quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Fora da concha



Dantes era reservada, durante muitos anos tímida. Gostava de me enfiar na concha e ficar a espreitar o mundo de lá. Protegia-me com a noção de que seria fácil alguém me magoar. Anos de sensibilidade à flor da pele.

E agora não.

Conto histórias minhas aos alunos. De como não me lembro na minha infância, de como a bloquei para não chorar por a ter perdido abruptamente, por ter tido de crescer tão depressa. Daqueles primeiros anos de aulas, daquele lugar no meio de um bairro de lata em que leccionei no meu segundo ano de profissão. Do menino com o rosto marcado pelo chicote do pai, da mãe que me queria dar a filha, uma menina doce de apenas seis anos. São histórias enfiadas no meio dos conceitos mas a propósito deles, ainda não me perdi a contar histórias que são só minhas e que não têm nenhuma relação com o que estamos a trabalhar. Ainda não envelheci tanto assim.

Mas perdi a reserva, o medo e a pele está curtida. De nada servia a concha, já me magoei tanto, acho que não me magoarei muito mais.

~CC~



terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Esta chuva chuvinha



Choveu ontem mas as plantas da minha varanda continuam secas. No Inverno raramente as regava e aguentavam-se.

Não estamos a ter a clara percepção do drama que se avizinha. Viver num mundo ou numa região com pouca ou nenhuma água potável irá afectar-nos profundamente. E aqui no meu sul, sobretudo a partir da minha cidade para baixo, chove pouco.

Acho que todos assobiamos para o lado à espera que passe, que venha um ano melhor, que isto seja passageiro. Como nós, os responsáveis pelos governos seja no centro ou no local fazem mais ou menos o mesmo.

Lembro-me da minha avó praticar o banho com águas correntes apenas ao Domingo e da minha mãe o recomendar duas vezes por semana. Eu agora quando não tomo um banho diário sinto-me desconfortável. E não preciso dele, suo pouco ou nada e no Inverno quando vou tomar banho estou absolutamente limpa. Que fazer comigo é a minha questão. Comecemos por aí, o que é que cada um pode fazer consigo. Só tomei até agora duas medidas pobrezinhas que nem sei se consigo manter. Eliminar o banho de domingo, a não ser que faça uma boa caminhada. Lavar o carro de seis em seis meses. 

Também podemos começar por um pequeno esforço conjunto, bastaria um pouco de imaginação criativa, uma rede social eficaz. Penso nisso, infelizmente entre milhares de outras coisas que penso e que me ocupam quase todo o meu tempo.

Esta chuva é chuvinha.

~CC~






quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Quarto com vista para a cidade (II)



Lisboa mudou tanto que a desconheço, sim poderia ser uma turista como nos perguntou a rapariga do hostel, divertida a chamar-nos turistas portugueses, com um piscar de olho. Foi curioso estar ali entre
entre os muitos estrangeiros ou mesmo todos estrangeiros que em pleno Fevereiro enchem as ruas da cidade ou tomam-na de assalto, conforme perspectivas mais ou menos optimistas sobre viajantes e viagens. 

Vivi na periferia da cidade durante mais de vinte anos, muitos deles trabalhando no seu centro, em pleno largo do Rato e depois na 24 de Julho. Mas quase nada sobrou da minha cidade, pelo menos no centro. Sou do tempo da eclosão nocturna do bairro alto, anos 80, ainda havia prostituição de rua em pleno bairro. Não sei dizer se a mudança é boa ou má, acho que há coisas boas e más. Certo é que fico pasmada a olhar certas lojas que só em Paris podiam existir, muito embora esse mundo me diga pouco. Mas já me diz um palácio em pleno Príncipe Real, antes fechado e agora aberto, cheio de exposições de objectos de design. Torço o nariz às muitas padarias portuguesas que estão por todos os cantos da cidade, mas é aí que a minha filha come os melhores lanches e almoça amiúde, logo é bom para os jovens sem muito dinheiro. Os cafés com scones, panquecas, granolas e demais coisas saudáveis em nada se assemelham aos cafés de bairro com pirâmides de chocolate e palmiers cobertos da minha adolescência. Mas são melhores, é comida melhor, confeccionada ao momento, com cheiro bom e bem apresentada, já não são os pires e as chávenas falhadas de outrora. 

