sábado, 26 de julho de 2025

Uma barragem contra o Atlântico

 

A maré subiu uma primeira vez, obrigando a um recuo estratégico de alguns passos para trás. Depois começou a subir mais veloz, galgando a primeira elevação da praia com enorme facilidade, as ondas subiam e pareciam mansas mas tinham força suficiente. Cada um ergueu perto de si uma barreira tímida de areia, facilmente demolida pela vaga seguinte. E foi então, perante a possibilidade de um recuo tão grande que apenas sobrava a última duna, já com alguma vegetação, que despertaram engenheiros e engenheiras construindo covas e diques numa colaboração conjunta de sorrisos e palavras cúmplices. Usaram-se pés, mãos e baldes, cavando um fosso e depois uma barreira e depois um fosso. E foram crianças, homens e mulheres numa impressionante comunidade instantaneamente construída para salvar o areal e a tarde de Verão. Se as pessoas fossem sempre assim, o que não conseguiriam fazer. 

E até houve um homem que não quis acordar a sua amada que debaixo do chapéu de sol dormiu uma prolongada sesta enquanto tudo isto acontecia, impressionou-me aquela capacidade de sono solto, tanto como a generosidade dele. Quando ela acordou, já a agua tinha recuado e ele apontou-lhe as construções que a tinham salvo, obra de tantos e dele também. No seu sorriso espantado espelhava-se a ignorância que tantos temos de quem trabalha para nós e nos é invisível.

Na manhã seguinte, muito cedo, maré vazia, o tractor alisava tudo, os diques, os tuneis e também as dunas que o recuo do mar tinha deixado. Santa ignorância, em vez de deixar os declives naturais, o tractor fazia uma espécie de rampas, muito mais fáceis para o mar galgar durante a tarde. Não fiquei para ver as possíveis construções que as pessoas muito provavelmente iriam tentar erguer, mas estou certa que seria uma obra mais difícil. 

Fiquei a interrogar-me bastante sobre esta costa que tanto amamos e sobre a possibilidade (ou não) desta comunidade que ali se fez poder ser algo mais que a defesa de uma tarde de Verão.

~CC~


Nota: este título é uma homenagem a Marguerite Duras e ao seu livro Barragem contra o Pacífico, autora que muito li e admirei, talvez a única que mesmo inconscientemente tenha procurado imitar.

 





4 comentários:

  1. Que maravilha, querida CC! Obrigada por me emprestar os seus olhos mostrando-me um quadro de tão doce beleza. E real!
    Eu também acredito na humanidade. E que, juntos, pidemos tanto, caramba, tanto.
    Marguerite Duras é autora que ainda não descobri. Mas vai já saltar para os primeiros da lista.
    Um beijinho, CC, e que este verão lhe traga mais momentos assim, para encher o coração. 🤗

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    1. Obrigada Susana, só por isso já valeu a pena ter escrito! Um beijinho e boas férias.

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  2. Quando o mar ou o acaso ou mesmo Deus querem, não há força humana que o dome. Como já temos visto. Mas, e for apenas uma maré viva ou mais forte que as de hábito, os homens conseguem precaver-se quanto ao perigo.
    São bonitos os pensamentos de comunidade que se entreajuda. Não sei se ultrapassam o nível de precaução contra a água ou outro percalço ignorado.
    Mas valha-nos isso. Boa semana, CC

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    1. Já vimos a Humanidade no seu melhor e no seu pior...mas quando vemos as pessoas a juntarem-se por e para algo é sempre comovente, nem que seja apenas para salvar uma tarde de Verão. Boa semana Bea.

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