quinta-feira, 31 de março de 2022

Quantofrenia

 

Ela veio comigo até ao carro, bem bonito estava, lavadinho, parecia novo após a inspecção e os seus estafados oito anos de vida.

E disse em voz baixa: vai receber o questionário de satisfação, já sabe a escala vai até dez. Mas só pode preencher o 9 ou o 10. A principio nem percebi, mas depois ri-me. Mas ela falava mesmo a sério: e depois virá o telefonema da oficina e já sabe, é a mesma coisa. E digo-lhe uma coisa, se quiser dar oito, não atenda. Aí fiquei incrédula, será que despedem os que têm menos que 8?

E depois de muita insistência, lá atendi a oficina, a conversa a mesma, mas agora com 4 questões e a dita escala. Por mim tudo bem, 10 a tudo. Do outro lado, a mesma ansiedade: por favor, no questionário responda igual. Eu já nem queria acreditar,  disse-lhe que se fosse para ela fazer uma viagem de férias até ao Índico, dava 11 a tudo...mas creio que já não me ouviu, também deve haver um cronómetro a medir cada telefonema. 

Mas há alguém que acredite e se guie por esta maldita quantofrenia que tudo invadiu? Como viver neste mundo de "likes"? Eu já não sei. Tenho tantas saudades do quintal da minha infância, com terra, bolas de sabão feitas com canas de mamoeiro, flores com cola natural que pendurava no nariz, tudo a passar pelos meus cinco sentidos.

~CC~




segunda-feira, 28 de março de 2022

Só crianças

 


O menino chegou da cidade mais martirizada da Ucrânia, bem acompanhado pelo seu pai e pela sua mãe que rapidamente o levaram para a escola. A professora lembrou-se daquela menina russa que já antes tinha chegado e já dominava o português, poderia talvez traduzir, caso se compreendessem. E compreendiam, aliás às mil maravilhas, crianças quase felizes por estarem juntas. Se não se introduzir nenhum pauzinho na engrenagem eles serão só crianças estrangeiras, mais unidas pelo que é comum do que por aquilo que é diferente e estão longe, muito longe do desentendimento e do sofrimento que alguns governantes, apenas supostamente em nome dos seus povos, fizeram de mal. 

~CC~

domingo, 27 de março de 2022

Coisas de formiga com asas

 

Pergunto-me muitas vezes a razão para este trabalho claramente em excesso que em determinadas alturas me conduz à exaustão.

Atendendo à quantofrenia que nos mede a carreira académica em publicações e projetos internacionais, pouco se importando com a qualidade do trabalho pedagógico, pouco a pouco deixei de me importar com ela, já nem discuto nem me importo com subidas ao topo, fico doente só de pensar nas horas gastas a fazer o Currículo Vitae e deixo-o desactualizar com ameaça iminente de penalização.

Mas há um gosto que nunca me tiraram. Ver acontecer algo que junta as pessoas à roda da mesa da comunidade e saber que fui eu que o moldei entre as minhas mãos. Mesmo sabendo que em pontos é uma miséria.

~CC~

segunda-feira, 21 de março de 2022

Primeiro encantamento

 

Para ele foi um primeiro poema e para mim também um dos primeiros a acordar este deslumbramento pela poesia. 


Canção


Tinha um cravo no meu balcão;
     veio um rapaz e pediu-mo:
     - mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
    veio um rapaz e pediu-mo:
     - mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
     só não dei o coração;
     mas se o rapaz mo medir    

     - mãe, dou-lho ou não?

Eugénio de Andrade - Primeiros poemas.



domingo, 20 de março de 2022

Por estes dias...

 

Quando é que um sumo compal pequeno, bebido num café, passou a custar 1,75 euros? E um cappuccino 2,75 euros? Achava que na minha cidade os preços nunca iam subir como em Lisboa ou no Porto.  

Conversava eu com a empregada sobre o preço do dito sumo quando entrou um rapaz dos seus vinte anos. Perguntou se vendia uma dose de batatas fritas e qual o preço (batatas mesmo, não de pacote). Ela espreitou para a fritadeira lá dentro e disse que sim, que as podia fritar. E ele almoçou uma dose de batatas fritas e um copo com água.

Calei-me imediatamente com o preço do compal e do cappucino, até me envergonhei por consumir estes bens de que na realidade pouco preciso. Apeteceu-me dizer-lhe que podia pagar algum acompanhamento das batatas mas não tive coragem, é a dúvida de como ajudar sem ferir a dignidade de alguém ou ser intrusiva.

