segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Resiliência - na própria pele



Comer uma maçã pela manhã foi a terapia certa para os primeiros enjoos da quimioterapia. Lembro-me de sair no Outono passado só para comprar as casanova, as minhas preferidas. Hoje não consegui comer uma maçã pela manhã, foi talvez a terceira tentativa para o fazer, sempre com evidente reclamação do esófago, não se desfaz ao ponto de passar por lá. É certo que na próxima sexta feira voltarei ao bloco para tentarem corrigir a situação, já que o estreitamento pós operatório não era taxativo. Prefiro, contudo, nesta como noutras coisas, imaginar que deixarei de comer maçãs cruas, tal como deixei de comer pão. A princípio a falta do pão era quase dolorosa e agora mal me lembro que existe. Consigo comê-lo transformado em migas ou torrado, nada mais. Também não posso beber café mas adoro cheirá-lo, há uma colega que passa por mim e me diz sempre para sentir o odor do café dela e é um gesto tão bonito, ela tem uns olhos verdes que sorriem quando o diz. Também beijo o meu amor depois dele beber café.

Ensinei muito o que era a resiliência aos outros, agora ensino-a a mim própria. 

~CC~

domingo, 29 de outubro de 2017

Os poetas



Ele disse muita coisa. A viagem demora 3 horas e ele tinha oitenta e um anos e meio, por isso muito para contar a uma desconhecida à qual tinha roubado o lugar à janela mas que insistiu em devolver.

De tudo o que disse registei sobretudo o momento em que relatou que há dois ou três anos ainda fazia a viagem mais vezes de carro do que de comboio. Era noite cerrada, já passava da meia noite e o carro avariou em plena auto-estrada. Ele, tal como ainda hoje, sem telemóvel (não lhe faz falta), acenava aos carros sem que nenhum parasse. Mas não teve medo, pelo contrário, era Verão, sentia a aragem da noite e ouvia os bichos pela calada da noite. Ficou ali a fruir do momento, a ver a lua, a sentir a brisa ligeira, a ouvir as cigarras e os grilos e outros animais cujo som só vinha da sua passagem pelas folhas. E depois lá parou alguém, passado algum tempo, muito tempo. 

Mas o que ele guardou não foi a mudez do seu carro vintage que ainda hoje usa para as voltinhas na cidade mas a poesia da noite de Verão. Há por aí tantos poetas escondidos no interior das pessoas.

~CC~

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Tanta solidão



A médica de família desabafou, entre a tristeza e a indignação:

- Hoje atendi uma velhota que veio cá só para me dizer que comprou um soutien novo.


Das coisas que mais me impressiona é a solidão dos mais velhos, os dias e dias que passam sem falar com ninguém, a televisão sempre ligada, a tentação de fazer a chamada para o programa de televisão onde sorteiam qualquer coisa, por vezes com a única intenção de interagir com o mundo, saber-se vivo. Soubessem, sentissem os mais novos que também chegarão lá, a esse lugar tão difícil, e correriam a ligar aos avós.

É tanta, tanta a solidão.

~CC~

domingo, 22 de outubro de 2017

Cansaço feliz



Fico espantada comigo própria e com a forma como mudei a minha exigência, quer para comigo, quer para com os outros. Dizem-nos que ter a fasquia muito alta é positivo mas a mim sempre me trouxe grande insatisfação. Foram raras as vezes que apreciei em pleno um congresso, saí contente de uma reunião, realizada de uma aula. Alguma coisa estava sempre em falta: em rigor, em qualidade, em organização, em feedback, na avaliação. Muitas vezes nos outros, mas também em mim e comigo. É verdade que durante muito tempo isso foi o motor para me procurar superar e incentivar os outros a que se superassem. Mas hoje sinto que cheguei ao fim desse caminho, que já não é assim, que agora valorizo outras coisas.

