domingo, 30 de abril de 2017

Luz



A tendência dos outros para nos desapossar da nossa vontade em situações em que nos sentem frágeis é muita, ainda por cima com a benesse de que as suas intenções são boas e disso ninguém duvida. Que o digam os velhos a quem teimam tratar como meninos que não sabem decidir o que querem.

Vivemos mais ou menos entalados entre as ordens dos médicos, a vigilância da família, os milhares de conselhos dos amigos. Sinto-me muitas vezes quase como refém, alguém a quem está a ser vedado o pensamento, a vontade, a autonomia. Tudo me é recomendado, desde o creme para a pele ao que hei-de beber, quem consultar, que medicamentos tomar. As ordens e conselhos são provenientes de muitos lados e como tal nem sempre coerentes, às vezes fico confusa. Acresce que, pelo facto de precisarmos deles, isso nos deixa numa vulnerabilidade grande, muito mais susceptíveis a sermos manipulados. Metade ocorre sem que os próprios tomem consciência do facto de que nos passaram a tratar como crianças e não como adultos inteiros, e é isso que somos apesar de estarmos doentes. Mas as relações que se baseiam no poder sobre o outro e não na igualdade, que não reconhecem ao outro o direito de escolha e de saber o que racional ou irracionalmente é melhor para si, constroem sombras e não luz. 

E luz, como eu preciso de luz!

~CC~

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Do essencial



Em situações de doença, ganhamos absoluta consciência que o essencial para nós são as pessoas. São elas a parte mais importante do processo de luta que se trava. Na vida muito ocupada que antes tinha, uma das minhas preocupações era perder as pessoas, pela falta de disponibilidade que muitas vezes tinha para elas.

Umas surpreendem-nos com uma presença que não julgávamos possível. Outras surpreendem-nos pela ausência quando as sentíamos mais próximas. Pessoas pele, pessoas superfície. E isto nem sempre tem a ver com a quantidade de tempo que estão nas nossas vidas, nem com a forma como nos relacionávamos com elas no momento actual. Há amigos que voltaram a uma presença e contacto quase contínuo depois de anos de contactos esporádicos, como se soubessem que dantes o silêncio não minaria a amizade mas que agora falar é importante.

E depois há as pessoas que são exactamente como esperávamos, quer para o melhor, quer para o pior. As que são como esperávamos, mostrando toda a sua generosidade no apoio efectivo e próximo, representam o pilar, a trave mestra, o lugar a que nos agarramos. E cada uma é um pilar diferente, o que uma dá não poderia ser dado por outra. Sem elas nada poderia ser igual. A maior parte das vezes é difícil agradecer-lhes pois estas coisas não se agradecem. Então presto-lhes homenagem, mesmo sabendo que a maior parte não passará por aqui. 

~CC~

terça-feira, 25 de abril de 2017

Resistir



Esta é uma das semanas mais difíceis que tive até agora, dada a dor e a indisposição que nada tira, procuro inspirar-me nos mais corajosos para chegar à próxima sexta feira, data em que retirarão as duas próteses que o meu corpo quer e, com razão, rejeitar.

Entre os corajosos, sem dúvida, esses capitães de Abril que enfrentaram um regime que podia ter resistido levando-os à condenação, ao degredo, até à morte. Não era a primeira tentativa gorada.

Entre os corajosos também esses homens e mulheres e crianças que cruzam o Mediterrâneo, quase sempre para fugir da guerra ou da miséria.

Ou tão só a mulher que no jardim zoológico de Varsóvia, em plena segunda guerra, arriscou salvar os judeus que a procuraram.

Quando a dor chega num espasmo contorço-me até que passe, certamente sem os olhos brilhantes de quem fez Abril mas inspirada por eles.

~CC~

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Empate



Já fez um mês que saí do hospital e voltarei hoje para uma nova e dizem breve intervenção cirúrgica, está previsto sair hoje ainda.

