terça-feira, 30 de agosto de 2022

Despedida

 

Dela sei o que quis contar-me. As histórias mais bonitas, cruéis e estranhas do mundo rural. Uma delas escrevi-a aqui. Às vezes tinha dificuldade em perceber, não só por causa do seu falar muito próprio, uma espécie de dialecto forjado na terra, mas por acrescentar a esse linguajar os seus próprios traços pessoais. Por último, sei que já mal falava, prefiro guardá-la a contar histórias, sobretudo depois do marido falecer, até lá era ele que falava e ela quase nada dizia, muitas vezes até abanava a cabeça em sinal de desaprovação, um modo de lhe sancionar tanto paleio.

Outras coisas adivinhei-as ou foram ditas de modo velado, mas reconheci a dor da pobreza, o infortúnio de quem nunca foi suficientemente valorizado ou amado lá atrás, naqueles passados que nunca de nós se descolam inteiramente. Esses azedumes apuram-se com o final da vida, contudo, para os mais próximos, ela guardava apenas amor. Os filhos, as netas, o bisneto, podiam gerar-lhe preocupação mas nunca lhes negava o maior dos afectos, eram os melhores. Usava sempre a palavra "meu" antes do nome de cada filho, que bonito era isso.

Guardo coisas pequenas dela, sabendo bem o quanto eu não era, ainda assim, figura da mulher que ela pudesse realmente apreciar, mas, contudo, nunca me afastou. Dava-me panos da loiça bordados e chocolates no Natal, sem coragem para me incluir no universo dos pequenos envelopes com dinheiro que dava aos seus. Eu era e não era, é assim que somos de uma família quando não temos papel passado nem residência comum.

Uma vez pediu-me que lhe comprasse uns brincos porque ela usava sempre os mesmos e tinham algum valor. Em suma, queria bijuteria e não sabia comprar. Não era de grandes manifestações afectivas, mas nunca me esqueço como ficava a acenar até o carro desaparecer na estrada. Por último, adoptou um gatinho, mas ao seu modo, sem o deixar em casa e comedida nas festas. Penso onde andará o bichano agora, se alguma das suas vizinhas ficou com ele. 

Agradeço-lhe o que me trouxe de um mundo que eu desconhecia, nas antípodas de mim e do meu universo. Despeço-me com todo o carinho que ficou dos anos habitados naquele território. Hei-de fazer arroz de forno.

~CC~



segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Frágil

 

Ainda se coloca a etiqueta frágil nas coisas? Tenho visto pouco. Em certos dias apetece-me colar isso em certas coisas, em última instância em mim mesma. Certos momentos são de uma consciência absoluta disso. Conto-vos.

A ilha de Faro, incorrectamente designada assim, é apenas um estreito de areia entre a ria e o mar. Quando subi a primeira vez a uma casa na qual iria ficar uns dias, tive consciência absoluta de que o mar facilmente varreria aquela faixa de areia pejada de casas de uma assentada. Depois pensei pior, se houvesse um sismo, seguido de um maremoto, tudo acabaria em poucos minutos. Pensamentos que nos estremecem e não conseguimos impedir.

Dois dias depois, à hora do jantar, todos sentados à mesa. Tremeu o armário dos copos, vi a parede estremecer e uma porta que estava aberta fechar-se, todos pensaram no vento que por aqueles dias era forte, mas eu disse imediatamente: é um sismo. Minutos depois a confirmação, tinha-se sentido em toda a zona de Faro e Quarteira. Felizmente os 4,5 da escala mantiveram-nos seguros. Mas sentiu-se bem e se não entrámos em pânico, houve algum receio. Felizmente o mar não mostrou outro perfil que não as suas ondas habituais. Mas esta praia é toda uma tragédia ambiental, as casas deviam ser retiradas, apenas devia ser possível usufruir de praia e quanto muito caravanismo e campismo, alguns bares de praia, preferencialmente de madeira. Ao contrário, prevê-se uma ponte nova, ou seja, mais carros num local em que o estacionamento já é absolutamente caótico.

