domingo, 31 de janeiro de 2021

Transição ecológica

 


Tenho objectos novos que antes não usava.

Uma agenda antiga, dessas de papel, em cima da pequena secretária. Dantes teria que transportá-la na mala, um peso a mais para quem levava sempre comida para todo o lado. E tenho lápis, um afia, uma borracha. Nunca mais escrevi nada a caneta, tudo muda de um dia para o outro. 

Às vezes apagar um compromisso comporta dor, outras uma inusitada alegria. A maior parte das vezes os eventos apenas se reciclam ou misturam noutros.


~CC~




sábado, 30 de janeiro de 2021

Numerologia

 

Há três divisões na casa

Na primeira delas visto-me e durmo

Na segunda apenas trabalho

Na terceira alimento-me

Em todas elas pratico a esperança dos dias azuis, outros dias.

 

As vistas são só cinco

Na primeira a vizinha da frente, tatuada e com o seu enorme cão preto 

Na segunda a praça da cidade absurdamente dominada pelos pombos 

Na terceira a varanda abandonada e suja da vizinha do lado

Na quarta a estação dos comboios cada vez com menos ruído

Na quinta os dois castelos quando o nevoeiro permite vê-los

Em todas as janelas coloco o mar que realmente não vejo.

 

Há quatro hipóteses de comida

Carne, peixe, fruta/vegetais e sementes

Alterno-os como posso e às vezes misturo-os todos

Faço coisas maravilhosas que como sozinha, esfriam logo e perdem o sabor

E imagino refeições numerosas em mesas de madeira debaixo de uma pérgula carmim.

 

Eu sou só uma

Mas não sou bem eu

Sou um ser imaginado

Um passo mais adiante.

~CC~

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Hoje

 

Hoje não saio de casa.

Mas garanto que irei sair de dentro de mim.

~CC~


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Azul e vento


Respondendo à Luísa. 


Desculpa, não tive tempo de te dizer.
Foi um instante
E não pude perdê-lo
Nem sempre o mago aparece.

Agora, se queres ver-me
Deixa sempre a janela aberta
Não uses cortinados nem persianas
ouve-me.

Virei ver-te
dia sim, dia não, dia sim
mesmo se o tempo estiver cinzento
mesmo se estiveres triste

Não te detenhas no meu corpo negro
agora toda eu sou azul e vento.

~CC~

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Estendal de flores


 Estender flores no varal da roupa é uma forma de chamar a Primavera? De chamar a Esperança? 

Gostava de lhe ter batido à porta, perguntar-lhe.

~CC~


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

É abrir a caixa de ferramentas.

 

Caminhar num chão minado, e com outros, é o exercício diário. E é preciso que ninguém fique para trás, que todos vão aprendendo a evitar o perigo, que quem se senta para chorar não fique lá, que o avanço mais afoito e capaz de uns não seja travado, mas que ao mesmo tempo percebam que a fragilidade nem sempre é uma escolha, às vezes é estrutural e quase impossível de contornar. 

Há alturas em que gostava de saber falar com os anjos, de saber mobilizar estrelas, de ter uma ligação directa para os deuses que sabem acalmar as tempestades, são momentos em que acho que não me é humanamente possível fazer mais ou não sei como fazer melhor. O divino deve ser esse lugar de abrigo e frequento por alguns instantes essa paragem.

Na maior parte do tempo uso, contudo, a pragmática que aprendi nas minhas maiores batalhas e tento resolver um problema de cada vez, isolando cada um deles para que não se contaminem e misturem numa força centrífuga capaz de me abater. É abrir a caixa de ferramentas.

~CC~



domingo, 24 de janeiro de 2021

Matriarca

 

Ontem estava muito triste, como todos nós. Não queria ir votar, aos 92 afirmava já não assistir a muito da governação do próximo/a presidente.

Mas hoje o tempo estava melhor e a tristeza mais ténue. Então apoiou-se na filha mais velha num lado e na bengala no outro e foi, vencendo o medo que a todos toca. Fez uma escolha só sua, diferente da minha, por exemplo. Enquanto há vida e lucidez, as pessoas têm os seus direitos e se os querem exercer, ninguém os deve condicionar. É neste dias que me orgulho dela.

~CC~


sábado, 23 de janeiro de 2021

Cravo vermelho

 

Consegui chorar nesta despedida, o que foi bom.

Para ti, com todo o meu carinho, um cravo vermelho.

~CC~


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Coisa boa (2)

 

Difícil encontrar uma coisa boa no dia de hoje, não é? Até o rio, que vi apenas dentro do carro, estava surpreendentemente escuro e hostil. 

