sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Mulheres e Homens (2)



- Mas nunca esqueceste isso?
- Nunca, uma mulher nunca esquece a primeira traição, se calhar nunca esquece nenhuma.
- Conta-me lá isso melhor...
- Éramos jovens, namorados há cerca de 3 anos, mas repara, eu achava que era um amor para toda a vida, de tal modo tinha sido intenso e acho que para ambos.
- Tinham uns 18 ou 19 anos, certo?
- Sim. Tínhamos um grupo muito forte, de artistas, estavámos sempre juntos a tocar, cantar, fazer teatro, a dizer poesia. Como nos encontrávamos sempre no mesmo local, acabava por aparecer muita gente que não pertencia bem ao grupo, uns vinham apenas uma vez, outros mais.
- E então apareceu ela.
- Sim, foi uma aparição que abalou o grupo. Era mais nova do que nós um ou dois anos, creio que andaria pelos 16. E era linda, já fazia fotografia e pousava como modelo. Mas andava à procura de qualquer coisa diferente do que tinha no meio em que vivia, gente com dinheiro e casa na Linha de Cascais.
- Todos os rapazes do grupo sentiram o mesmo?
- Não sei dizer se sentiram o mesmo, mas ficaram encantados. Só que ela escolheu o meu namorado desde a primeira hora. Creio que que por ele ser o que estava no extremo oposto dela em termos de indumentária, política e estilo de vida.
- E isso desenrolou-se à tua frente?
- Em parte sim, como percebi o que ia acontecer, quis libertá-lo.
- E ele aceitou?
- Não, disse que eu estava a inventar e não se passava nada.
- E depois
- Depois andaram juntos uns quantos meses.
- Doeu muito?
- Imenso, muito mesmo.
- Mas depois voltaram?
- Sim, mas nunca mais foi a mesma coisa. Nunca perdoei realmente.

~CC~


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Declaração de intenções



Não, não tenciono ir à Black Friday.

Se sou furiosamente anti consumista? Não, não sou, confesso que tenho as minhas limitações, próprias de uma mulher que viu nascer, eclodir e explodir a sociedade de consumo. Até aos 12 anos só vesti roupa feita pela minha mãe, até ao primeiro ordenado mal tinha para comprar roupa e depois disso, à medida que fui tendo mais poder de compra, adquiri muitas coisas sem precisar verdadeiramente delas. Deixo-me encantar por algumas coisas bonitas, às vezes totalmente inúteis. O próprio conceito de útil/inútil é discutível. Os objectos podem ser/ter histórias incríveis. Um anel, seja de ouro ou latão, pode ser de uma imensa preciosidade. Mas isso de dar valor aos objectos e às coisas é justamente o contrário do consumismo, a premissa deste é comprar, usar, deitar fora. E que se demore pouco a deitar fora pois já há outro produto muito, mas muito melhor para o substituir.

Não vou porque me recuso a este cerco, a esta submissão, a este império, a este aliciamento constante. Não vou porque não me interessa a sociedade que vai. Não sou melhor, nem mais perfeita, nem estou num caminho qualquer ou sequer numa missão. Recuso e pronto. 

Apago com gosto as sms que chegaram das cadeias que estão aí, iguais em todo o mundo, para amanhã quero silêncio.

~CC~




terça-feira, 26 de novembro de 2019

Deixe-se incomodar


O nome em Português é um genérico "Passámos por cá" que não nos situa o suficiente no filme.

Já do realizador (Ken Loach) sabemos o que esperar, um percurso coerente de denúncia dos malefícios de um capitalismo cada vez mais feroz, e também criativo, como o filme nos mostrará.

São seres humanos que vão caminhando para o precipício pois é ai que se tornam cada vez mais vulneráveis,  à mercê de serem usados e manipulados. O mais curioso é que isso é feito à custa de um sistema em que já não há trabalhadores mas colaboradores, já não há empregados mas só pequenos empresários subcontratados (a quem se fornece a ilusão de serem donos do seu destino), já não há horários mas apenas cumprimento de objectivos e claro, já não há direitos, nem protecção possível, muito menos sindicatos ou qualquer outra organização à qual bater à porta.

Os laços, mesmo os de amor, perdem-se na exaustão. Nenhuma esperança nos é criada, nenhuma saída. Ainda assim apetece dar colo a todos aqueles seres humanos. Mas isto sou eu que tenho dificuldade em gritar, partir vidros, queimar pneus na rua, pois, depois do filme, é o que também apetecerá a muitos fazer.