Não conseguimos viver sentindo-nos sempre frágeis, a insegurança que tal nos traz tornaria a vida insuportável. Mas a alguns faria bem perceber que tudo o que têm, sobretudo essa coisa chamada bens materiais, pode ser pouco mais que nada. 

~CC~







sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Achados e perdidos

 

Encontrei metade da colecção de caixinhas num saco, não sei como estiveram lá mais de um ano sem ver a luz do dia. Deve ter sido uma fúria minimalista de limpar melhor a casa, de não ter tantos objectos, de me livrar de algum laivo de coleccionismo que pudesse denotar veia obsessivo compulsiva. Decerto uma parvoíce, as minhas caixinhas são lindas e contam histórias. Mas também é verdade que já não tenho espaço para dar continuidade à colecção, são elas e os livros que me evidenciam que moro numa casa pequena.

Encontrei também a minha antiga professora de Yoga que uns meses antes da pandemia tinha perdido, por responsabilidade minha. Fartei-me das senhas que me obrigavam a chegar meia hora antes, do som do ciclying que rivalizava com os mantras, da sala absurdamente cheia onde tínhamos que lutar para colocar o tapete. Aquela prática era um absurdo naquele espaço. Depois foi o que se soube, fecharam os ginásios e nós também nos fechámos. Disse-lhe o que pensava e para minha felicidade ela não só compreendeu, como sentia o mesmo e está agora num espaço mais pequeno, mais consonante. Marcámos reencontro em setembro.

Não sou muito de procurar coisas perdidas, acho que se partiram deve ter sido algum vento que as levou por uma razão que conheço ou desconheço. Mas estes achados souberam-me bem.

~CC~




quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Novos sabores

 

Doces. Além da pavlova?!

Tenho um calcanhar de Aquiles, chamado gelados. Logo, não perco nem um quilinho no Verão.

Hoje provei um novo sabor, designado como laranja vermelha. Achei graça à combinação das duas cores, para além de ter ficado demoradamente a imaginar o fruto. Não entrou para o TOP 3 porque é difícil destronar o pistachio, o café e o abacate. Mas conseguiria colocá-lo no TOP 6.

~CC~


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Teoria Geral da Relatividade (II)

 

As selfies que a toda a hora o presidente português tira, frequentemente em fato de banho e na praia, são a demonstração da sua simpatia, as imagens da primeira ministra finlandesa a dançar são a demonstração da sua imoralidade e, em consequência, da inépcia para o cargo.

~CC~

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Teoria Geral da Relatividade (I)

 

Uma bandeira verde na praia do Meco é igual a uma vermelha no Sotavento Algarvio.


~CC~

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Para acabar de vez com a ideia romântica de...

 

Gosto muito de férias, tanto quanto de fins de semana compridos.

Mas não tenho delas uma ideia romântica. Quando as analiso, penso que alguns dos maiores desafios e provações que passei nas relações humanas (amigos, familiares, namorados) ocorreram durante o seu curso. É quando o tempo amplia os espelhos e o nosso olhar ao demorar-se neles pode doer. E quando o olhar sobre os outros também se demora mais nas horas que antes não se tinham e os seus defeitos nos aparecem tão claros que nos perguntamos porque não nos apareciam antes.

Estas tiveram momentos desses, em que a zanga foi o mais pleno e cru dos meus sentimentos. A zanga produz em mim dois outros derivados, a vontade de agressão ou a vontade de indiferença. Perceber que nem um, nem o outro me fazem bem, exige-me um esforço de domínio, de contenção, de análise interna que me deixa igualmente exausta.  Tenho que ir ao fundo para me limpar, me lavar, me renovar. Faço-o sem recorrer a especialistas nem a remédios milagrosos, nem às terapiazinhas de bem estar que por aí proliferam, mas custa, posso dizer-vos que talvez o consiga pela minha própria formação. Não sou assim partidária daqueles que afirmam que não conseguimos advogar em causa própria, se temos as ferramentas porque não as vamos buscar? Como um pedreiro faz o seu próprio muro, também eu fui cá dentro buscar as minhas armas. E tenho claro que no dia em que não conseguir, procurarei ajuda especializada, não me deixarei ficar a morrer sufocada na minha própria dor, nem farei dos outros a minha muleta.

