sábado, 7 de dezembro de 2013

Do ciúme severo ao ciúme ligeiro...



Ainda me lembro do meu espanto quando começaste a ver com gosto programas de culinária. Fui ver. Era a moça de grandes olhos pretos e lábios carnudos. O modo como ela era tão dengosa a bater claras, lambia os dedos dos restos das massas de bolo e sorria com todo o corpo sempre que apresentava a sua obra.

Lembro-me de atentar contra um dos mandamentos e sentir inveja. Não é que a moça tinha posto os homens deste país na cozinha? Tantos anos de luta feminista pela repartição mais igual das tarefas domésticas tinham esbarrado em indiferenças várias e bastava uma morena para os colar à aprendizagem das receitas. Bonita, talentosa, rica. Mas não era ainda o suficiente, amiúde falava dos filhos e eles às vezes apareciam nos programas e falava também do marido e dos seus pratos preferidos. Havia assim ainda mais: uma família tão linda como a moça. Sabemos que o ciúme é mau e atiça o pior de nós mas não queria tanto, não me apetecia nada vê-la exposta em público como o contrário da perfeição anunciada. O marido maltratava-a, amiúde consumia cocaína, as colaboradoras enganaram-na. Só falta agora as marcas começarem a retirar-lhe os utensílios de cozinha como fazem com os desportistas apanhados pelo dopping. 

Não, o meu ciúme ditava coisas mais ligeiras como cair-lhe um cabelo no prato, as cascas de ovo nas claras,  ter uma nódoa no avental. Agora arrependo-me daquela dor no peito quando ele ficava a fazer de conta que decorava a receita de salada grega ou se espantava com as maravilhas do queijo azul. Resolve lá isso moça, estás quase perdoada.

~CC~

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