Passei horas e horas aqui, mal dei pelo tempo, três reuniões entre colegas de trabalho. Destaco o modo como começamos e acabámos as reuniões, com uma palavra de cuidado uns com os outros, com um sorriso na despedida e um aceno, a chegar aos objectivos pretendidos sem dramas nem hostilidades. Que bom seria guardarmos esta amabilidade uns com os outros como um valor que nos ficaria destes tempos.

A discordância nunca me custa, a hostilidade sim, a injustiça ainda mais.

~CC~




quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Uma coisa boa (1)

 

Tento pensar numa coisa boa por dia. Não recomendo tal exercício como anti depressivo porque cada um sabe o que lhe faz bem e há muito perdi a oportunidade uma carreira possível como Coach que me teria dado bem mais dinheiro e conforto que aquele que tenho. Quem sabe para a velhice, mas quem quer uma velhota como Coach? Em geral são lindas, novas e sempre bronzeadas.

Hoje pensei que era muito bom já não ter que vestir collants por baixo das calças, friorenta como sou, foi assim que vivi nos últimos quinze dias. Mas é coisa que detesto.

~CC~


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Escolham a melhor prisão, não a pior

 

Primeiro era lá longe, tão longe que não nos preocupamos, como se um vírus não pudesse chegar do lugar oposto do mundo.

Depois não conhecíamos ninguém infectado, não obstante o medo que sentíamos. 

Quando deixámos de ter tanto medo, já havia conhecidos de conhecidos, ainda não os amigos, ainda não os nossos familiares.

Depois o cerco foi-se apertando. Terá sido só comigo? Acho que não.

Primeiro foi a sobrinha lá longe, em Londres. Depois outra sobrinha, em Lisboa. Jovens, passaram relativamente bem.

Mas foi piorando. Em dezembro morreu a mãe de um dos meus cunhado com a doença, estava num lar. Ontem foi hospitalizado o meu cunhado, na lógica de um cunhado é alguém que nunca deixa de o ser e este era mesmo especial, sempre esteve por perto da família ou mesmo lá dentro, se a festa era importante, ele vinha sempre. Não saia de casa há alguns meses, pois já tinha uma situação de saúde frágil. Mas havia, tinha que haver quem entrasse para os cuidados. Quando o conheci vivia num parque de campismo e era o homem mais bonito da ilha, não o imaginamos preso a ninguém mas teve três maravilhosos filhos dos quais cuidou com desvelo absoluto, tão absoluto que acho que em determinada altura se esqueceu de si próprio.

Hoje, um homem, já com alguma idade, tirou a máscara e tossiu em pleno supermercado, estava a menos de dois metros de mim e fiquei estarrecida, tão chocada que não consegui dizer nem fazer nada. Não consigo precisar se isto é ignorância, despreocupação ou negacionismo. Não quero desprezar o meu semelhante nem me achar melhor que ele, mas às vezes é muito difícil.

Eu sou daquelas pessoas que viveu mais de metade da sua vida na rua, daquelas para quem a casa é que era o sítio de passagem, um lugar para passar um bocado da noite e dormir. Estudei e trabalhei em cafés e jardins uma vida inteira. Imaginem o quanto me custa esta prisão. Mas sei, também por experiência própria, que não há maior prisão do que uma cama de hospital e, sobretudo, uma cama de cuidados intensivos. 

Escolham portanto a melhor prisão, não a pior.

~CC~

domingo, 17 de janeiro de 2021

Saber navegar

 

Não, não quero um polícia atrás de mim. Não pode haver um atrás de cada nós. A iliteracia cidadã é a mãe do endurecimento das medidas políticas restritivas da liberdade. 

Quero sobreviver a esta pandemia, isso é para mim o mais importante. Quero que os meus sobrevivam. Quero que o país sobreviva. E sabemos que as pandemias, esta não é a primeira, avançam por vagas, curvas ascendentes e descendentes e temos que saber interpretá-las, navegar de acordo.

Se para o fazer tenho que beber apenas café da avó, fazer bolos caseiros, cumprir passeios curtos, preferencialmente em locais com muito pouca gente, ter contactos presenciais muito restritos e apenas abraços virtuais, que seja. Há muito que deixei os teatros, os cinemas, os eventos culturais, e como isso me custou.

Se tenho que continuar em infinitas conferências, aulas e tutorias virtuais, vendo como sorrio com a boca um pouco ao lado e como as rugas vão nascendo, que seja.

Talvez arranje algures por aí um batom vermelho, nunca tive tanta vontade de ter um.

~CC~


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Bom dia

 

O pânico, se o deixares entrar, toma conta de ti e deixas de pensar. Coloca barreiras, diques, fronteiras para o impedir de te dominar. Continua a fazer escolhas, a tomar medidas sensatas, a comunicar com o mundo pelos canais que considerares seguros. A doença está a alastrar-se mas não apenas aquela que chega com o vírus, mas por outros adoeceres, naquela zona do cérebro, que como explica tão bem António Damásio, é capaz de te derrotar e de te erguer. 

