sábado, 28 de setembro de 2024

Cinco conchas e um último banho de mar

 

Finalmente a praia grande, a da areia fina, bem alojada na minha memória dos dias felizes. Creio risível ter claustrofobia nas praias pequenas ladeadas por rocha que num instante se fazem a pé e em que se parece sufocar no ínfimo espaço para estender a toalha, não obstante a sua beleza. Rio-me de mim mesma mas respiro bem melhor nas praias grandes que não parecem ter princípio nem fim e onde basta caminhar para encontrar espaço. A cor deste mar é tão bonita como a cor do mar na minha terra e tem uma transparência e uma calmaria que me faz sentir tranquila e em paz. Tenho consciência que o Verão está a acabar e que o meu número de banhos de mar ficou numa média muito aquém do amor que lhe tenho. Como tal, entro na água fria para lhe sentir o sal, suspeito que pela última vez. Venho despedir-me, murmuro. Não há peixe nem gaivota que me responda. 

Encontrei um desenho de conchas na areia, eram grandes e bonitas. Quem apanhou conchas tão belas e as deixou ficar?! Trouxe cinco, deixei cinco para o próximo que as queira levar ou para o mar as engolir de novo. Não gastar tudo, não consumir tudo, não ter a avidez das coisas. Quase ninguém está nesta praia sozinha como eu, não anda pela cidade, não se senta para almoçar onde lhe apetece, às vezes sinto que me olham com pena. Mas eu sou feliz a conversar comigo, são longas conversas de mim para mim, momentos de introspecção absolutamente necessários para escavar e encontrar-me.

Cinco conchas e um último banho de mar.

~CC~



quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O Algarve no Outono


Olhando para o lado direito a vista maravilha-se, que lindas enseadas que se recortam nas rochas, deixando aqui e ali passar o mar. Quem não viria até cá olhando para a foto, provavelmente o que as agências de viagens mostram. Não olhem, contudo, para o lado da terra, deixem apenas os vossos olhos poisados nas ondinhas de espuma e no horizonte.

Se virarmos o rosto para a terra, o monstruoso cenário aparece e retira-nos qualquer suspiro maravilhado, são dezenas de prédios de várias cores, algumas bem feias, amontoados na desordem que foi a construção entre a Praia da Rocha e o Alvor. O Outono levou os banhos de mar e no cinzento da paisagem o lixo aparece inclemente, os buracos da estrada tornam-se visíveis e o verde das falésias aparece descolorado e tristonho. Não quero pensar para onde correrão os esgotos desta enorme malha urbana, a maior parte vazia e a outra parte habitada por quem vem com as promoções de final de época.

Na verdade quase não oiço falar Português, o Inglês é a língua franca destes aposentados ingleses e americanos que salvam os cafés e restaurantes de uma falência previsível, talvez alguns sejam alemães. Os empregados de mesa também falam Inglês mas são predominantemente asiáticos. Alguns deles insistem na praia e há alguns na água, afinal foi para isso que vieram, não importa o chuvisco. 

O Inglês proprietário do restaurante onde almocei e onde só havia falantes de Inglês fez questão de usar o seu parco português para falar comigo, talvez afinal ele tenha chamado Jacarandá ao lugar na expectativa de se cruzar com povos latinos e aspirar outros perfumes. Já eu devia ficar mais tempo para praticar o meu Inglês sem ir a Inglaterra. 

~CC~



quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Não podemos ignorar!

 

O homem cresce* e da sua boca saem palavras fortes, decisivas, assustadoras. Cada uma delas é um lamento por mais uma bomba, mais uma criança morta ou que ficou sem pais ou sem casa. Cada palavra dele é um alerta para o ambiente, os países desfeitos, as fronteiras dos tratados ultrapassadas, a vida humana sem qualquer valor. Mas ontem ele disse o que não queríamos ouvir: a ONU já não tem poder para quase nada e precisa de ser refundada. Maldito poder de veto, na sua origem o mundo já deturpado.