Depois destes três dias de congresso sinto-me bem, realizada e feliz. E não é que este tenha sido melhor do que os outros em termos de qualidade, possuiu exactamente os mesmos defeitos, os mesmos problemas, as insuficiências conhecidas em termos de contributos para a comunidade de saberes e para os profissionais ao qual se destinava. Poderia dizer que fazer parte da organização do princípio ao fim também muda a perspectiva das coisas, por dentro as falhas são muito mais compreensíveis. Mas não é só isso, não é bem isso. É mais o centro onde se foca a nossa atenção. E no meu caso ela está nos laços, na rede que estas coisas permitem construir. Está em cada momento informal em que rimos, dançamos e nos abraçamos, naqueles minutos em que nos esquecemos que uns éramos professores, outros alunos, uns professores doutores e outros profissionais acabadinhos de formar, na forma como despimos pergaminhos, estatutos, papéis. Nos abraços dados a quem já não via há tanto tempo. No coro de velhotes alentejanos que veio partilhar connosco o jantar antes de cantar para nós e connosco, na moça do acordeão que nos pôs a dançar, no espanto que foi ver os alunos a fazer pequenas peças de teatro, em ver que não estão lá só os mais afoitos mas também os mais reservados, os que mal acabaram de chegar. Dizem-me que me canso e canso é certo. Dizem que não devo, não posso. Mas este já não é o mesmo cansaço que era, um cansaço tantas vezes recheado de desgosto do mundo, este é agora um cansaço feliz.


~CC~






quarta-feira, 18 de outubro de 2017

E não andam a ler-me...



Os miúdos...não é que não andam a ler-me mas ouviram de alguma forma os meus lamentos, leram a minha tristeza...e viram umas notícias?

No final da aula, a pergunta...podemos colocar uma questão à turma? E queríamos que a professora ficasse também. A proposta é de angariação de fundos para as populações vítimas dos incêndios. Não sabem bem como, para onde, que coisas...não estão por um lado habituados a organizar-se, por outro é mesmo difícil pensar nas formas viáveis e justas de chegar às pessoas. Mas a vontade está lá. Não são os mesmos do outro dia, é outro curso, outra gente, outra sensibilidade. Afinal não há "os jovens", há muitos jovens, alguns mostram uma face generosa perante a brutidão do mundo. Agradeço-lhes a esperança.

~CC~

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

De pernas para o ar



O mundo, sabemos, anda de pernas para o ar e às vezes parece-nos completamente incompreensível.

Ontem foi um desses dias, um país a arder em Outubro.

Não consegui dormir e não estava perto de nenhum incêndio. A dor dos outros mexe muito comigo, perturba-me. Quero proteger-me mas nem sempre consigo. 

Esta manhã havia uma grande discussão em pleno bar, eram alunos aos gritos, exaltados uns com os outros. Pensei que discutiam alguma coisa da actualidade, talvez mesmo o dia negro de ontem. Mas não, era apenas uns que diziam que Messi fumava charros e outros que o diziam absolutamente limpo de qualquer mácula. Atónita, não consegui compreendê-los, ouvia o que diziam, mas não percebia de todo a importância do assunto. Só pensava nos mortos de ontem, nesse modo estúpido de se perder vidas. E no alheamento deles a tudo, no modo como conseguem, como tanta gente consegue. Sei que se lhes perguntasse diriam que não podem fazer nada, não podem e como tal não é com eles. Tenho vontade de chorar, já não sei se pelas mortes de ontem, se por uma parte significativa destes jovens alheados de tudo com os quais lido.

~CC~

sábado, 14 de outubro de 2017

O lado lunar



Desde que a Susana escreveu isto sobre as lojas chinesas que ando a pensar no assunto. Mas nas últimas duas idas às ditas, a minha imagem sobre elas sofreu um forte abanão.

Tive durante muitos anos uns vizinhos chineses e havia entre nós cordialidade mas nada de confianças. Pedia-lhes para saltar da janela deles para a minha e assim entrar em casa quando me esquecia da chave, mesmo sendo um 6º andar (que loucura, penso hoje) eles acediam. As crianças e os jovens nunca vieram brincar connosco para o enorme terraço onde todos nos juntávamos, mas sorriamos e acenávamos e dizíamos sempre olá. Nunca lhes ouvi uma briga, uma discussão, um ralhete. Eram muitos mas tudo parecia funcionar na perfeição. Nesse tempo, nos anos 70 e 80 não havia ainda lojas chinesas, creio que o seu grande boom foi nos anos 90.