Seja como for, não adormeça, vá ao cinema, deixe-se incomodar.

~CC~


domingo, 24 de novembro de 2019

O elogio dos teus três anos


Tu és muito bonita!

Ia corando, o elogio foi feito em público, e não obstante o rapaz só ter três anos, comoveu-me. Eu sei, aos três anos o conceito de beleza está intrinsecamente ligado ao afecto, só mais tarde virá o crivo cada vez mais estreito por onde a sociedade ditará as suas leis, de acordo com o momento histórico social que molda o olhar, mesmo quando tentamos pensar sem correntes.

A vida irá provavelmente desviar-te cada vez mais de mim, crescerás e vais esquecer-te deste e de outros momentos, já eu guardarei, pois é isso que fazemos com os tesouros.

~CC~

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Mulheres e Homens


Ela notou o olhar dele para as pernas dela, um pouco incisivo e prolongado.

- Que se passa?
- Não fizeste a depilação?
- Olha, não tive tempo e no Inverno faço menos, não ando com as pernas à mostra.
- Mas vens passar um fim de semana comigo.
- E então, porque é que não aparaste a barba? Ou melhor até a podias tirar toda, pica-me a pele.
- Aos homens é permitida a barba, às mulheres não é permitido não se depilarem.
- Essa está boa, não achas que isso só a mim me diz respeito?
- Não, é um comportamento teu que me perturba.
- E a barba?
- A barba não deve perturbar-te.

~CC~

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Talvez tenha ficado uma pequena ferida



Tenho tendência a pensar que ultrapassei isto sem quase ter ficado com nenhuma marca, nenhuma ferida. Às vezes acho que já me esqueci de quase tudo, ou pelo menos isso não se atravessa no meu quotidiano. Não me vejo, não me encaro como uma pessoa doente ou incapacitada, não obstante ter aquele papelinho.

Mas depois há isto, hoje é a terceira vez. Morrem familiares de amigos e eu não consigo lá ir. Quero a morte a uma distância muito grande de mim, temo aproximar-me. Logo eu que que brinquei em cemitérios e que nunca tive qualquer medo de entrar num. Até os acho lugares de boas histórias.

Hoje o arrepio foi ainda maior, nem conhecia a pessoa, era apenas familiar de um funcionário do lugar onde trabalho. Mas ela já me tinha contado várias vezes e sempre para me dar esperança: a minha mãe teve o mesmo e está viva e bem. Agora já não me poderá soprar tal alento. 

Talvez tenha ficado uma pequena ferida.

~CC~

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Lugar de palavra



Olho para ela, é só uma delas.

Desinteressada, alheada, sempre calada.  Quantas delas passaram por aquelas cadeiras.

Agora há um lugar de palavra nas aulas. Toma o lugar quem quer e fala, conta-nos alguma coisa, o que quiser.

A morte do pai, a mãe ligada à máquina, a profunda solidão. Bati no fundo disse ela. E houve alguém que lhe entregou um papel, uma professora. Foi um passaporte para algo mudar. Hoje caminha num equilíbrio instável, baloiça o corpo para um lado e para o outro, conquista cada dia.

Estes dias têm sido tristonhos para mim. Mas hoje ao ouvi-la senti que afinal tudo ainda faz sentido. Que eu ainda faço sentido.

~CC~

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Mas cabe perguntar...



Ele fez uma das canções da minha vida. Poesia maior, músico gigante. Algumas das suas questões nesta música foram, são e serão sempre minhas, se calhar vossas.

Em tudo que já fomos está o que seremos
No fundo desta noite tocam-se os extremos
E se soubermos ver nos sonhos o processo
Os passos para trás não são um retrocesso 

A noite é um sinal de tudo quanto fomos
Dos medos, dos mistérios, das fadas e dos gnomos 
Da ignorância pura e da ciência irmã 
Em que, sendo passado, já somos amanhã 

A noite é o espaço vago, o tempo sem história 
Em que as perguntas nascem dentro da memória 
Em tudo que já fomos está o que seremos 
Mas cabe perguntar: foi isto que quisémos? 

Em tudo que já fomos está o que deixamos
No fundo das marés, nos portos que tocamos
O rumo desvendado, o preço da bagagem
É tudo quanto resta para seguir viagem

A noite é parideira da contradição
Que existe em cada sim que nos parece não
Olhando para nós, os grandes dissidentes
No meio da luta entre lemes e correntes

Será esta viagem feita pelo vento
Será feita por nós, amor e pensamento
O sonho é sempre sonho se nos enganamos
Mas cabe perguntar:como é que aqui chegámos? 