O meu medo reside na palavra previsão. Da última vez estava prevista uma semana de internamento e uma operação mas fiquei um mês inteiro e realizei duas. Como tal, tenho medo daquele bloco operatório e do que lá se poderá passar. O medo, quando nos apanha, tende a alastrar-se como uma coisa irracional, invade tudo e não deixa espaço para pensar. Estou a lutar contra ele com todas as minhas forças mas as vitórias neste campo costumam ser apenas parciais. Contento-me com um empate com o medo.

~CC~

terça-feira, 18 de abril de 2017

Ainda


Hesito onde arrumar as calças de (muito) magra que a minha irmã mais velha retirou do seu próprio guarda roupa para me dar, não lhes dou entrada directa no armário, arranjo-lhes um canto próprio. Hesito sobre o que fazer à roupa que não me serve, consegui tirar meia dúzia de calças que, creio, não me servirão mais. É como se ainda estivesse à espera do meu eu de volta, como se esta estivesse a prazo e não para ficar. 

Também hesito sobre o cabelo cinzento, já tive quase a correr a pintá-lo com tinta natural, desisti por pensar que ainda vou ter que o rapar novamente. Não é feio o cinzento e há inúmeras mulheres a recusar as tintas, é quase um movimento. Mas não nos enganemos, deixa-nos a idade bem presente, a clara indicação que o caminho é só um e é rápido. Muita gente passa por mim e não me conhece, não lhes levo a mal, eu própria ainda não me conheço o suficiente.

~CC~

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Duas mulheres



Duas mulheres que já não eram jovens. Vinham pela rua de mão dada, passeio perto do mar. Felizes com a sua audácia, fortes por enfrentarem o preconceito. Sorriram para mim. Também lhes sorri, não tão abertamente quanto gostaria de o ter feito. Na verdade vinha ligeiramente distraída, encantada pelo sol.

Não estou certa que o mundo esteja preparado para as deixar dar as mãos quando quiserem, onde e como quiserem. Mas para mim não faz diferença alguma, pelo contrário, o gosto por ver as pessoas a viverem a vida, a sua vida, faz-me bem.

~CC~

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A Sul


A praia está vedada para mim, só um passeio ao fim da tarde. Sabemos que sol e cancro não se dão.

Por isso escolhi o campo. E não me arrependi. Trago comigo um intenso cheiro a flores de laranjeira. E como gosto desse cheiro. Tem também uma memória associada, a de Sevilha há uns anos atrás, os bairros mais antigos tinham este cheiro, nunca o tinha sentido tanto numa cidade.

São as pequenas coisas boas que procuro.

~CC~

terça-feira, 11 de abril de 2017

Mais Sul



Desci mais para sul e colhi com os olhos e pelo Alentejo um monte de estevas, das minhas flores de campo mais adoradas, parecem feitas de papel muito frágil, pontuam a paisagem de branco e amarelo deixando-a clara, límpida. Tinha muitas saudades desta viagem em tempo de Primavera.

~CC~

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Paragem obrigatória (IV)



Foi muito importante para mim ter ido, ter conseguido ir, ter vencido barreiras que agora me parecem quase intransponíveis, tais como, simplesmente, escadas. As pausas nos bancos colocados pelo meio da exposição foram imprescindíveis para aguentar, dantes perguntava-me pela sua função, agora percebo-a tão bem. 

Não percam a exposição do Almada Negreiros na Gulbenkian em Lisboa, monumental tal como o artista o foi. Obra multifacetada, inequivocamente a gostar mais de umas coisas do que outras, mas sempre a reconhecer o toque de génio, bem presente na vontade de viajar por estilos diferentes. Há um traço Almada? Creio que sim. Um traço viajante, inquieto, bailarino.

