Joana fez um risco no chão para explicar ao marido que ele ficaria de um lado e ela do outro. Pode ter sido nos Pirenéus que tal aconteceu. Pode ter sido Joana a inaugurar com o seu risco a fractura que deixaria a península ibérica à deriva. Ou, em vez de à deriva, à procura de si mesma. Num lugar no meio do Atlântico, girando sobre si própria. Com ela milhares de seres humanos atónitos pelo desastre natural ou apenas cinco seres humanos, três homens e duas mulheres.
Em Vale de Barris na noite fria de Novembro, enrolados em sacos cama, assistimos ao milagre cénico que o Bando fez com o livro de Saramago, um livro que li aqui pela primeira vez.
O estranho fio azul que ninguém sabe o que é. A que nos conduz? A que nos amarra? A bandeira da Europa que o cão recusará no fim em definitivo. Este cão que no fim se liberta e com ele a voz rouca e magoada dos aflitos, dos sem nada, dos sem terra.
É um cântico amargurado que se ouve na encosta.
Só as mulheres de Saramago têm aquela força, a candura, a magia, a piedade. São sempre condutoras de destinos incertos mas não mostram medo.
Que linda é a lua nesta noite fria.
Há muito que penso que os nossos caminhos se deviam traçar por mar, não por terra. Este cão de Saramago, animal insano e ferido, metáfora de um povo. No final ele diz não, com voz magoada, dolorosa, rouca.
~CC~
Escrito a partir da peça Jangada de Pedra de José Saramago, peça encenada pelo Grupo de Teatro "O Bando".