Rejeitei nos primeiros anos a entrada em qualquer loja do tipo, pensando que qualquer compra iria alimentar o trabalho infantil, coisa mais parva de se pensar uns anos depois, quando todos ficámos a saber que as grandes marcas (e caras) tinham as suas fábricas na china ou lá por perto. Depois de entrar foi a luta contra o cheiro a naftalina, agoniava com o cheiro e tinha de sair imediatamente. Certo é que agora cheiram muito menos. Como a Susana, tenho um companheiro que as frequenta amiúde, que gosta de se perder nas milhares de coisas que há por lá. Eu continuo a aguentar pouco tempo, mas vou sempre que é isso que se afigura o mais razoável e necessário. Sempre lhes admirei o silêncio, a cordialidade para com os clientes, o modo como toda a família se mobiliza para lá trabalhar e como as crianças são lá criadas até irem para a escola. 

Mas as duas últimas idas a estas lojas mostraram-me um outro lado ainda não visto e ou eles estão a aculturar-se ao pior do ocidente ou este lado mais escondido esteve oculto muito tempo. Numa delas ia jurar-vos que o empregado ou proprietário se estava a masturbar junto às meias e cuecas das senhoras, certo mesmo é que quando eu entrei o homem, meio estremunhado (a loja estava vazia) puxou o fecho das calças e abotoou o cinto. Parece coisa de filme, pois parece, mas acho que estava mesmo a acontecer. Fiquei à entrada a remexer numas coisas deixando-o compor-se, mas confesso que tive dificuldade em entrar e agir normalmente. Na outra, uma empregada ou proprietária estava simplesmente aos berros com um cliente, primeiro em português, depois quando ele saiu, ela continuou  em chinês com as outras colegas, tão mas tão alterada que pediu à outra para trocar de lugar com ela. Fiquei incrédula porque nunca tinha visto um homem chinês a gritar, quanto mais uma mulher. Se calhar não há povos que não sejam violentos e é verdade que há na literatura e na cinematografia chinesa alguma dessa violência. Se calhar eu era que não a conhecia, não a identificava, não a imaginava (as ideias que construímos dos outros). Ou então, como canta o Rui Veloso, temos todos um lado lunar, um vulcão adormecido, que a mim me apareceu assim de forma inesperada e mesmo inóspita no rosto de um povo.

~CC~








quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Mudar de pele



Já andam os dias a correr à minha frente, a fugir-me. Tantas reuniões para tão pouco proveito, deixá-las correr, não me importar em demasia o que não foi, o que podia ter sido, o que não consigo. Não é fácil, hoje disse ao colega que me pediu o texto que não o tinha conseguido fazer, que o melhor era não contar com ele. Mesmo assim ele disse: tu consegues. Rapidamente as pessoas se esquecem que já não somos as mesmas.

Já andam as noites a prolongar os dias, reclamando o direito a existirem como tempo de solidão e descanso. O dique a colocar entre mim e a inquietação. 

Uma pausa, a necessidade de respirar entre duas aulas, sentar-me a meio delas, mesmo que só um bocadinho. Nesses momento a plena consciência de que sou outro eu.

É o corpo, a sua sabedoria. Eu a escutá-lo, isso aprendi. Saber adiar, saber parar, deixar escapar coisas, cancelá-las se necessário. Aprender outra vez tudo quase como se tivesse nascido outra vez. Aprender o que posso e não posso comer e, sobretudo, como devo comer. Muitas vezes tem corrido mal. A dor, as dores, às vezes incompreensíveis.

Mudo agora de roupa quando chego a casa, como tu fazes. É como se com isso me obrigasse a um outro tempo, ao corte com o trabalho, a não voltar a ser o que era. Devia ser como um bicho e ter de vez mudado de pele.

