Rever Bergman no ciclo que lhe foi dedicado foi um mergulho na mudança do mundo que ocorreu no século XX, no comportamento dos homens e das mulheres sobretudo. Mas Bergman era um realizador europeu conhecido e tinha visto alguns dos filmes mais tardios dele. O ciclo que agora é dedicado a Satyajit Ray surpreendeu-me mais, a mim provavelmente a todos os que nasceram na década de 60, já que a maior parte dos filmes dele é desta década, sobretudo os mais conhecidos. Bergman e Ray, vivendo e filmando em zonas tão diferentes do mundo têm pontos de contacto quer do ponto de vista técnico, quer de conteúdo. E diria que sobretudo este é o cinema que vingava antes do cinema americano ter dominado o mundo. Os filmes são longos, a câmara demora-se sobre os rostos, foca os olhos, um pedacinho de boca, um objecto no chão, um pássaro numa gaiola. Não sei se se filmava tudo com mais tempo ou também se vivia com mais tempo, fica-me a dúvida. Certo é que o ritmo é totalmente diferente do cinema americano. O conteúdo de Bergman e Ray é o mesmo, as relações humanas, sobretudo entre homens e mulheres, o medo, a traição, o amor, a solidão.
Charulata, o filme da fila H de ontem. Meia dúzia de pessoas no cinema, muito menos do que no ciclo do Bergman. Ray é hoje um perfeito desconhecido, para mim também que me julgo minimamente amante de cinema. Os mais entendidos, os especialistas, claro, sabem muito dele. O filme é excelente na forma como mostra o domínio humano sobre a paixão em prol da lealdade, provavelmente do amor. O fósforo que risca e incendeia em contraste com a vela que arde lentamente mas que não se apaga. Dois jovens apaixonados renunciam a uma paixão em prol de um terceiro homem mais velho que ama profundamente (mas também silenciosamente e sem ardor) aquela jovem brilhante que é a sua mulher e que já não se encaixa no papel da mulher rica e ociosa da sociedade indiana mas que ainda borda chinelos e lenços para os seus amados. Demasiado bom, pacato e intelectual, o homem mais velho parece ter nascido para ser traído, tem uns olhos tristes onde se anunciam desde o primeiro momento todas as tragédias de que será alvo. Mas ao mesmo tempo a sua bondade é essa barreira onde param os futuros amantes, incapazes de consumar a traição. Habituados que estamos a encarar todos estes sentimentos de forma simples, quase esquemática, é bom ver alguém que retrata a complexidade real que todos estes sentimentos têm.
Mais uma vez, que bem se esteve na fila H, mesmo que sozinha num cinema vazio.
~CC~
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