Coisas pequenas, diz bom dia a alguém todas as manhãs.


~CC~

domingo, 10 de janeiro de 2021

Dois

 

Estiveram ali muito tempo esta manhã as duas na rocha, talvez conversando, enganando o frio. Fizeram-me pensar muito na palavra dois, na palavra casal e na palavra casa. Fiz-me muitas perguntas em torno dessas palavras, tentando não entristecer. Não fora a alegria que a proximidade do mar e o sol me trazem, talvez tivesse mesmo acontecido.



~CC~

sábado, 9 de janeiro de 2021

No bairro

 

A casa, embora pequenina, é gelada. Em Portugal os construtores em geral não são sensíveis ao chamado aquecimento central, talvez façam bem, os valores dos salários mensais não chegariam para cobrir tal, ao contrário do que acontece na maior parte dos países da Europa. Por isso, quando o frio chega, sofremos mais.

Para não continuar a transportar aquecedores de um lado para o outro fui em demanda de um. Filas à porta das principais lojas das marcas de electrodomésticos, muita gente lá dentro. Recuei, desisti. E lembrei-me daquela loja de bairro onde comprei a iogurteira. Não fui apenas bem atendida, não me explicou apenas as várias hipóteses possíveis, trouxe-me o aquecedor até à bagageira do carro. E não foi muito mais caro, tinha estudado os preços antes, talvez uns 10% mais. E a sensação boa de que talvez tenha ajudado mais uma loja de bairro a não fechar.

O meu bairro não é uma lindeza, mas consigo comprar quase tudo o que preciso aqui, é necessário que estas lojas não fechem. Já olhou para as lojinhas do seu?


~CC~


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A passinhos de caracol

 

Com sol ainda tolero o frio. Este céu congelado, inteiramente cinzento, tolhe-me a vontade, o trabalho avança a passinhos de caracol.

Sem sol, ameaço que vou hibernar. 

Digam aos pássaros que me acordem quando a Primavera chegar. Ou enviem-me um príncipe com um beijo de fogo. Ou digam-me que nos podemos outra vez abraçar, livres como antes.

~CC~

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Meia hora de sol



 

Um estava no meio do parque baloiçando ligeiramente as ancas, sem qualquer vergonha. Outro passou por mim com dois sacos pesados e disse um luminoso bom dia. Já ela, com gorro e luvas passeava um carrinho de bebé como quem leva um tesouro.

É com os velhotes que me cruzo na meia hora de sol no jardim, como eles à procura de sobrevivência, de calor. Talvez eu também já seja velha e nem saiba.

~CC~

sábado, 2 de janeiro de 2021

De par para impar


Não desprezo 2020, tão pouco o acho o pior ano das nossas vidas. É preciso lembrar que já houve duas guerras mundiais, que nos confrontámos com o nazismo e com o fascismo, que houve e há todos os dias atrocidades muito piores do que aquelas que este vírus nos trouxe. Eu tenho mais receio do que está para vir e não se pode controlar através de nenhum feito da Ciência, eu tenho mais medo do que é mau e é humano, mais receio do escuro que habita, que fica, que invade.

E agora uma segunda parte, menos negra, mais pessoal.

Em 2020 aprendi a fazer pão e folar de Olhão. Testei se seria capaz de viver numa aldeia. Teci alianças para cuidar da mais velha sem a levar para um lar e consegui. Vivi muitos dias sem estar com ninguém presencialmente e percebi que um abraço e dois dedos de conversa são mesmo um bem precioso, mas que conseguia viver comigo própria sem que essa solidão me pesasse em demasia. Não perdi nenhum amigo. Não perdi o emprego nem nenhum trabalho que me fosse significativo. Talvez me tenha tornado melhor docente, ainda não consigo avaliar bem. Fui ver o mar sempre que o coração apertava. Não gostei das máscaras mas suportei-as sempre que era necessário. Não falhei exames médicos, embora tenha sido uma luta. Perdi dinheiro de viagens e adiei projectos sem desesperar. Suportei sem muita tristeza o Natal em ponto pequeno, assim como a passagem de ano. Recebi um livro de poesia da minha filha, há quanto tempo não me ofereciam um. 

A vontade de viver continuou e continua intensa mas fui modesta a pedir e a querer, sobretudo em coisas para mim própria, talvez tenha ganho algum minimalismo ou aprendido a valorizar as coisas mais pequeninas.

Já os abraços, esses que venham em grande.

~CC~



sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

2021 primeiro dia

 

Uma pequena volta na rua confrontou-me com a maior preocupação do povo: um sítio aberto onde colocar o euromilhões.

Ano novo?!

A ver vamos.

~CC~