Quando nos desiludimos, tendemos a querer partir, não deixar cá crianças ou nos alhearmos de tudo. Mas não é a solução, temos que educar as nossas crianças para erguerem a sua voz nos locais em que o podem fazer, nós próprios o temos que fazer. Eu também fecho os olhos, eu também mudo de canal muitas vezes, eu também me sinto impotente, eu também não sei bem o que fazer, só sei que não podemos ignorar.

~CC~


* António Guterres

domingo, 22 de setembro de 2024

Anos 60

 

   

Inacreditáveis aqueles gritinhos  de fundo. Garanto que não era eu pois tinha acabado de nascer. 

~CC~

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Não vem no manual

 

Acontecimentos esperados e inesperados em sucessões tristes, pequenos lampejos felizes, tudo na vertigem de uma semana intensa, veloz.

Perco pessoas queridas, vejo pessoas queridas perderem pessoas queridas. Creio que afinal é esta a maior dificuldade da idade, muito mais dolorosa do que eu já não conseguir caminhar para além dos 7 Km, ter medo e vertigens nos pontos altos, desistir antecipadamente dos trilhos que os mais novos querem fazer e fraquejar antes das viagens de avião. O que são as rugas no espelho quando comparadas com a ausência dos seres amados, com esses lugares vazios que eles deixam, como se fossem buracos escavados em nós que nenhuma terra consegue tapar?! E como consolar quem passa pelo mesmo que nós e nos é tão próximo? Que palavras escolher, que perfume colocar no abraço, que podemos oferecer que seja esperança e apoio para o passo seguinte?

Não vem nos manuais de envelhecimento, muito menos dessa coisa chamada envelhecimento activo, mais uma tontice da modernidade.

~CC~



domingo, 15 de setembro de 2024

É assim que eu rezo

 

Poderia passar todos os crepúsculos a ver o modo como as plantas e as flores ondulam ao vento e as cores se combinam em diferentes tonalidades de céu. Poderia dizer-lhes sempre o que lhes disse: sem vós a terra seria um deserto, eu seria um deserto. 

E não obstante me apetecer colher aquela rosa, deixei-a ficar, assim mais pessoas poderão desfrutar do seu vivo vermelho carmim.

~CC~

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ouvido ali (I)

 

Esta vila dista apenas uns 12km da minha cidade e ainda assim o ambiente de café é completamente diferente, todos se voltam para mim quando entro e não tenho dúvidas de que todos se conhecem. 

- Então a senhora já foi dar sangue?

- Eu não... que me faz falta.

- Mas também faz falta a outros.

- E acha que eles aceitam sangue ruim? É que o meu é mesmo desses!


Nota: apeteceu-me perguntar-lhe qual a percentagem de ruindade...se ela referisse uns 30% diria que é sangue comum, podia ir. 


terça-feira, 10 de setembro de 2024

Agora preciso de ensaiar pequenos passos de dança

 

A minha vida desenhou-se num percurso irregular mas com uma missão bem clara, nem lhe chamo profissional pois também muito tinha de pessoal. Nas fases boas e menos boas, com tropeços e quedas, nunca me perdi. E aqui e ali recebi o feedback desejado, aquele afago que chega do outro lado e nos agradece pelo papel que desempenhamos. Houve mesmo quem tivesse dito que estava à vista que eu amava o que fazia. Fui-me reforçando a cada conquista, a cada êxito. Não obstante, percebi também que se até os génios chegam a um ponto em que o caminho não é mais ascendente e se esquecem deles e do seu papel, também tudo o que disse, fiz ou escrevi, seria na minha área cada vez menos relevante. Aparecem outros a dizer o que dissemos há 20 anos mas é como se fosse a primeira vez que alguém o diz. A princípio não é fácil aceitá-lo mas depois sim e por isso deixou de doer.

Mas ainda Agosto estava a terminar e chegou um vazio grande, imaginem um poeta perdido das palavras, um actor que já não consegue representar, uma mãe que já não consegue cuidar, um piloto com medo de voar. Foi assim que senti o novo ano lectivo, um deserto a desenhar-se na minha alma, como se a água tivesse acabado. 

Ora o que nos distingue é o cérebro e o coração que colocamos nos trilhos em que nos movemos, toda a gente faz coisas, mas o modo como as fazemos faz a diferença junto do outro. Um empregado de café no modo como fala connosco, um médico que nos atende, um funcionário no balcão das finanças, o desempenho de cada função pode ser baço ou brilhante.

