sexta-feira, 31 de maio de 2019

Espelho



A Bea e o Joaquim puseram-me a pensar.

Afinal qual é o meu risquinho no mundo? O que lhe acrescentei eu? O que quis dar ou deixar aos outros?

Olho-me ao espelho da segunda forma mais difícil que há: em fato de banho (nua, seria a primeira). Não sou magra nem gorda, não sou loira nem morena, não sou bonita nem feia, não sou alta nem baixa (para a geração de agora serei baixa), herdei curvas e um bocadinho de celulite da mãe, uma pitadinha de loucura do pai (para esta não precisaria do espelho). Fiz de tudo um pouco mas sobretudo estudei, estudei muito, como tantas outras pessoas. Como me interesso por muitas coisas não aprofundei nenhuma a ponto de me tornar uma especialista de referência ou sequer uma cientista de renome, publiquei umas coisinhas, fiz uma conferências, falei para muita gente, com muita gente, às vezes talvez tenha brilhado um bocadinho mas outras nem tanto. Não tenho encantos nem especiais talentos. Sou assim uma pessoa vulgar. Tenho quase vontade de chorar quando me confronto com esta realidade nua e crua, esta pessoa eu no espelho.

Depois chega até mim uma única palavra, uma única coisa minha que é forte, é boa, é poderosa. Resiliência, poder para enfrentar dificuldades, contornar obstáculos, vencer abismos, amar a vida. 

Mais uma vez venci as lágrimas que estavam a querer encher-me os olhos de uma tristeza tão tonta.

~CC~






quarta-feira, 29 de maio de 2019

Fim do ano


Transmitimos a ideia de que à sua maneira são únicos, que terão que deixar a sua marca no mundo, por mais pequena que seja. Acho que é a única coisa que fazemos mais ou menos bem. Este ano emocionaram-me duas vezes pelo valor do seu trabalho e correram-me lágrimas. Ontem foi uma delas. É o alento que vale, o que fica para além do ordenado ao fim do mês, o trabalho pelo pão necessário. É a poesia, mesmo quando servida em doses pequenas, ela é o outro sustento e, sem dúvida, o mais maravilhoso.

~CC~

domingo, 26 de maio de 2019

Desalinhados


As coisas estão de tal maneira que nos sentimos isolados se não tivermos um life style. Quase metade das prateleiras das livrarias já são dedicadas ao assunto, seja em modo de regime alimentar, de exercício físico, de cura para a alma ou de terapia comportamental. Foi por isso que quando em deparei com um livro de capa bonita intitulado "Faz o que te apetece", pensei que se tratava de um manual de auto ajuda, mas afinal é apenas o livro da Bimby. Afinal ter Bimby é um estilo de vida...

Gosto muito do Desafinado de João Gilberto e Tom Jobim e se pudesse pedia-lhes agora um hino para os desalinhados desta vida, para gente como eu que não tem life style, vai alinhando ali e acolá, conforme a geometria variável dos dias, dos sentidos, dos apetites. Ou será que não ter alinhamento é por si só já um estilo e posso elaborar um manual de auto ajuda? 

Quero acreditar que não, que os desalinhados não compram manuais de nada, deixem-nos estar assim, ao sabor do vento, de cada estação, do que vamos captando com as nossas antenas interiores, gigantescos motores de desalinhar.

~CC~


domingo, 19 de maio de 2019

Ser onda



Não fora a viagem de avião de 4 horas para cá e para lá e há muito que não tinha nenhum livro sobre o qual falar. Não ter tempo nenhum para ler é coisa que me faz ansiar pelos tempos da reforma, se é que ela esperará por mim ou eu por ela. Levei a "Vegetariana", do qual muito já tinha ouvido falar e se tornou reconhecido a nível mundial.

Leio muito rápido e o livro era absolutamente estranho. Proporcionou-me algo que me tem acontecido nos últimos tempos e não era vulgar em mim: não sei se gostei ou não. Tenho um amigo que me disse sempre que eu era das únicas pessoas que era capaz de usar a palavra detestar. E era verdade, ao longo da vida usei muitas vezes a expressão: detesto isso! Ele diz que a usava com tal força que ele até tremia (aí era um bocadinho exagerado). Lentamente esse poder de rejeição tem me vindo a abandonar, talvez seja a patine dos anos, a tendência para ver mais do que um lado em cada coisa. Só tenho pena que isso talvez me leve a amar menos também, detesto menos mas também amo menos. Falta-me a paixão. 

Mas há uma coisa que sei sobre o livro: não se esquece e um livro que não se esquece é sempre poderoso pois há muitos livros que li e sobre os quais não me lembro de quase nada, a história desapareceu no pó dos anos. Mas jamais esquecerei a história dos Cem anos de Solidão, dos Capitães de Areia ou dos Sinais de Fogo. Trago agarrada a mim a história de um livro pequenino e pouco conhecido: " Quem me dera ser onda", é de facto um dos livros da minha vida. E isso ainda me faz viver, quero muitas vezes ser onda.


~CC~




quinta-feira, 16 de maio de 2019

Oscilações climáticas



Vinda de um país mais frio não tive tempo de me habituar a este calor, entrei nele desadaptada e por isso e pela primeira vez em muitos e muitos anos senti o corpo reagir-lhe como se fosse uma agressão, fiquei com a garganta e os olhos secos, um cansaço enorme e uma vontade de me deitar no chão frio e ali ficar imóvel.