~CC~




domingo, 8 de outubro de 2017

O factor P



Há um barzinho junto à partida dos barcos, junto ao rio. Foi lá que parei depois da caminhada, após semanas sem me mexer para além das lides domésticas e das aulas. Pedi um sumo de fruta natural que veio maravilhosamente apresentado num copo alto, com uma palhinha preta comprida e um pedaço de fruta seca por cima. Paguei dois euros e cinquenta pelo sumo, cuja quantidade era tanta, que tive que beber devagar.

No dia a seguir, numa das praias populares da região, também queria um sumo natural, mas o preço de quatro euros ou quatro euros e meio demoveu-me. Pedi um sumo de garrafa. Paguei por ele dois euros e cinquenta, o mesmo que tinha pago no dia anterior, pelo belíssimo sumo natural. Olhei para a praia de sempre, linda, para a Arrábida ao fundo, para o mar tão azul, pensei que a paisagem não devia ser cobrada no sumo, é um bem colectivo.

No dia a seguir, num jardim recentemente requalificado e num café também novo, bastante bonito e agora muito bem frequentado, o mesmo sumo de garrafa custou-me um euro e cinco, exactamente o valor que pago na cantina da escola. Não incluíram o lago e os cisnes brancos no preço, nem as crianças a brincar. 

Cobrar a beleza dos lugares de tal modo a torná-la inacessível ao cidadão comum, reservando-a para os com mais posses, para os turistas, para os afortunados da vida, é uma coisa que me repugna. E por ora isso depende apenas da moral de cada um, da pessoa que mora em cada empresário. O lucro fácil está em reedição.

~CC~







quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O dia e a noite



É de noite que os fantasmas voltam amiúde, aproveitando o meu ego desligado.

Duas noites de pesadelo. Numa, a morte a rondar, sempre a perseguir-me, a detonar em coisas tão concretas como os travões avariados, o cinto do carro cortado, o elevador sem freio. Sem nomes concretos de quem me queria tão mal, só as sombras, as suspeitas, esse irracional chamado mau olhado. Noutra, a traição sempre à espreita, um ente amado sempre rodeado de muitas amigas, a clarividência do que está à mostra mas o outro não vê ou não quer ver, essa atracção pelo abismo feminino que sempre o toca mais do que qualquer dor de outro ser mais próximo, às vezes do próprio sangue. Amizades que de dia são apenas incompreensíveis na sua estrutura relacional mas à noite se concretizam em traição efectiva. Seria demasiado simples pensar numa conversão do ciúme, é antes um mal estar pequenino que vem de muito longe e nunca morreu por completo, por mais que os dias difíceis o tenham quase apartado.

O que apagamos com tanto desvelo e cuidado à luz do dia, abafando sombras como quem tricota uma camisola, como é que a nós retorna em dor nocturna, desfazendo a malha feita.

~CC~

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Até gostei



Ri-me do que se desarrumou.

Esta tendência para a anarquia é crescente em mim. Ou talvez a capacidade de me rir das coisas.

Que bom foi ver a desorientação, o desnorte, a perplexidade de quem julga que todos os dados estão lançados e o povo é parvinho. 

A derrota do candidato do PS em Vila do Conde, da CDU em Almada, do PSD em Lisboa e no Porto.  

As proclamadas vitórias um bocadinho patéticas: meia dúzia de miúdos a gritarem pela Cristas em Lisboa, o tom zangado, quase justiceiro de Rui Moreira no Porto (era escusado), Salvaterra de Magos como uma miragem delirante do Bloco.

E todos a zurzirem no Isaltino que parece uma imagem desfocada de si próprio, que grande confusão há quando o aparelho partidário nada ordena. Todos a acharem inexplicável a vitória de um aldrabão como se não houvesse tantos assim na história, em sua defesa ele tem que cumpriu pena, outros (ai tantos) não.

Foi ainda a vez que votei com menor convicção, logo eu que acho mesmo piada é ao poder local. Sinal de que por aqui também um susto não tarda nada e vem mesmo a calhar. E nem um sinalzinho de um movimento de cidadãos, ai fosse eu mais jovem.

~CC~