quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Manobras cosméticas



Os estudante denominam agora as praxes como actividades académicas, numa interessante manobra cosmética. Quase nada mais mudou, apenas o nome, terrível a nova designação pelo uso da palavra academia. Talvez não estejam tão ferozes, tão convictos, nos que já frequentam os últimos anos senti que era quase uma obrigação. Os nossos antepassados gregos são já apenas pó, mesmo assim é uma ofensa à sua memória.

Também já não entram nas escolas ou faculdades, envergonham-nos nos terrenos adjacentes, deixando as salas de aulas desertas. Nesses locais baldios, pontuam as barraquinhas das marcas de cerveja, afinal nunca se deve perder uma oportunidade de vender.

~CC~

domingo, 25 de setembro de 2016

22 de Setembro



Fiz 52 anos no dia 22 de Setembro. No dia 21 a médica conseguiu finalmente contactar-me, andava à minha procura desesperadamente por causa do resultado das biopsias (que deviam ter chegado só a 25). À porta chamou o meu marido, disse-lhe que entrasse. Tudo ficou dito nesse instante. Mas o meu acompanhante não era o meu marido, apenas um colega e amigo da escola, por isso ficou lá fora. Os vínculos têm designações estranhas para os médicos, eu podia preferir que fosse um amigo em vez do marido a ouvir o veredicto.

Foi a prenda de anos mais absurda que recebi por ser tudo ao contrário de uma prenda de anos, era apenas uma semente de tristeza que tentei, tento não deixar germinar.

A médica abraçou-se a mim o que estranhamente deixei, não gosto de me deixar tocar por estranhos. É verdade que ela me chama princesa, é doce, e diz que eu sou maravilhosa. Parte daquilo talvez conste em algum livro de medicina mas a parte que conta é a que é mesmo dela, é genuína. Deve ter muitas princesas, mas eu passei a ser mais uma e isso é o que importa.

Foi um bocadinho triste o acordar mas não foi o meu dia de anos mais triste de sempre. Lembrei-me de quando fiz 15 anos e queria ir lanchar fora com as minhas amigas mas não tinha dinheiro para tal, a minha mãe disse-me que faria um bolo em casa e podia trazer 3 ou 4 amigas. Assim foi, ela fez um bolo com cobertura e diluiu o Tang num jarro. Nada daquilo era o que eu queria, sentia-me triste como só aos 15 anos nos podemos sentir, uma mistura crua de hormonas de crescimento com a revolta imensa perante o destino.

A minha luta mais dura foi para sair da pobreza, coisa que fui conseguindo muito a custo mas sem amealhar o que me era merecido pelo trabalho intenso dos anos. O mais difícil foi fazer duas licenciaturas, um mestrado, um doutoramento, tudo isso sempre com muito pouco dinheiro. Agora é só a luta contra a morte, já lhe ganhei duas vezes (dois acidentes graves), serei mulher a sério se lhe ganhar uma terceira, mas se perder, que se lixe.

Não, o dia 22 de Setembro de 2016, apesar de ser aquele em que acordei pela primeira vez sabendo que tinha cancro não foi o mais triste da minha vida. Talvez seja apenas o primeiro dia de uma outra vida que tenho que aprender a viver.

~CC~

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Diário de luta



Começo hoje o diário da luta.

Maldita palavra essa biopsia onde o que sai não é nada parecido com raspadinhas, euro milhões ou jogo do galo.

De todas as palavra estranhas em linguagem médica a palavra carcinoma é de senso comum, percebo-a. Assim acabou o meu romance comigo própria em que me ia curar a sol e mar. Parece que é preciso mais.

A luta é a parceira da vontade de viver, da motivação.

Mas não sei quanto durará a vontade, a luta como a designação correcta. Por ora será.

Parece que há coisas magnificas escritas sobre essa luta, talvez ajudem, gosto de ler.

~CC~


domingo, 18 de setembro de 2016

Meia idade


Elas crescem, expandem-se, voam.

Quando penso em querer viver, viver muito mais, penso sempre em vê-las, saber como serão as suas vidas, poder embalar os bebés que terão ou não, assistir às suas carreiras, às experiências que terão, às viagens das quais trarão cheiros e fotos.

É mesmo isto a meia idade, não significa não querer coisas para mim, mas querer cada vez menos isso sim. Querer mais para eles, para elas (se uso "elas" é porque tenho uma família onde as mulheres jovens são sem dúvida a maioria, há apenas um príncipe, muito mais princesas).

A mais nova veio agora para a faculdade e serviu-nos chá e bolo numa casa minúscula com um quintalinho amoroso no meio da cidade. A casa fica na rota dos aviões, olharei para lá cada vez que voltar a Lisboa, pensarei se sempre terá plantado mais qualquer coisa no quintal.

O bebé novo de uma das mais velhas cresce a olhos vistos.

Festejaremos na Terça os 18 anos daquela escolheu ser actriz, era uma bebé feliz de olhos e caracóis pretos. Que conseguirá com esta escolha tão arriscada que fez e que foi aquela que não pude, não consegui fazer. É bom ter suporte para poder arriscar.

Quero ver tudo, quero ser futuro. O sentido da minha vida já não é apenas o da minha vida. Intensificou-se essa sensação ao ser mãe mas vai agora muito além, diversificou-se com todos estes caminhos que se traçam, os quase filhos, os sobrinhos, um quase neto. Os "quase" ficam mal mas é como se não me sentisse direito de apropriação total, ficam sempre a um passo daquele abraço sem medo dos outros, mas gosto deles também, interesso-me.

