quarta-feira, 24 de maio de 2023

A estrada do Sul

 

Certas partes da alma estão cheias de fantasmas. Estão na maior parte do tempo quietos, calados, dominados. Mas nem sempre, às vezes emergem num lamento, num gemido. Para os aquietar, preciso de me esforçar.

Certas partes das cidades vividas estão brancas, como se nelas não pudesse mais passar. Certos sítios tornaram-se lugares de uma tristeza que procuro a todo o custo varrer. Só quero evitá-los, fingir que não existem mais. Por vezes nada no passado chora, é só o passado no seu verbo de transição. Por vezes no passado tudo chora, tudo é raiva e dor. Quando essas sombras querem emergir, só queria nunca mais voltar, é como se alegria de certos lugares me tivesse sido roubada e tivesse que contornar aquele bairro, aquela rua, aquela praia, aquela sala de espectáculos. Se eu vir bem, de olhos bem abertos, se calhar já nem eram lugares felizes mas eram ainda meus.

Perdi a alegria da estrada rumo ao sul, essa estrada de estevas que tanto amei. Sobras-me tu e a tua saudade como alento dos quilómetros a fazer.

~CC~


5 comentários:

  1. Que belo pedaço de prosa CC, em mais um post com destinatário (in)definido.
    Um texto ao mesmo tempo profundamente vago para o leitor e profundamente intimo para quem o escreve. Comme d'habitude.

    Apesar de tudo, acho que continua a gostar do Sul; se assim não fosse já teria mudado de direção:)

    Deixe-me dizer-lhe uma coisa: quando a leio transmite-me aquela mesma sensação de quando oiço uma voz desconhecida vinda do banco de trás do autocarro ou do comboio, desejando a todo o momento que apareça uma oportunidade para me virar.

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    1. Joaquim, a destinatária sou eu própria a lamber as minhas feridas, como diz a Isabela Figueiredo, a escrita é a nossa terapia. Curiosa essa imagem do autocarro...

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  2. Sempre que saio de Lisboa, quando é ainda a segunda circular mas já o meu destino espreita, penso na possibilidade de seguir em frente, ir para norte onde ninguém me espera; ou mesmo para o sudoeste que guarda duas das minhas amigas. Atravesso a ponte a comedir o imaginário.
    Há contudo um caminho a que não desejo voltar, tão alegre e ansiosamente o percorri. É óbvio que nem preciso evitá-lo. Se lá passe hoje, ele não é o mesmo e eu sou outra.
    Não tenho como a CC esse apego a lugares, não costumo guardá-los e desinteresso-me bastante da paisagem. Sinto imensa saudade das pessoas, palpitam-me fora de espaço ou tempo e com fundura de raiz.

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  3. Ah Bea, acha mesmo que eu falo de lugares?! É toda uma geografia cheia de pessoas.

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  4. Fala de lugares sim, lugares a que algumas pessoas se apegaram e que, na CC, hoje, são mais elas que eles.

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