Durante dois ou três dias senti-me muito triste, perdida e com um inequívoco desejo de parar. E foi só quando compreendi o meu cansaço e me perdoei por ele que fui capaz de retomar lentamente o curso da vida. Estes acontecimentos têm sempre o condão de me fazer entender os fracos, os vencidos, os tristes. Foi um treino de humildade e empatia. Mas agora preciso de ensaiar pequenos passos de dança.

~CC~


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Sobre compras...mas não sobre ananases

 

Ela torceu o nariz num esgar, fechou por um bocadinho os olhos e por fim pegou no saco com as pontinhas dos dedos, quero dizer as unhas enormes e pintadas de vermelho. Por fim, enojada, tirou um fraco de álcool gel debaixo da caixa registadora e esfregou com alívio as mãos. 

Contudo, o saco tinha apenas duas douradas frescas. 

Vinha para casa a pensar no seu repúdio e lembrei-me que há muito tempo que de facto não vejo jovens na peixaria do supermercado. 

~CC~

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Esse desejo de escape e felicidade


Arrastava um fardo de feno às costas e um cajado na outra, subindo lentamente a rua inclinada, a bem dizer a única que subindo e descendo passa lugares justapostos, só diferenciáveis pela placa toponímica.  Não irá por certo à Casa das Artes na sede do concelho que exibe uma exposição fotográfica sobre uma ilha de Cabo Verde nem ver a exposição sobre o humor na casa brasonada. Provavelmente, de quando em quando irá ao mercado lá abaixo ou a uma consulta no centro de saúde e pouco mais. Agradeço-lhe em silêncio não ter partido, quando aqui estamos percebemos muito melhor o que é um país que se aglomerou junto ao mar. Quase não vemos ninguém, parece haver apenas uma meia dúzia a juntar-se no único café-taberna num raio de muitos quilómetros. Há uma família que já corta lenha para o Inverno e a amontoa na frente da casa, imagino que daqui a pouco não poderá haver noites sem a lareira acesa, já que a humidade se faz já sentir ao cair de uma tarde de fim de Verão.

Naquele lado da serra não há aldeias idílicas como as que veremos depois com a placa identificativa da rede das aldeias de xisto, são apenas casas à beira da estrada, umas mais feias do que outras, a maior parte substituiu o granito ou o xisto pelo cimento, era isso a modernidade e a comodidade, contudo, esses materiais mostram a sua erosão e falta de adaptação às condições locais. De quanto em quando uma casa sobressai pela sua monumentalidade e cor e adivinhamos que atrás dela estão portugueses que foram para a França ou para os Estados Unidos. São também eles que vemos nas praias fluviais, grandes famílias que Agosto continua a juntar para matarem juntos a palavra saudade.

Apesar da moda do doce da terra se ter disseminado por todo o território (segundo a senhora da padaria foram eles a inventá-lo há meia dúzia de anos pois não havia nada que as pessoas pudessem levar...), é junto à arca de gelados que se mata a fome de açúcar e de mundo. Afinal um corneto é igual em qualquer parte deste país, com ele vem a ilusão de que somos todos iguais, embora a única coisa realmente comum seja esse torpor de Agosto embrulhado em desejo de escape e felicidade.

~CC~

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Creio que o seu nome é melancolia

 

Ver as nuvens de cima entontece-me, a última vez que aconteceu estava provavelmente num avião. Tenho a sensação que estou longe da terra e de tudo, imersa num lugar onde a neblina esconde por certo bruxas e fadas que gostava de saber escutar. Enviaram por certo o gato branco que por aqui vadia e fazem acender o candeeiro cuja luz sensível supostamente só se devia ligar à visão humana. Dos veados, apenas um bebé, só ele não ganhou ainda o medo dos humanos, corta-nos o caminho da estrada, muito rápido.


A vista é de cortar a respiração, de tão bela e ampla mas pôr do sol ocorre quase sempre imerso na mesma neblina que amiúde me invade o coração, creio, contudo, que nesse local específico, o seu nome é melancolia. 

~CC~