Os rios cruzam-se, bifurcam-se, encontram-se mais além. A vida tem imensa piada, não sei a razão de tanta angústia vir perturbar-me às vezes, ou talvez saiba, mas quero sempre vencer, vencer isso e muito mais.

A minha irmã mais velha dizia muitas vezes perante provas que iríamos enfrentar: vou acender uma vela.  E não há ateia como ela. Mas a vela era a nossa chama, a nossa força.

~CC~


sábado, 10 de setembro de 2016

Do ser e do não ser



A ida a Roma mostrou-me em toda a sua plenitude que posso ser o que sempre não desejo ser: turista. Confrontou-me com muitas coisas, entre as quais as que são contraditórias em mim. É esta coisa de ser eu e ainda o outro. Há muitas perguntas a ecoar em mim, quase todas são sempre para quebrar as certezas das coisas, as dos outros e as minhas. Fui mais turista em Roma ou numa praia fluvial no rio Paiva? Quando olhava no centro de Portugal para as pessoas que faziam os seus grelhados e colocavam os rádios num som o mais estridente possível, para os emigrantes portugueses a falar com os filhos no seu francês com sotaque, para os mergulhos em fila dados em pirueta por um conjunto de jovens ruidosos, nesse caso, com toda a distância que me separava deles, senti-me de fora, uma estranha naquele lugar que lhes pertencia. Mas era o meu país e o lugar não era turístico.

No centro do coliseu em Roma estremeci muitas vezes, emocionei-me e horrorizei-me. O horror não advinha das correnteza de gente em magotes a encher o espaço, mas da própria história, da noção que parte das minhas células contêm uma parte de tudo aquilo. Ensinar a violência, o horror como espectáculo, a estratificação social, as mulheres na última fila, de onde não seria possível ver quase nada, o pão e o circo. São vinte séculos e tão pouca mudança. Senti-me parte de tudo aquilo, fez-se luz para tudo o que parecia distante nos livros de história mas também para tudo o que daquilo ecoa na modernidade.

Emocionei-me estupidamente também entre gente e mais gente que enchia a Fontana de Trevi, como se de repente estivesse ali dentro do filme e pudesse olhar os anos 60 com os olhos do Fellini. Percebi o que significam os ícones da modernidade, já os vimos a todos, mesmo que sejam nos lugares mais distantes e no entanto perto deles, quando os podemos tocar, só aí são verdadeiros, existem mesmo e são a nossa história. Por isso odiei Roma, amei Roma. Odiei por me sentir parte daquela horda de gente que estraga os lugares, consumindo-os como um produto. Amei porque senti com intensidade cada estátua romana de cabeça cortada, cada coluna romana perdida no meio da cidade, porque imaginei o Teatro Marcello no seu esplendor, cada fonte achada em qualquer lugar da cidade, cada gelado, amei porque aquilo somos nós, sou eu. 

Acresce que o italiano foi desde sempre a única língua que quis aprender a falar. Embora em Roma o italiano não seja tão belo como noutros lugares de Itália, como a cidade está cheia de emigrantes e são eles que encontramos a trabalhar em quase todo o comércio, o italiano falado por eles não tem o mesmo fascínio. O meu deslumbre na Fontana de Trevi, tão mais intenso que na praia fluvial do rio Paiva (e eu que gosto tanto de rios) espantou-me, afinal há em nós sempre um lado desconhecido, qualquer coisa que não conhecemos, não dominamos, não sabemos acerca de nós próprios.

~CC~




terça-feira, 6 de setembro de 2016

Setembro (2)


Tudo novo. Férias em Setembro. Eu e ela.
Onde estamos? Como chove e se come gelados no mesmo dia?
Como é que tanto cansaço pode ser tão bom?
~CC~



quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Setembro


Agosto foi uma montanha russa de emoções. Os melhores banhos de mar a uma temperatura há muito não sentida, noites estreladas e silenciosas no campo, muito calor, algum frio, teatro de excelência, família junta de quando em quando com aquele barulhinho bom de estarmos juntos, um bebé novo, quase um neto. Também a maior angústia, a maior ansiedade, muitos exames médicos, uns meus e outros de me quem está muito próximo, desorientação que custou a organizar, ainda custa um bocadinho.

Venha Setembro com calma, é o meu mês. Da primeira chuva até gosto. O tempo refrescou um pouco, a minha pulsação parece estar a regressar pouco a pouco a valores normais. Os diagnósticos vão chegando pouco a pouco, não são bons, mas apontam rumos. A minha amiga enfrentou todo o seu tratamento face a um tumor no cérebro com uma coragem que nos entusiasmou a todos. Tive a coragem de dizer não a mais uma proposta de trabalho que chegou com carácter de urgência- dantes aquele "precisamos" e já para a semana, teria tido para mim um carácter imperioso. Tenho que dizer mais não, mesmo que isso signifique menos dinheiro, o excesso de trabalho está a matar-me lentamente, como uma dose de veneno que bebemos pouco a pouco. Há que voltar ao yoga, iniciar o Tai Chi, procurar mais vezes o silêncio do campo.

Lembrar-me que a vida é uma coisa de que gosto imenso e que tirar esse gosto a mim própria é simplesmente transfigurar-me em algo que não quero ser,

~CC~