Isto obviamente sem renegar o papel dos amigos, que no carro, no telefone, no café, nos ouvem carpir as mágoas e nos aconselham como podem. Não é pelo que dizem que nos apoiam, mas pela forma como nos ouvem, saber ouvir é o fundamental, tanto na amizade, como no amor.

Banhos de mar e crepúsculos, danças e espectáculos, longos passeios a pé, sim, também os tive. Mas isto não é o facebook dos famosos, que me perdoe quem foge das palavras dor, ansiedade e tristeza.

~CC~





domingo, 21 de agosto de 2022

Rumo a casa

 

Um bom motivo para voltar.

Venham também!

~CC~


sábado, 20 de agosto de 2022

Na demanda do Crepúsculo

 


Nunca me canso desse espectáculo que a natureza produz de forma gratuita e disponível a todos que queiram ver e sentir. No Verão os crepúsculos são ainda mais belos. Estão a acontecer cada vez mais cedo, é preciso saber bem a hora a que a bola de fogo doce mergulhou no dia anterior para não o perder no dia seguinte.

~CC~



quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Quase assim como agora

 

Viveria assim a semana toda, de chinelos, vestidos largos e macacões simples. Assim, a acordar com o mar da janela, a molhar na sua espuma os pés, a falar de mansinho com os gaivotinhos e a espreitar as tiras de pano que volteiam no ar com estes equilibristas do vento e da água. Poderia ler, escrever, conversar com as visitas, alguém que se demoraria um pouco mais. Não seria bem esta casa mas teria assim um terraço como este, capaz de nos lavar a alma, enxotar as lágrimas, renovar os sonhos. Teria este rapaz que todos os dias no café me diz a sorrir "bom dia, seja bem vinda", naquela sua voz de açúcar que é lá do outro lado do Atlântico.

Depois escolheria um dia da semana para vestir roupa bonita, colocar brincos, sapatos de meio salto, uma fita ou um gancho no cabelo e descer à cidade para ver um filme, um teatro, comer um gelado, visitar as livrarias.

Uma vez por mês iria para mais longe, um festival, um evento, um congresso, a visita mais prolongada a um familiar, um amigo. A mala um pouco mais composta, a vontade de viagem, aquele sentimento da casa ficar para trás e a estrada se desenhar à nossa frente.

Tudo tão pequeno, tudo tão grande.

~CC~


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Flor de Sal

 

A flor de sal não é uma flor mas uma pirâmide muito fininha de cristal, a boiar nas águas salgadas das salinas, tão estranhamente frágil quanto sólida. Entre os nossos dedos ou no limiar dos nossos lábios não se desfaz logo. Enquanto o sal se deposita em camadas no fundo, ela flutua solta, leve.

Forma-se nas horas de sol mais intenso entre os meses de Maio e Agosto, em Setembro já esfria um pouco, a não ser que o mês seja quente. Exige uma apanha manual e demorada, com um apetrecho próprio, num horário específico. 

Tem a delicadeza das coisas belas que exigem cuidado, tempo, esforço. Diria que nisso é parecida às relações humanas, pelo menos com aquelas que perduram.

~CC~

domingo, 14 de agosto de 2022

Respirar

 

Flutuando na água saturada de sal, depois com o corpo coberto de argila, e novamente entrando para me lavar na água salgada, não valorizei apenas aquilo que queria fazer e fiz, como lamentei tudo o que em cada Verão quis fazer e não fiz. Tantos desejos tolhidos, tornados quase ridículos, feitos ruir. Logo eu que podia tantas vezes ter rasgado o céu como um cometa, afinal fui tantas vezes um pirilampo, uma luzinha trémula na noite. E em nome de quê, pergunto-me. 

Mergulhei no mar entre os pingos de chuva, sem ouvir nenhuma das vozes que me puxava para trás, afinal o sol acabou por me visitar também e a tudo agradeci e com tudo me misturei e ao cansaço disse nada, vencendo-o cada vez que fechava os olhos e sentia-me a respirar.

~CC~