quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Ò menina, nada mais fácil do que encontrar o seu cartão do cidadão! (parte II)


PARTE II (continua...pronto, prometo que só até à III).

O agente trouxe duas chávenas de chá a fumegar e fez um gesto de negação perante a ideia dela pagar o chá. Depois tirou do bolso da gabardina a garrafinha de aguardente e deitou um trago dentro do chá, perguntando-lhe se ela também queria dar graça ao chá. A menina não pode deixar de exprimir a sua rejeição. Já tinha perdido a aula e agora estava a perder a paciência: - Avance, avance, o que me quer? Mas o agente não parecia ter pressa. Disse-lhe que achava que já a conhecia, que o rosto dela lhe era estranhamente familiar. Noutras circunstância a menina teria achado aquilo conversa de engate, mas nestas não fazia sentido.

Vejamos, a menina não foi à manifestação dos precários na semana passada?
- Fui sim senhora e para a próxima haverá greve...não me diga que o senhor agente está ao serviço do governo e espia manifestantes!
- Olhe bem para mim, acha-me com cara de trabalhar para o governo? Faço uns biscates neste ginásio e pouco mais.
- No ginásio, que diabo, que há para investigar num ginásio?
- Você já viu os músculos desta gente, não me diga que acha que isto é dos batidos proteicos ou dos sumos Detox? Oh minha linda, mas em que mundo é que você vive?
- Eu quero lá saber, só vinha à aula de yoga para ver se me faz dormir melhor.
- Voltemos ao caso, a menina não tem o cartão do cidadão e quer entrar numa aula onde está a ministra da Saúde?
- Da Saúde? Eu dessa lingrinhas não quero saber, eu queria falar era com a do Trabalho!
- Agora que fala na Lingrinhas, tenho que lhe telefonar, beba o seu chá que eu já volto.

~CC~


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Ó menina, nada mais fácil do que encontrar o seu cartão do cidadão!


PARTE I (continua...)

Andava há muito tempo a dormir mal e a recusar as pílulas que o médico lhe queria dar, nem pensar em viciar-se nelas. Por isso e a custo lá se decidiu pela segunda receita: umas aulas de yoga. Não que acreditasse muito no efeito, mas mal não lhe devia fazer.

Fez tudo on line e lá chegou à primeira aula, estranhou, no entanto, uma espécie de Segurança à entrada quando lhe tinham dito que era só marcar o seu número de sócia e a barreira abria. O senhor, completamente anacrónico no seu fato e gravata, estende-lhe a mão e diz-lhe: - o seu cartão de cidadão, por favor. Era o que a menina mais temia mas arrisca a resposta: - cartão do cidadão para entrar num ginásio?!  Tinham-me dito que bastava o número de sócia...

Imperturbável ele responde: sim, a aula das 21h conta com a presença da senhora ministra, ninguém entra sem cartão do cidadão. Ela nem pensou duas vezes, tal o coração lhe saltou no peito, pensando na hipótese de uma conversinha com a senhora ministra, tinha muito a dizer-lhe: - ah, ela está aí, ainda bem, preciso mesmo de falar com ela! A voz do Segurança subiu uns decibéis: - tem mesmo que me mostrar o seu cartão de cidadão!

Lá teve que lhe dizer que o dito andava há dias desaparecido. O sobrolho do Segurança alterou-se e sacou um telemóvel do bolso pelo qual chamou alguém. A menina já não queria ir a aula nenhuma e disse que se ia embora, ao que ele respondeu: - não, não pode, teve um comportamento muito suspeito, temos que interrogá-la!

É então que ela vê chegar o segundo homem, a antítese do Segurança, barba e ar desleixado, uma gabardine que parecia não ver água há muito tempo, numa das mãos um cachimbo apagado. Com um sorriso estende-lhe a mão: - Agência do Ó, é um prazer. A menina indigna-se: - mas eu estou presa? E o agente que não, que nem pensar, estava ali apenas para conversar com ela, era uma pena era o bar do ginásio não ter imperiais, nem vinho, nem sequer um licor, só batidos proteicos e outras coisas sem piada alguma. Mas poderiam tomar um chá. A menina estava furiosa, mas na verdade tinha sede, um chá talvez não calhasse mal.

~CC~

Tudo começou aqui mas já anda por aí, a correr mundos e fundos.





segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Narciso



Em vez das duas vezes de semana de yoga tenho feito duas aulas por mês. Esta minha irregularidade faz com que nunca conheça bem os parceiros de jornada, em regra bem mais sérios e regulares. E alguns deles parecem conhecer-se há anos, combinam coisas entre eles e mostram fotos do fim de semana. Sou uma estranha.