Em tudo que já fomos estão os nossos mortos
E os vivos que ficaram entram nos seus corpos
Na noite do amor, na noite do sinal
Naufrágio de fantasmas na pia baptismal

A noite é o impreciso e escuro purgatório
Que alinha as nossas almas no seu dormitório
A culpa dos heróis é serem sempre poucos
Acaso somos mais, ou tão somente loucos

Temos que descasar a culpa e o prazer
No que fizemos ou deixamos de fazer
Para reconstruir os corações cativos
Mas cabe perguntar: acaso estamos vivos ?

Em tudo que já fomos há um sonho antigo
Conversa universal de cada um consigo
São sombras e brinquedos, tudo misturado
E o vago sentimento de nascer culpado

Será um sonho absurdo este olhar p'ra dentro
E o nosso destino, só, servir de exemplo
Andamos a fugir à frente desta vida

Mas cabe perguntar:existe uma saída ?

José Mário Branco

domingo, 17 de novembro de 2019

Coisas perdidas



Se encontrares um brinco cheio de missangas branco, comprei-o numa loja de artesanato em Monchique e é pouco provável que volte lá tão cedo, além disso, sendo um produto artesanal, não há outro igual. Gosto de usar coisas brancas no Inverno. Esse brinco faz parte da minha fortuna pessoal, era importante que o devolvesses.

Se encontrares a minha luva preta, com capa dupla de lã, são as mais quentes que alguma vez tive e suporto muito mal o frio nas mãos. Não sei onde a comprei mas não foi em nenhuma loja comum, dessas que há em todos os centros comerciais, era importante que a devolvesses, sem ela a minha fortuna pessoal está incompleta.

Mas se encontrares a minha indignação, não a devolvas, guarda-a para ti. Eu tenho-a em dose tão excessiva que por vezes me é letal, tira-me o sono e a alegria. Sem ela a minha fortuna pessoal também estará incompleta, mas como está sempre a nascer, haverá sempre uma boa dose para deixar como herança.

~CC~

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O meu manual de auto-ajuda


A mim não me chateia nada o facto de me tentarem impingir produtos na rua, à excepção talvez das duas senhoras das bíblias que encontro à cadência de uma vez por semana. Desmemoriadas da última vez que lhes disse não tenho interesse, aproximam-se sempre.

Os parques de estacionamento à beira Sado são uma espécie de bazares, como não, ao preço que custa a travessia, é gente com poder de compra. E inevitavelmente à medida que envelheço as palavras Ó menina têm mais musicalidade. Por isso a menina recusou com um sorriso aberto os óculos de sol de marca tão conceituada vendidos a um preço irrisório e produto de boa qualidade, só não esperou ouvir a resposta: então assim, ó menina, como é que o cigano vai comprar o Ferrari?! Ele riu-se e eu ri-me com ele, divertidos.

Digo-vos com quase toda a certeza de uns anos que passei a estudar a psique, o meu manual de auto-ajuda só tem uma frase de jeito: ria de si próprio. Não dará grande edição, nem ficarei minimamente rica. Mas olhem que me tem dado jeito. 

~CC~


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Terra fria


Podia ser eu, podias ser tu.

Só em certa parte podia ser eu, se calhar não podias ser tu.

Às vezes tive muita vontade de chorar como ele o faz numa cena do filme, ri-me muitas outras vezes. É um filme doce, comovente, hilariante, a viajar entre o documentário e a ficção.

Aquele Portugal que achamos que não existe mais está ali inteiro, vibrante, ao mesmo tempo triste e intensamente alegre. E frio, sente-se o vento a soprar entre as pedras. O mais bonito, porém, é que o realizador, também protagonista do filme, nos mostra esses montes áridos onde o vento gela a pele sem ter qualquer intenção declaradamente política. Que bonitas são aquelas pessoas a falar, a esconder, a encolher os ombros, a não julgar, a interrogar deus e o diabo na terra. Daquelas mãos saíram, por certo, os nacos de broa que salvaram as crianças de morrer à fome. 

É isto Bosto Frio, ou para mim foi isto.

Fiquei com muita vontade de procurar o meu avô, enterrado algures num cemitério em Luanda. Sei tão pouco sobre ele.