Como qualquer pessoa que respirou pela pele uma cidade e a integrou no seu passado, é estranho que a procure e ela já não esteja lá, que seja outra. Mas como uma pessoa que se liga pouco a rotinas e não vive no passado, também me agrada que tenha mudado, que me surpreenda. 

~CC~








sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Para a Susana



Olá Susana (é mesmo o seu nome? Bem, isso pouco importa...)

Apenas leitores convidados?!

Que pena, o seu blogue era dos que lia com mais gosto, quase sempre voltando de lá com um sorriso, quando não a rir. E olhe que rir faz falta. Faz-nos, portanto, falta.

~CC~

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Foi a 14



Faz um ano.

Exactamente neste dia, um pouquinho mais tarde.

Lembro-me que também pingava e estava frio, não tanto frio assim, não tanto como neste Inverno.

Brincámos com o quarto que parecia o de um hotel e tinha uma bela vista para o Tejo. Alternava medo e confiança, alegria e tristeza, num carrossel de emoções. A enfermeira indicou que tomasse alguma coisa para dormir e assim fiz. Sentia um peso cá dentro.

A minha filha ficou comigo nessa noite e ainda a vi na manhã seguinte, lembro-me daquela sensação fria da entrada para o bloco, de a ver ficar para trás, de pensar o quanto gostava dela e dele.

A pessoa que entrou naquele dia naquele hospital a que saiu ainda sou eu mas um eu com a experiência de quase morte, com a memória daquele tempo, longo tempo de dor e incerteza.  Diz o ditado que o que não nos mata nos torna mais fortes, não sei, acho que não. Trago comigo a consciência da minha fragilidade, a noção de que o tempo não se pode medir a longo termo, o querer pouco e uma coisa de cada vez.

E ainda por cima inventaram que este era o dia dos namorados, logo um dia pouco provável para dar  entrada num hospital. Do dia seguinte pouco recordo, a operação demorou dez horas. Eles recordarão para sempre a angústia da sala de espera, eu para sempre ter ouvido falar da angústia deles. 

Faz um ano, deus meu, que longo ano foi este, parece uma vida.

~CC~








terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

São ainda assim



Chegaram depois de nós, um casal muito jovem, queriam almoçar e o restaurante estava cheio, pelo que o senhor ia registando os nomes. E perguntou à jovem como é que ela se chamava, ao que ela retorquiu "Francisco", depois, ante o meu rosto de espanto (ou sem ser por isso), lá corrigiu, colocando ainda assim um "Francisco e Beatriz". São assim ainda as mulheres, até as mais jovens. É uma dominação de séculos bem colada à pele. Tudo mudou muito, mas tudo mudou ainda assim bem pouco.

E como voltei ao hospital onde estive há umas semanas (coisas de rotina) lembrei-me do casal cuja mulher estava grávida e entrou rapidamente para ser atendida pela médica. A assistente perguntou ao homem pelo número de semanas da gravidez da mulher, coisa que ele, deveras atrapalhado, não soube responder. Elas engravidam sozinhas, pelos vistos também casam muitas vezes sozinhas (a julgar pelo vídeo que a minha filha me mostrou da Mia Rose a falar do "seu" casamento).

Parte disto é sem dúvida da responsabilidade das mulheres.

~CC~

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Volver





Que lindos, que novos, pouco mais que dezassete. Procurava outra coisa mas encontrei esta e fiquei presa nestes rostos, nestas vozes.

~CC~




sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

O amor é burro e não vem com anti-vírus



O amor comporta inevitavelmente uma boa dose de burrice, de cegueira do que é óbvio, ou talvez seja só generoso. 