~CC~


quinta-feira, 17 de março de 2022

Poeira laranja

 

Com a idade os olhos ficaram cada vez mais secos, às vezes tenho de deitar-lhes lágrimas compradas na farmácia, algo absolutamente estranho, supostamente deviam produzi-las por si próprios, há tanto motivos possíveis.

Mas a minha luta centra-se no coração, ele é que não pode mesmo secar, tem que sobrar nele o dom de se emocionar. Às vezes olho-o e pouco se parece com o passarinho frágil da adolescência, esse que estremecia com a aragem, agora é vê-lo quase indiferente às poeiras laranja que atravessam os mares para nos poisar sobre as casas. 

E não há olhos que se atravessem no caminho que o façam estremecer. E nem posso culpar a poeira laranja.

~CC~

terça-feira, 15 de março de 2022

Primeira necessidade?!

 

Óleo?!

Há anos que não compro tal produto.

Hoje estava em grande destaque no supermercado como bem de primeira necessidade, como se fosse essencial à nossa alimentação. O que é me anda a escapar? O que é que não ando a consumir e afinal devia?

No trajecto para o sul, vejo olivais e olivais a perder de vista, pelos vistos azeite não nos falta. É o que consumo, penso que a meu bem, do país e da sustentabilidade (ainda que os olivais de cultura intensiva também possam matar o resto e nos caiba controlar isso).

Somos todos um pouco loucos, ou não?! Caso contrário não se iria esgotar o óleo porque alguém disse que não se produzia cá e iria rarear.

~CC~


sábado, 12 de março de 2022

março, 12

 

Não estava ansiosa naquela noite, sentia-me calma. Sabia que chegarias no dia seguinte, as pessoas diziam que a jornada costumava ser longa, mas tu quiseste nascer ainda de manhã, ali perto do meio dia, querias vir para almoçar.

Ainda hoje sinto a mesma calma quando te sei a dormir aqui em casa, a acordar depois de mim. Nesses dias é como se tudo regressasse a um lugar primordial e certo, como se a desordem do universo se atenuasse e eu fosse, sobretudo, e ainda, a tua mãe.

Depois vem a outra tarefa, a de aceitar a partida como elemento essencial de uma identidade outra, tecida de células que de nós tanto se alimentaram como se diferenciaram, incorporando do mundo o seu próprio vento, suor e riso. Saber que não faremos os caminhos mas que se pudéssemos iríamos enchê-los de flores para que todo o caminhar fosse suave, cheiroso e belo. Uma parte grande do amor é vontade de protecção, o outro, no seu oposto, saber conceder a liberdade que permitirá a quem amamos arriscar, perder, ganhar, porventura sofrer. E o amor é também ser tão feliz com a felicidade do outro que ela é nossa também.

Estou aqui ainda, foste e és parte integrante da força de lutar pela vida.

~CC~




quarta-feira, 9 de março de 2022

Convocatória

 

Precisamos outra vez de cravos.

Para estancar as espingardas e parar os tanques.

Que passem de mão em mão e encham os colos das mulheres e enfeitem os sorrisos dos homens.

Que gritem lá paz como outrora fizeram aqui, impedindo o derramamento de sangue.

Que venha novamente a Primavera. Que se convoque e apresente a esperança.


~CC~

terça-feira, 8 de março de 2022

De uma mulher para outra e para outra...



 TESTAMENTO


Vou partir de avião 
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos.

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com a voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais do que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem a minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrante
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

Ana Luísa Amaral



domingo, 6 de março de 2022

Da sua dor

 


Ela vê com os seus olhos de visão reduzida a guerra que chega a durar quase o tempo integral de um noticiário e abana a cabeça com a desilusão de quem já muito viu. Mas depois chora porque não consegue andar ligeira como gostaria e arrasta os pés e se desequilibra no vazio da sua idade. É assim a dor de cada um, algo que, contudo, comparamos, mostrando quão pequena é quando comparada com outra. E há nessa comparação toda a justiça e injustiça. Justiça porque a consciência de que não estamos sós no mundo é importante, fundamental para relativizar o umbigo com o qual vivemos. Injustiça porque a dor de cada um é parte da sua intimidade e não pode ser julgada.

Por isso mesmo digo também a mim própria, não é fácil estar aqui e viver a sua fragilidade progressiva mas é muito mais difícil estar noutros lugares, aqueles em que se deixa para trás tudo aquilo a que se chamava casa.

~CC~



terça-feira, 1 de março de 2022

Gigante

 

Como bem nos mostrou Nelson Mandela odiar nunca é a solução.

Faz-nos falta alguém assim, um gigante.

~CC~