Parece que as oscilações de temperatura são de dez graus quase de um dia para o outro e que o Verão vai e volta como se apanhasse voos low cost com aquela facilidade da maioria dos jovens, nunca sabemos onde estão nem como voam com aqueles preços de loja de chinês (das antigas que as coisas têm vindo a mudar).

Se não há alterações climáticas (não mesmo?!) há por certo oscilações climáticas e só essas já nos deviam fazer pensar no que andamos a fazer a este planeta e a nós próprios. Confirmo que o meu corpo, como a minha cabeça, andam maltratados e um pouco perdidos.

~CC~

domingo, 12 de maio de 2019

Essa saudade



Na hora de fazer o jantar para as amigas Erasmus, houve beringela recheada, caril de camarão e cheesecake. Ou seja, não nos ocorreu nenhum prato tipicamente português. Não sei se é por ser oriunda de uma família da Diáspora, não faz parte do meu ADN o cozido à portuguesa, um bom salpicão ou sequer um pastel de nata. 

Mas no regresso houve um sinal. Aquela vontade de um peixe fresco sem molhos, apenas grelhado, quase sem azeite. E a nossa luz, a luz das nossas cidades. Mas foi apenas uma pontinha de saudade, como ela, podia ainda seguir mais viagem. Saudade forte, essa é sempre um rosto.


~CC~

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Periferia outra




Somos como eles, somos diferentes deles. 


É esta a geometria do estrangeiro, esta lógica do que se nos assemelha e do que nos distancia, do que nos fascina e do que nos afasta. E ao mesmo tempo que nos confirmamos mais nós também nos tornamos um pouco eles. É o sabor de certas coisas, as cores fascinantes das flores, o vento frio, o andar apressado, um certo modo de desviar o olhar. E a história, um povo que sofre para se tornar independente é sempre um povo épico, embora um pouco triste, há fado neste sangue, toda a proximidade que é possível criar com as periferias, os lugares periféricos, na beira dos mares que limitam a Europa. A distância resume-se no silêncio do mercado, parece impossível que um mercado possa ser assim calmo. 

É preciso ir com vontade de ver, de estar, ir a todos os lugares onde todos vão mas também fugir deles. Ir ao encontro de alguém também é muito bom, alguém que já lá vive, que é de lá ou que se tornou um pouco de lá, caso contrário habitaremos as margens, o centro do postal turístico, os não lugares. 

Sei agora o caminho dos teus passos. És tu, a mesma. E, contudo, alguma coisa será sempre diferente depois disto, nunca te bastou mas agora jamais te bastará mais o perímetro do quintal em que vivemos. O mundo não é nem nunca será a minha casa, para ti, outra geração, é-o muito mais. Nisso também reside a minha esperança, na luta que sinto que travarão para barrar o fechar das fronteiras.

~CC~






sexta-feira, 3 de maio de 2019

Meses depois


Abre os teus braços para que os envolva na minha saudade e a faça desaparecer num ápice.

Depois é só ir contigo perceber os caminhos dos teus passos.

~CC~

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Memórias de Pemba



Somos de todos os lugares por onde passámos? Ou só dos que nos ficam agarrados à pele?

Olho para as imagens de Pemba e não as reconheço.  Sim, é verdade que apanhei lá uma das grandes chuvadas da minha vida e fiquei molhada da cabeça aos pés, mas bastou uma hora para o sol voltar.

Foram as melhores mangas que já comi, a única estrela do mar que nadou comigo, os risos mais transparentes e alegres que vi dos meninos ao fim da tarde na praia, os entardeceres mais belos mas também rápidos, o calor que me foi mais difícil de suportar por causa da humidade. Os formandos mais educados que alguma vez tive, falando um português correctíssimo, mas também algo distantes, formais, quase todos homens, as mulheres professoras eram quase todas cubanas. Sabiam de cor textos, autores, teorias, em comparação com outros países, notava-lhes mais apetência pelo saber, mas dificuldade em debater. Os dois colegas com os quais viajava e trabalhava eram praticamente dois desconhecidos.

Foi também em Pemba que convivi pela primeira vez com muçulmanos, os proprietários da pensão em que estava. Convivi é um modo de dizer, os homens baixavam os olhos quando me falavam e as mulheres eram sombras que via ao longe, coladas às paredes. 

A cidade era um aglomerado de bairros completamente diferentes uns dos outros, havia uma parte de casas coloniais, grandes bairros africanos construídos em terra mas bem feitos, alguns bonitos, bem diferentes dos bairros de lata alguns subúrbios e uma orla junto às praias de casas novas, grandes resorts, alguns luxuosos, cheios de jardins muito verdes e frescos. Era grande, dispersa, nem bonita, nem feia, mas a praia, o mar, essa parte era pura beleza. E o mercado, o grande mercado onde tudo, mesmo tudo se vendia, era África pura.

O azul do Indico, a temperatura quente do mar, o meu primeiro amanhecer em África no meio de uma picada, os macacos que pulavam à frente do carro, em grande algazarra. Nesse amanhecer, as mulheres a caminharem , de enxada aos ombros, directas às machambas, eram sobretudo elas que as trabalhavam. Dificilmente saberiam que o primeiro de Maio era um dia seu.

O teu telefonema chegava sempre ao fim da tarde e lembrava-me que do outro lado do mundo alguém me esperava. E ao mesmo tempo que aquele lugar me agarrava, não sabia ainda o que me ficaria dele. Desejei depois muitas vezes voltar a Moçambique, pensei sempre que se algum milagre monetário me acontecesse, o partilharia com esse país, mais do que com aquele em que tinha nascido, é tão diferente. Agora, mais que nunca, como o precisam.

~CC~