Nunca tinha visto o homem que ficou tão perto de mim que quase quebrava a bolha dos 20 cm, o que me tornou a aula especialmente difícil. Primeiro, o senhor ligava o turbo sempre que a posição era complexa, ou seja, ouvia-se-lhe a respiração em grande esforço, o que não é comum nestas aulas que primam pelo silêncio. Depois trazia uma tshirt cheia de bonecos e frases, o que também não é vulgar na indumentária desta frequência quase zen. O pior é que estava tão perto que conseguia ler as frases. O título era "narcisismo" e por baixo coisas dos género "eu só me amo a mim", " eu sou o melhor", etc. Ainda por cima era de cavas. Estava espantada, passei o tempo a tentar concentrar-me.

Só no final da aula consegui ler as letras miudinhas que estavam por baixo das frases maiores a enaltecer o narcisismo, dizia "tudo tem tratamento". Ainda assim questionei-me sobre a utilidade de usar tal coisa. Só lhe perdoo se foi uma prenda do dia do pai, sabemos que mesmo que sejam pirosas, as amamos sempre. 

~CC~

domingo, 27 de outubro de 2019

Fuga



Ele diz-me que não sabe qual foi o dia mas foi de certeza no Outono. Foi nesse tempo em que a luz diminui e o frio chega, quando as primeiras chuvas assustam as flores e os pássaros.

Diz que também não sabe a idade da menina, embora eu lhe responda que isso é impossível. Não se pode ter esquecido, então ele aponta um intervalo, aí entre os 6 e os 8.

Digo-lhe que tem que saber as razões para a partida dela e ele fecha os olhos, posso então ser eu a ver que ainda há um vestígio de dor. Nega-me essa dor, afirma que até foi bom ter criado sozinho a filha, hoje mulher adulta e próxima.

As mães que deixam as filhas ao cuidado dos pais são para mim o maior mistério da humanidade. Não as consigo condenar, não as consigo simplesmente entender. E por não as conseguir entender faço-lhes a cartografia do abandono e da fuga.

~CC~

sábado, 26 de outubro de 2019

O milagre



Ela chegou à minha escola com o avental de todos os dias, coxeando ligeiramente, mas aos 85 com o mesmo brilho no olhar que deve ter desde menina. No saco, uma dúzia das suas plantas e muitas mais nas mãos dos três companheiros. Foi às 9h15m que nos encontrámos mas disse-me que de manhã já tinha andado a plantar, o que seria de manhã...

Os companheiros das plantas, um agrupamento informal e meio anárquico que resiste a ter mais do que um endereço de contacto, tem mais homens que mulheres mas é a ela que eles recorrem sempre que há dúvidas. E assim aconteceu naquela sessão, ela sabe tudo de cor, é uma enciclopédia. Cada planta tem uma função, um bem e às vezes um mal, é preciso amá-las e ter-lhes respeito. Tudo o que ela aprendeu foi com os antigos, pois como me disse mais do que uma vez, é analfabeta.

Mas foi o seu saber que curou as feridas de muita gente. É preciso que me mantenha por perto e a vá visitar um dia destes. Há pessoas que não fazem milagres, são elas próprios o milagre.

~CC~


domingo, 20 de outubro de 2019

O mundo todo



O congresso organizou-se no país interior neste fim de semana de frio e chuva intensos, muito nevoeiro também. Fiz pelo menos 300km pouco habituais, felizmente com mais colegas. Queria ter-me deixado contaminar mais pela pedra escura da cidade, pelos olhos das pessoas, pela beleza das árvores grandes que só mais a Norte se encontram, mas o desconforto do corpo não deixou.

Calhou-nos aquela moderadora que aposta na diferença. Nada de CV triviais, enviou-nos perguntas mais difíceis do que as que constam no questionário da última página do semanário Expresso. Fui deixando por responder até receber a mensagem de aviso, precisamente na noite anterior à minha comunicação.

Percebi que para metade das perguntas podia socorrer-me dos poetas que se infiltraram na minha pele. Para responder à pergunta sobre uma citação de um livro que dissesse algo sobre mim, era só viajar até aos bocadinhos da Sophia que sabia de cor. E ocorreu-me aquele de toda uma vida: quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que vivi longe do mar. E de repente um arrepio. Não era capaz de dizer isto num lugar tão longe do mar, o que sentiriam as pessoas dali, como encarariam isto? Risquei. Escrevi: terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo. Também era verdade. E assim, se ofendesse alguém, era logo o mundo todo.

~CC~

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Sim, já é Outono


Qual foi o dia exacto em que calcei meias? Em que tive frio de noite? Em que não consegui tirar os sapatos e andar descalça pela casa? Quando comecei a fechar a janela da sala?

Também tento dizer a mim própria que é bom. Tento agarrar-me à cor das árvores para amar a mudança de estação.

Mas a minha pele rejeita a lã, os pés rejeitam o aperto dos sapatos, perco os guarda-chuvas. E agora dói-me absurdamente o ouvido, latejando.

Custa-me, custa-me a habituar-me a esta transição. E não é propriamente pela chuva, pela chegada da chuva, em algures lugares de África chove muito.