E no fim, generosamente, o jovem realizador veio falar connosco.

~CC~


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Indignações



São artistas amadores e queriam dizer poemas em público em homenagem à autora, espectáculo gratuito é claro. Meia dúzia de jovens a querer ou pelo menos convencidos a dizer poesia é uma bênção. Mas não puderam, ou melhor, para o fazer teriam que pagar uma quantia avultada à família da autora. Percebo que a família cuide de homenagear os seus mortos, não deixando que tudo possa ter o nome deles e velando por alguma qualidade, mas que se agarre assim à autoria, cobrando-a, é uma coisa que me custa a aceitar. Mais ainda quando é uma família que percebemos que não precisa desse dinheiro. 

Jovens a dizer poesia para mim estariam sempre autorizados, como não se percebe que a luta passa por não a deixar morrer, sobretudo a de qualidade. Imagino-a viva, contente no meio deles, ela que queria a poesia na rua, é isso que mais dói. 

~CC~

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Aguardando pelas minhas asas


Novembro está traçado para mim no formato da formiguinha, indo e vindo no caminho sem quase descanso, por inevitabilidade de poder escapar ao meu destino. Constato, contudo, que me é cada vez mais difícil o percurso pelo carreiro, o esforço, o transporte da carga, o cumprimento do objectivo. O que me resta de brio é aplicado a tentar fazer com que a tarefa tenha um mínimo de brilho e encanto. Sei, porém, que é o possível nascimento das asas, que de momento estão recolhidas, que fará de mim a outra formiga que na verdade já sou.

~CC~

domingo, 10 de novembro de 2019

Viciante


Não é uma quinta como as outras, é a quinta das canções. Tem apenas um problema, vicia mais que cuidar da horta ou apanhar fruta. Depois de ver a primeira, vi a segunda, terceira...todas as quintas há uma nova, gravada assim, com a simplicidade de quem ama a música e ama o público. Tudo grátis e à distância de um clique. Dizem que são as suas inspirações, a mim também me inspiram e muito.

Gravam às quintas mas são ideais para um bom domingo. Ora digam lá qual gostam mais. Eu estou indecisa, mas além da 19, um clássico tão encantador, adoro a 10, tanto pela letra e música do Manuel Cruz, como pela maneira como ele a canta:

A minha mulher não é minha
É da cabeça dela
Mesmo achando que sim
Não precisa de mim
Isso é o que me agrada nela
(...)

~CC~

sábado, 9 de novembro de 2019

Momento Life Style



Dizia o poeta que todas as cartas de amor são ridículas. Não serão todas, mas um dia já escrevemos ou escreveremos uma. 

Longe de se pensar apaixonar por um gato, a Susana rendou-se aos encantos de uma gatinha e trouxe-a até nós. É linda de facto. É tão bom fazer o que nos apetece, num blogue e na vida.



Todos temos os nossos momentos tontos, as nossas cedências, os nossos pontos fracos. 

Num dia cinzento e solitário atravessou-se um vestido azul de florinhas no meu caminho. E pronto, achei que com ele tudo ficaria um bocadinho melhor. O folho batia nas botas pretas compridas e quase rasas. Não tinha bem nome para aquele azul e o Outono não traz azul mas amarelo e castanho, não traz flores mas folhas caídas. Parece, contudo, que os vestidos de flores são uma tendência. Parece é que há muitas e muitas tendências, ora ainda bem. Está feito o meu momento life style. 

~CC~

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

O Narciso e a Transparente


O Narciso desta vez ficou à minha frente e, acreditem, a sala é bastante grande. E da outra vez a aula era à tarde e hoje foi de manhã, ou seja, o homem tem pouca rotina, lá nisso...

Um mistério este homem. Continua a usar alças mas a inscrição era ainda mais estranha: alterações climáticas?! A culpa é do...narcisismo! Ou seja, ele é um Narciso anti narcisista, o propósito da sua vida é a luta contra o narcisismo envergando estas indumentárias sempre. Contudo, talvez a propaganda não seja a mais adequada às aulas de Yoga. Será que também coloca estas inscrições nas camisolas e nos casacos que leva à rua?

Tem uma amiga que é quase transparente, aliás só há magros nas aulas, não sei se frequentam estas aulas por já serem magros ou se a saudação final que fazemos,  assim como as várias com que brindamos o sol, têm poder de emagrecimento. Eu ainda não dei por nada e creio mesmo que já estou perto do limite de peso para a frequência.

