fosse um punhal a cortar-me por dentro. Compreendo assim que a ferida que causo a mim própria é mais difícil de sarar do que aquela que é causada por outros. Consegui muito ao longo dos anos, sem livros de auto-ajuda e sem divãs de psicanálise, mas nunca me consegui livrar deste alto nível de exigência, do qual sou, sem dúvida, a primeira vítima.

~CC~

quinta-feira, 13 de junho de 2019

A lista



Não escrevi a lista no papel.

Mas tenho-a vindo a escrever na minha cabeça.

São aquelas coisas. As coisas que precisamos de fazer antes que a morte nos leve, talvez se as tivermos ela seja piedosa e espere. E podemos sempre acrescentar mais coisas, piscando-lhe o olho: olha esta tinha-me esquecido, mas preciso de a fazer...espera lá aí mais um bocado!

É verdade que foi a sua aproximação em tempos recentes que me fez criar a lista. Mas agora acho que faz sentido por si própria, mesmo sem termos a morte à espreita (se bem que de certa forma está sempre aí à espera e à espreita de todos nós, afinal só um bocadinho mais do uns do que de outros).

E depois dos 50 até me dou ao luxo de integrar na lista coisas menos preciosas, menos interessantes e mais tontas. Foi assim que comprei o bilhete do Maré Vivas para ir ver o Sting (bem sei que vem imensas vezes a Portugal mas o que querem, passei mais de metade da vida só a estudar e a trabalhar).

~CC~

terça-feira, 11 de junho de 2019

Um cabelo fora do lugar



Talvez seja eu que não a estou a ver bem.

Todos os produtos que procura promover com o seu sorriso perfeito são biológicos e saudáveis. As receitas um menu de cores que pauta pelo equilíbrio, conduzindo-nos a acreditar que se as fizermos, o nosso sangue se tornará mais vivo, mais puro, respiraremos enfim melhor. Fala de modo suave.

E é por isso que reparo naquele pormenor das pestanas postiças. Aquele bocadinho de negro que lhe prolonga o olhar mas a coloca no lugar do fútil e do acessório. Já não a imagino a vir da horta sem luvas. E nada do que apresenta me parece realmente verdadeiro, falta-lhe um bocadinho de sujidade, um dente mais torto, um cabelo fora do lugar. A natureza é bela mas não é perfeita. 

~CC~

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Liberdade



Foi ontem, na biblioteca da Assembleia da República. Nunca tinha entrado na biblioteca e é bastante bonita. Não era uma homenagem à Natália Correia mas o lançamento de uma revista em que ela é a personagem escolhida (Faces de Eva). Acho que ela, que acreditava em Deus e não sei se na vida para além da morte mas acho que foi ela quem enviou a chuva que inundou a tarde. Nunca poderia ter sido uma vulgar tarde de Junho, com sol de Verão e cheiro a sardinha. Foi uma tarde molhada, caótica, com o que resta do cheiro a terra no interior de uma cidade. Tive uma genuína vontade de chorar que consegui conter pois não me apetecia fazê-lo ali, entre tantos estranhos. 

A tristeza e a revolta da Natália tornaram-se matéria ainda mais verdadeira e mais humana no interior do táxi. É fácil, falávamos sobre Lisboa. E o condutor contou as histórias, as dele e as de quem se senta naquele banco. As histórias das pessoas que perdem os bens por deverem à banca menos de 80 mil euros que não conseguem pagar e que vêm negadas todas as hipóteses de negociação, assistindo assim a vendas em hasta pública que rapidamente são tomadas por grandes fundos imobiliários previamente avisados. As histórias das pessoas acossadas pelos proprietários das casas que alugam, não poderei esquecer a da velhota que o senhorio deslocou de Alfama para uma casa minúscula em Chelas, dizendo-lhe que era em Lisboa e numa zona muito mais calma. 

Natália Correia teria escrito sobre isto poemas de farpas e sangue. E teria cantado, como a ouvi ontem fazer com Amália,  quem se não ela não teria medo de cantar a meias com a fadista...

Hei-de requisitar na biblioteca mais próxima o Botequim da Liberdade.

~CC~










quinta-feira, 6 de junho de 2019

Identidade(s)



A paisagem molda-me.

Por isso fico quieta com o coração a bater suave junto ao chaparro e ao monte de pequenas roseiras bravas vermelhas, com os olhos presos em tudo o que dali avisto e é apenas o céu, as árvores, algumas aves.

Sinto a relatividade de todas as coisas como se cada uma ficasse mais pequena e nenhuma importasse assim tanto. Isso traz-me paz e a paz faz com que o meu sangue circule devagar e os meus olhos se fechem na indolência, saboreando o sol. Nestas alturas sei que preciso de uma aldeia e de uma casa no campo para que a minha vida possa seguir um outro rumo.

Depois volto.

E tudo acelera e se torna numa vertigem.

Qual delas sou mais eu?!

~CC~