É uma sombra, a chegada de uma sombra. É a minha luta para que não me engula, não me absorva, não me entristeça.

~CC~

domingo, 13 de outubro de 2019

Folia



Gosto desses lugares onde os escritores se mostram ao mundo. Mas respeito imenso também quem não se mostra. E há quem cante as letras dos escritores, dando-lhes ainda mais sentido. Por isso vou ao Fólio sempre que posso. Raramente dou o tempo por perdido. Magnífico, por exemplo, ver o presidente cabo verdiano que é poeta também a ler um texto denominado "A banquinha" (assim chamada em Cabo Verde, mas é "mesa de cabeceira" em português de Portugal e "criado mudo" em português do Brasil). Um presidente que esteve muitas vezes presente, não foi lá só ler os poemas dele, esteve várias vezes na plateia só a ouvir. Uma raridade nos dias de hoje em que as pessoas só vão às coisas para se ouvir a si próprias.

Ouvir ler alto quando quem o faz bem é muito bonito, as palavras soltam-se sonoras, saborosas, um encanto. 


Mas às vezes há limites, há exageros. E há autores que lêem mal a sua própria poesia. E há autores muito novinhos que já falam de si como se fossem um prémio Nobel. E mostram a sua agenda intensa como se a vida já lhes tivesse mostrado muito mais do que mostrou. Como diriam os nossos irmãos de além mar, o que é bom de repente fica ruim. Também há disso e é pena. E folia, folia eles têm pouca, parecem já ter nascido sérios e empertigados.

Gosto de escritores que para além de nos contarem a tristeza profunda que os habita, sabem rir.

~CC~





terça-feira, 8 de outubro de 2019

Podia ser outra



Quanto eu queria aprender a não dizer tão assertivamente o que penso. Quanto eu queria aprender a não ser tão transparente relativamente ao que sinto. Teria outro conforto, outra tranquilidade, a soberba da indiferença.

~CC~

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Notas breves da noite longa


Na Rua da Índia podemos falar de política se nos apetecer. Não amarrar este blogue a um formato foi uma decisão em prol da  minha liberdade. Se aprecio blogues temáticos e os que são bem focados numa linha editorial? Sim, claro. Mas não tenho vida para criar vários, se assim fosse, teria este e outro(s).

Breves notas da noite:

Discursos dos líderes da esquerda em geral equilibrados e bem construídos, excepção à nota da Catarina Martins sobre a Inclusão, uma indirecta ao Livre de que não gostei. Não sei se a coragem de uma nova gerigonça se irá sobrepor aos egos individuais.

Um PSD que com este líder resiste ao populismo, que ele não saia nem se renda à direita liberal e populista. É moderado e simpático, mas de quando em quando hesita e falha em questões relevantes.

Pena que seja uma mulher a sair da liderança de um partido político pois necessitamos de mulheres na liderança política, contudo, isso não pode falar mais alto, é mulher mas também pessoa e como pessoa disse-me muito pouco. O perigo é que o partido se vire para a extrema direita.

Gostaria de ver surgir um verdadeiro partido ambientalista, este não está preparado. Por isso não consigo festejar o seu crescimento. Na minha terra cresceu imenso, foi praticamente o único a lutar contra as dragagens no Sado, enquanto outros não apareceram, estiveram contra ou envergonhadamente a favor.

Triste ver chegar partidos de extrema direita populista ao parlamento, mostra que não somos imunes ao que se passa na Europa em termos de racismo e xenofobia. Afinal basta fazer uns cartazes insultuosos ou/e falar mal dos ciganos.

A abstenção não será toda igual, no outro dia ouvi uma crónica na rádio de um abstencionista confesso que quase me fez vacilar, extremamente bem feita e coerente. Quando a estudaremos?


~CC~


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Desgosto


Eu sou de um tempo em que os fascistas não se atreviam a distribuir propaganda na avenida central da minha cidade. 

Acho que tudo começou a mudar quando a CDU escolheu a cor azul como sua.


~CC~

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Da vida dos objectos



O sofá está velho e manchado.

A máquina de lavar roupa está presa com aquele clip que lá colocaste. O último técnico ditou-lhe sentença grave, preço exorbitante de arranjo. E ela lá continua a funcionar, tem dias, é verdade.

A máquina de lavar loiça só funciona com o programa económico, a baixa temperatura.

Há loiça com os rebordos falhados.

O tapete precisa de ir para a lavandaria, esteve aqui um ano sem ir a banhos.

O carro já foi a uma das lavagens anuais, tenho esperado pela chuva.

Sei que o programa que vi sobre o prolongamento da vida dos objectos me influenciou, mas já vinha de antes, não sei quando começou esta minha reserva. E se eu gosto de coisas novas e lindas. Nunca fui muito consumista nem deslumbrada mas gosto da beleza e estética das coisas. Mas ando à procura de novos equilíbrios. Afinal também eu sou um objecto partido e consertado.

~CC~