A Transparente, pela sua quase não existência, é a única que consegue fazer todas as posições que a professora faz, ela dobra-se, equilibra-se, contorce-se, enfim, é capaz de colocar as pernas atrás do pescoço e de elevar o corpo deixando apenas uma mão no chão. Já nós, uns mais atabalhoados que outros, lutamos para não cair redondos nos tapetes.

O Narciso e a Transparente não combinam em nada, ele é alto, moreno e deve fazer também musculação, ainda que sem muito exagero. Ela é pequenina, loura e estreitinha e tem uns olhos azuis, azuis desses transparentes. Mas que sei eu de combinações?! A rapariga que acabou de fazer a saudação final do Yoga em voz convicta e comovida saiu da aula de Yoga e entrou na de Cycling onde a música alta tem uma batida capaz de acelerar um coração até ao limite. Como é que ela combina uma coisa com a outra?

Tenho muito a aprender neste ginásio. É pena que o frequente tão pouco.

~CC~



terça-feira, 5 de novembro de 2019

Arbutus Unedo



Quando eu voltar virei buscar as vidas que não tive ou não fui capaz de ter. 
(inspirado na Sophia e na Ana)

Podia ter sido apanhadora de medronhos por exemplo, palmilhando os lugares da serra onde eles crescem mais vermelhos e mais doces, equilibrando o meu corpo para não cair nas veredas, ajudando os ramos a dobrarem-se com a ajuda do caibro. Respiraria o ar mais puro, sentiria as pequenas gotas da chuva sem mágoa, teria as marcas da lama na roupa de levar ao campo que não se lava se não no final da semana. Seria muito mais terra.

Teria sempre um problema, o de não comer os medronhos à medida que os apanho como fiz no sábado passado, na serra de Monchique. Outro problema ainda: o de gostar muito mais do fruto do que da dita aguardente, excessivamente forte para meu gosto. E talvez fosse uma vida cheia de solidão, pois contam-se pelos dedos das mãos as pessoas que ainda apanham medronho. Não é fácil, fizemos uma apanha comunitária com mais de 30 pessoas e mal chegámos a dois baldes cheios.

Há quem lhe chame os morangos do Outono. São quentes, entre o doce e o ácido, entre o pêssego e o maracujá.

~CC~

sábado, 2 de novembro de 2019

Ò menina, nada mais fácil do que encontrar o seu cartão de cidadão! (III e último)


Parte III (último).

O agente voltou do telefonema com um sorriso aberto, visivelmente feliz, muito embora o que tivesse dito à menina era que já podiam ir à esquadra, coisa que ela não aceitou de bom grado, recusando-se a sair dali com ele. Perante a recusa, o agente sublinhou que a visita era totalmente no interesse dela. Pelo meio lançou-se numa confissão sobre a sua obsessão por manifestações e protestos públicos, lugares verdadeiramente interessantes para testar as competências de um bom detective. Conseguir, por exemplo, identificar os agentes da polícia à paisana, os manifestantes pacíficos dos interessados em causar confusão, os afectos aos partidos políticos dos não afectos, os iniciados dos profissionais e por aí adiante. E de repente, interrompe a sua dissertação sobre as manifestações:

- A menina por acaso levou uma mala Chanel à manifestação?
- Mas que disparate é esse?!
- Pois, bem sei que não levou... e uma mochila? 
- Nem pensar, as mochilas nos tempos que correm são sempre suspeitas. A polícia anda sempre atrás das pessoas com mochila.
- Pois, a menina levou tudo nos bolsos das calças, preferência calças de ganga, certo?
- Sim, o TM, uma nota de cinco euros e o cartão do cidadão.
- Pois, eu sabia. E entretanto a menina sentou-se aqui e ali...
- Sei lá onde me sentei, nos degraus das escadas dos prédios, provavelmente...
- Já viu a sua sorte?
- Qual?
- Há poucos prédios com porteira em Lisboa e logo a menina se sentou à porta de um. Viu, coisa mais fácil, liguei à Lingrinhas que ligou à esquadra mais perto da manifestação e lá estava....você é uma menina com sorte!
- Realmente, lembrei-me lá da manifestação e da esquadra, olhe, pronto, realmente tenho que lhe agradecer.
- Sim, sim...e ao lado da esquadra há um barzinho simpático, como não perdeu a nota de cinco euros, ainda bebemos uma imperial, certo?

~CC~