~CC~

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Corpo


A máquina avança sobre o meu corpo e tenho medo. Como é possível, já fiz dezenas de vezes aquele exame. Mas agora é como se eu e a máquina tivéssemos perdido a intimidade, ela voltou a ser um objecto estranho a puxar-me para dentro e para fora. Tenha calma, demora segundos. Tem razão, mas também eu preciso de uns segundos, de uma volta lá fora. Depois volto, consigo fazer o exame.

Menos estranha que a máquina as mãos do fisioterapeuta, estranhamente nunca me assustou nem intimidou. Tem um ar de menino, não de homem. Olho-o e parece-me que ele é ainda uma criança, nada de agressivo pode vir dali. Como construo confiança com base nestes meros sinais. Ele fala muito e quase nunca o oiço, percebo apenas quando dá instruções e deixo-me guiar. São instruções doces. Creio sempre ter ficado a meio do esforço que me pediu mas ele conhece bem a dinâmica do reforço e procura entusiasmar-me. 

Queria dizer-lhe como é estranho que cuidar do meu corpo se tenha tornado a principal tarefa da minha vida, eu que tanto me esqueci dele. Mas há coisas que não posso dizer-lhe, não alcançaria. Chega-lhe ser um menino, um bom menino. Hoje brincámos às provas de esforço, consegui 14 voltas para 6 minutos, coisa que o deixou feliz. Como eu queria ficar feliz quando ele fica, podia embalar-me naquela motivação de profissional recente, que bom seria.

~CC~

sábado, 1 de abril de 2017

Isto de agora ser uma mulher



Como mantemos a identidade em situações em que o nosso corpo é objecto de profunda transformação? Quando o espelho nos devolve uma imagem que nunca vimos e nos diz que somos nós?

O meu cabelo começou a crescer pois parei a quimioterapia há cerca de três meses. Tenho-o agora muito curto, desigual, ligeiramente espetado (naturalmente) e mercê da mistura entre brancos e pretos, está cinzento. Não sabia como estava pois pintava-o, acho que como a maioria das mulheres, tinha escolhido o castanho claro que era a cor da minha infância. Com o tempo acabava por ficar quase louro e as pessoas gostavam do tom, combinava bem com a minha pele. Para além do cabelo cinzento, terei menos 10 a 15 k, ou seja, sou oficialmente uma pessoa magra. Não era gorda antes, tinha talvez uns 5k a mais do que seria o meu peso ideal, o que me conferia um aspecto de gordinha ou talvez nem isso mas de certeza uma mulher com formas, com curvas. Ironia das ironias, às vezes queria emagrecer. Valia-me tu gostares de mim como eu era, não teres expectativas de me tornar mais elegante.

Por isso hoje olhar-me ao espelho significa muitas vezes confrontar-me com uma imagem andrógina, sinto-me quase um rapazinho, não obstante os cabelos cor de prata não me esconderem a idade. Sinto-me desconfortável na maioria das roupas, algumas antigas são impossíveis de vestir, outras visto, mas a sua largueza faz com que nada pareça o mesmo. Só uso sapatos rasos pois com a perca de peso estou muito fraca e não quero perder o equilíbrio. Eu usava saltos, não propriamente agulha, mas quase sempre algo que me conferia mais altura e gostava do efeito. Não tenho também muita vontade de comprar coisas novas, nem posso gastar muito dinheiro pois os gastos em saúde têm sido brutais. Não sei se com a imagem, outras coisas associadas se foram perdendo, designadamente este sentimento de ser mulher, mulher significa um ser sexuado, com inteira consciência do seu sexo, e isso é coisa que tenho pouco. Não quero dizer que tenha perdido a consciência de género, isso é outra coisa, é consciência social e essa mantenho igual.

Esforço-me, por ora, por duas coisas: me sentir um ser humano e não constituir um peso na vida dos outros. Isso significa passar ao lado dos espelhos na maior parte das vezes. Outras, mais raras, ponho uns brincos e acho que até não estou assim tão mal.


~CC~