sábado, 6 de julho de 2024

Cogitação de futuros

 

Ontem fui pela segunda vez entrevistar um pequeno grupo de imigrantes de origem asiática num meio rural de pequena dimensão. Da primeira vez comovi-me. Mas desta segunda vez indignei-me. Vim de lá às 19h30m e deixei a televisão desligada, não fui capaz de ver nada. Fiquei assim um bom tempo no silêncio e triste. Ali está a desordem do mundo no seu pleno. Entre a zanga, a esperança, a gratidão, eles vivem sem futuro, a palavra amanhã não é pronunciável. 

Ajudou-me que a rua também estivesse totalmente silenciosa, durante uma duas horas nada se ouviu, quase parecia o tempo da pandemia. E depois voltou o ruído mas sem festa e adivinhei porquê. Pouco a pouco voltei a mim e esbocei um sorriso com a série do canal 2, vivida num hotel à beira mar. E adormeci. Algum tempo depois acordei com os sinais de ansiedade que de quando em quando me visitam sem nome, sem origem conhecida, sem destino aparente. É a sensação de suor, tremor e falta de ar. É levar até ao limite para não tomar o comprimido e entristecer com cada capitulação que se faz ao químico. Penso no que o poderia substituir. Um quintal para ver as estrelas? Um lugar mais fresco para morar? Alguém a quem ligar? Um tempo sem trabalhar? Voltar com muito mais regularidade ao yoga? Psicoterapia?

Adormeci na cogitação de futuros e acordei mais tarde do que o habitual. E senti-me leve outra vez como as pessoas dizem que pareço estar, há quem diga mesmo que nunca me viu tão feliz, outros tão nova e há mesmo quem, como esta manhã, na loja, peça o segredo.

~CC~


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Afinidades

 


Olho para ela demoradamente, vítima do incêndio de há dois anos nestas encostas de Palmela, que percorremos agora com quem anda a proteger cada carvalho, cada sobreiro novo que nasce. Há quem lhe pergunte qual a razão para não terem cortado estas árvores, algumas são só um tronco carbonizado na paisagem. É preciso esperar, disse. Algumas renascem por si, vão à luta.

Olho para esta árvore e sinto uma grande afinidade, apetece-lhe segredar-lhe ânimo e força e dizer-lhe: vais conseguir, nós conseguimos. 

~CC~





segunda-feira, 1 de julho de 2024

Adeus Gigantes

 

O que um pintou, o outro podia cantar.

Deixaram-nos dois gigantes.

Um nas Artes Plásticas, outro na Música.

O primeiro, Manuel Cargaleiro, conheci tardiamente mas foi com absoluto deslumbramento que visitei em Maio o seu museu em Castelo Branco. Foi mesmo o último museu que visitei e perguntei por ele ao guia, disse-me que estava vivo e cognitivamente capaz, embora frágil fisicamente. Teria fotografado quase todas as obras, não fora o tempo não deixar, apetecia-me trazê-las comigo para vê-las depois, saboreá-las.

Fausto Bordalo Dias maravilhou-me ainda adolescente, nos primeiros acordes de Rosalina. E continuei absolutamente maravilhada de disco em disco, tendo visto poucos concertos ao vivo (não era coisa que ele gostasse), apenas um, ao qual junto o último concerto do Zeca Afonso no coliseu. Coloco-o a par do Zeca, no mural dos maiores. Era ainda novo, parte com 75 anos, mas se a doença o tomava de dor, só podemos pensar que a morte deve ser sido apaziguadora. 

Nós, nós é que ficamos cada vez mais pobres. 

Adeus Gigantes.

~CC~