E se o amor conjugal (que não lhe quero chamar entre sexos diferentes pois podem ser do mesmo) pode comportar essa maravilhosa dose de generosidade, o amor filial bebe (quase sempre) nele às colheradas. Por isso os filhos nunca nos pegam nada do que têm, por mais contagioso que seja, nunca deixamos de os pegar ao colo, de entrar no quarto deles, de lhes levar uma sopa, de os levar connosco no carro. Num primeiro momento até nos julgamos imunes, faz parte da inconsciência afectiva, depois, aos primeiros sinais do contágio, sabemos só que era inevitável, que não podia ser de outro modo. Infelizmente não é possível integrar no ADN do amor um anti vírus potente, capaz de salvaguardar as mães e os pais, tornando-os capazes de fazer canjas de galinha até ao fim, sem sucumbir.

E desta vez foi assim que uma maravilhosa viagem a São Tomé se transformou primeiro numa viagem a Córdova e uma viagem a Córdova se transformou depois num sofá partilhado numa sala pequenina, com toneladas de lenços de papel, enjoos, tosse e noites mal dormidas. E só o amor permite atenuar essa tristeza, matizar o mal estar, procurar ainda algum riso, pois só ele tem essa infinita generosidade... ou burrice.

~CC~






quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Dar-lhe de novo as boas vindas



Não tenho escrito, não tenho lido, pouco tenho comentado. É o trabalho a engolir-me mas só me perdoo porque estão rostos lá dentro, estudantes que oiço e apoio às vezes durante um dia inteiro, como foi hoje.

Mas tive agora um momento de alegria quando vi a barra do lado direito no meu blogue. É mesmo verdade que a Miss Smile voltou?

É como se um amigo de longa data me tivesse telefonado, não obstante não lhe imaginar o rosto, o corpo, o olhar (usará óculos?). É ela, tão igual a si própria como antes.

Só me resta dar-lhe de novo as boas vindas.

~CC~

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Com tortas e canções



Explico: não são apenas os dedos na massa, saber que o que que vamos comer foi feito por nós, é também o que nos rimos a propósito disso, as palavras que trocamos com pessoas, algumas que conhecemos, mas outras que não conhecemos de parte alguma. E as tertúlias após o almoço, sublinho que não são actuações profissionais, mas momentos em que alguém se dispõe a nos colocar a conversar, a dizer poesia, a conversar, ou tão só a escutar os nossos silêncios. Desta vez e pelo facto do Zeca Afonso ser um homem que viveu parte da sua vida nesta região, vamos lembrá-lo. Deixem-se assim ficar...fora de casa por um bom bocadinho de sábado.



Proceder à inscrição

~CC~

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O mês do pensamento mágico



Também me aconteceu como à Joan Didion que escreveu " o ano do pensamento mágico" e foi em Fevereiro do ano passado, ou terá sido em Setembro? Foi em Setembro e depois em Fevereiro e sim, provavelmente o ano todo.  Ela diz "a vida muda num instante, num dia normal".

Por isso senti um pequeno tremor quando chegou Fevereiro, uma arrepio que não era de frio, antes o regresso daquele medo sentido um ano antes, da memória da morte a rondar-me tão de perto que se houvesse um fio a dividir uma coisa da outra eu teria estado a 70% do lado da morte. Estive para escrever à equipa médica no Natal passado mas não consegui ver o meu postal entre tantas palavras de circunstância que iriam receber, talvez o faça agora, já que pelo Carnaval não costumam chegar postais.

Na minha ingenuidade de não ter clareza no risco que corria ou de facto de ninguém o poder saber com clareza, também eu tive pensamentos estranhos, meio mágicos. Um deles foi o de pensar que como nunca gostei do Carnaval seria um bom período para passar no hospital, pensando que tal estadia seria, como previsto, de uma semana.

Amanhã será dia do exame, aqueles que de três em três meses chegam com uma precisão infalível e um medo cortante. E estupidamente, por ser Fevereiro, o medo é um bocadinho maior.

~CC~