domingo, 23 de junho de 2019

Na rota das enguias, no caminho dos arrozais, junto das cegonhas



Algumas coisas nunca me interessaram. Por alguma razão entre mim e elas instalou-se a distância, a falta de curiosidade, até alguma rejeição. Por esse motivo provei sardinhas pela primeira vez com 43 anos. Minto, acho que o fiz antes numa experiência que apenas memorizou que era um peixe intenso e cheio de espinhas pequeninas que me arranhavam a língua e a garganta e eram impossíveis de retirar em condições, risquei-as do meu mapa alimentar. Aos 43, voltei a provar, acho que o fiz por paixão, se ele me falava delas com tamanha devoção, se lhe brilhavam os olhos assim, os peixinhos pequenos com mau aspecto até deviam ser bons. E eram, se eram. 

Com as enguias o clique nunca aconteceu. Pelo contrário, ainda me percorre um arrepio só de pensar em provar. Mas este fim de semana conheci um lugar que não vem no google maps. É verdade, o carro que tudo filma, não passou por lá. E é encantador. Passa lá o meu rio que deixa as margens repletas de grandes arrozais e há dezenas de cegonhas e centenas de andorinhas, o céu é grande e pintado de sol e depois de estrelas.

Parece que já houve enguias, muitas. Mas basta chover diz o rapaz com os olhos a brilhar. E explica tudo, com grandes gestos e um sorriso de miúdo. Percebi os diferentes tamanhos necessários para as fritas e as de ensopado. Esperava ver um velhote a falar assim num lugarejo perdido onde se vai quase de propósito para comer enguias, não um homem ainda novo. É preciso que volte a chover diz abrindo os braços como numa prece. Acho que algum santo padroeiro o ouviu pois hoje chuviscou. Provavelmente não chega. Há vidas estranhas, que nunca imaginamos. Quando penso que conheço este país como as palmas das minhas mãos, ainda há surpresas. Qualquer dia também descubro novas linhas nas palmas das minhas mãos. Não me importava se numa delas estivesse ali um poiso para mim, não exactamente pelas enguias, mas quem sabe, um dia provarei.

~CC~







5 comentários:

  1. Nem me lembro se alguma vez provei enguias. Assim, de repente, também não é petisco que me atraia. Mas, nunca digas nunca e a verdade é que se deve experimentar para gostar. Ou aprender a gostar. :)

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  2. Na infância, comi enguias na Lançada pela mão de meu pai que muito as apreciava, ora fritas ora em ensopado. Gostei de ambas. Depois nunca mais comi.

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  3. Já comi sardinhas vezes demais e continuo a não gostar. Se esteja faminta como-as. Não estando, prescindo.
    Gosto de enguias fritas. Desde que as comprei e deixei dentro de um saco na bancada da cozinha para vir daí a um bocado encontrá-las vivinhas da costa e espalhadas por todo o lugar, juro de pés juntos, nunca por nunca eu hei-de voltar a matá-las e arranjá-las (não esqueço o que me custou, escorregam e torcem-se que é uma coisa). Portanto, meninas enguias, para minha casa vêm fininhas, bem mortas e arranjadas para fritura. Ou não entram.
    A CC espera que chova com força e depois vai a esse lugar de rio que desencantou provar enguias fininhas e bem fritas; deita sobre elas sumo de limão e é um bom petisco. Aceito que possa não gostar.

    E é isto.

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  4. Luísa, acho que há coisas que não precisamos de provar, simplesmente não gostamos e a vontade de provar não acontece. A mim, por exemplo, o cheiro dos caracóis e a consistência afastam-me de tal modo que nunca considerei provar.
    Joaquim, quando a memória dos sabores se liga aos afectos, está construído o lugar especial. Mas se voltar a provar, não vai retirar nada a essa memória, vai provavelmente acrescentá-la.
    Ai Bea, até me arrepiei porque sou uma tonta incapaz de matar bichos, reconhecendo que isso não é nenhuma virtude minha, provavelmente pura cobardia de citadina. Talvez prove sim, mas só mesmo se for ali.
    ~CC~

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    1. É? E se as visse a passear por toda a cozinha, paredes, chão, tachos e panelas - até na cortina da janela havia uma bem fininha - o que fazia, chamava os bombeiros? -. É claro que eu não imaginava que estivessem vivas, pois se comprava todo o peixe morto... julgava que arranjá-las era canja. Sabia lá eu que escorregavam como elas só. Foi um suplício.

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