quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Crónicas da estação quente (III)


Apenas ela tinha ficado na aldeia, as outras irmãs tinham partido uma a uma. Ela não conseguia deixar lá a mãe sozinha, depois da morte do pai.

Começou primeiro por ir à Igreja por excesso de tempo livre, a mãe nem lho pedia, acompanhava-a. Ainda lhe sobrava tempo depois da horta, de dar comida às galinhas e aos coelhos, dos bordados, da confecção dos doces. E acreditava em Deus como qualquer coisa que a acompanhava, uma parte da sua pele, um golo da fonte da aldeia, um bocado de broa cozida no forno de lenha, o riso dos meninos que vinham em Agosto encher de vida a Aldeia.

A princípio nem reparou bem nele, era um pouco mais velho que ela, cinco, dez anos, não sabia. Os padres para ela nem tinham rosto. Mas um dia entrou e estava um homem sentado no banco e chorava baixinho, quando ela se aproximou percebeu que era o padre, sem batina, como um homem normal. Colocou-lhe o braço por cima e assim ficaram algum tempo, bastante tempo. Naquele dia nem soube qual a razão daquele choro, só muito mais tarde. Certo é que e se começaram a entender e a amenizar a solidão um do outro. Talvez se soubesse, talvez nunca se viesse a saber. Não fora a sua barriga ter crescido sem motivo outro que não fosse carregar lá dentro uma criança. E ela querer essa criança como nunca tinha desejado nada antes. E ao contrário de outros ele ter dito: quero dar-lhe o meu nome. Nos primeiros meses depois da criança nascer, todos sabiam e calavam. Eram assim algumas aldeias, compassivas, clementes, dispostas a perdoar para ter um padre amável, simpático, que os ouvia e acolhia. O celibato não era nenhum juramento feito às pessoas, era a uma instituição.

Mas houve um telefonema a avisá-lo de que teria que escolher e como ele não o tivesse feito, chegou a carta. Era clara a ordem de expulsão e a proibição de dizer missa, fosse onde fosse. Mas como se expulsa alguém da sua terra e se tira a fé a alguém que a tem?

Não se sabe quantas pessoas ajudaram. Parece ter sido feita de noite. E era tão pequenina a capela que não cabiam mais que uma dúzia de pessoas. Mas ainda lá está. E foi nela que o padre disse missa durante o resto da sua vida. Ainda tiveram mais uma criança. Consta que as pessoas deixavam sempre qualquer coisa para os ajudar, às vezes durante a noite, para não afrontar o padre oficial que entretanto tinha chegado.

Eu estive lá e não rezei por não saber fazê-lo. Mas fiz um brinde com a seiva das flores, um desses brindes que por se fazerem em Agosto, só podem ser ao amor.




~CC~

PS (1) Inspirado, é claro, numa história verdadeira.
PS (2) Para boas crónicas de Verão, inspiradoras para mim, ler " A vez da Maria" e o Sr. Impontual.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Crónicas da estação quente (II)


Tudo começou por causa da Alexandra e do seu desafio. Pensei logo em colaborar, esta espécie de jogo em que mostramos só um bocadinho tem piada, mais pelo lado da brincadeira da coisa, o que escolhemos de nós? O melhor, o pior, o que nos mostra, o que nos esconde? Os poemas também não são as coisas mas bocados delas, eles não mostram o mundo, mostram só a imagem que dele criamos.

"show us a part of yourself", disse ela. E até a Ana mostrou o seu olho azul ou verde ou castanho, suspeito que cor de mar.











Na estação quente prefiro os vestidos, leves e brancos. 
Depois da quimioterapia e por causa do cateter implantado não podia usar alças, dele resta essa pequena cicatriz junto à clavícula, é a recordação do objecto que comigo viveu dois anos. A fotografia dos joelhos não mostra a outra cicatriz, essa é de infância e resultou de uma correria desenfreada para fugir de um primo que me perseguia, caí mesmo em cima de um prego, acho-a a cicatriz mais mal feita que algum dia vi em alguém e por causa dela usei saias compridas muito tempo. Agora já nenhuma cicatriz me importa.

~CC~


PS. Alexandra, tenho lido sobre as doenças dos parentes e amigos próximos. Saiba que quem nos ama e está connosco na luta é essencial, sem pieguices e sem pudores, tudo o que lhes puder dar, dê.


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Crónicas da estação quente (I)





O tempo que eu demorei para chamar casa a um lugar. E sem casa não há para onde voltar.

~CC~



sábado, 24 de agosto de 2019

Taxa de esforço



Quando a Catedral Notre Dame ardeu, vários multimilionários ocorreram, oferecendo uma parte da sua fortuna para minorar o estrago. E agora onde estão? A Amazónia está a arder, será que já sabem?!

~CC~


Acrescento 2 dias depois: Obrigada Leonardo DiCaprio, Presidente Macron e artistas brasileiros que saíram às ruas do Rio de Janeiro, organizadores da manifestação em Lisboa e...todas as vozes que se erguem. Certamente o dinheiro não é tudo, mas ajuda, é assim em qualquer calamidade.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Para além do mar



É muito raro valer a pena trocar o mar de Verão por qualquer outra coisa, ressalva feita para montes que são mares para os olhos e nos abrem horizontes (Trás os Montes, no início de Agosto).

Mas há coisas que valem. Até porque o palco pode não ser bem um palco mas um largo, um convento, um salão, as ruas de uma cidade. E as ruas de uma cidade são a sua festa mais sagrada.

~CC~


sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Namoro astral


Tenho trabalho redobrado durante as férias. Dois trabalhos importantes.

Há que ver o sol a pôr-se e a lua a nascer. Nestes últimos dias as cores têm sido deslumbrantes, ele despede-se vermelho fogo e ela nasce com a cor que ele deixou, talvez apenas ligeiramente mais clara. Quando isto se passa entre o sol a mergulhar no mar e a lua a nascer na ria, as águas ajudam a que todos os brilhos ganhem luz.

Tão bela que é a terra neste namoro com os astros em pleno Verão. Tremo ligeiramente só de pensar que um dia o homem pode interromper esta harmonia.

~CC~


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Paninho branco bordado


Os seus gestos tinham uma mímica única e a voz um ciciar lento, falando muito perto de nós e olhando-nos por breves momentos nos olhos. Falava muito dos seus meninos, das missões, do modo como fazia o seu trabalho, curiosamente nunca usando a palavra Deus. Como estava de férias e em casa de família não usava o hábito, por isso não sei se a conhecerei quando trajada a rigor. Assim que acabávamos de comer, levantava-se para nos tirar os pratos, não queria deixar-nos levantar para ir buscar alguma coisa ou para arrumar o que quer que fosse. Era talvez das únicas coisas que me incomodava verdadeiramente, como se servir os outros nas suas necessidades lhe estivesse entranhado até às células. Calava-se quando se contavam as histórias indecorosas dos padres da terra, ligeiramente incomodada, mas por breves momentos acho que lhe vi quase um sorriso. Apreciava-lhe a tranquilidade, a doçura, a paz. Às vezes parecia ficar triste, por exemplo quando falava de como a obrigaram a deixar o lar e o trabalho que a tinha ocupado durante onze anos, mas para logo resignar-se a uma nova morada, outra cidade, outro trabalho, afinal era mesmo assim, o normal era mudarem de sete em sete anos.

Interrogava-me amiúde como é que se aprendem gestos, um modo de falar, de estar, de pensar, que educação é aquela que penetra tão fundo. Nunca tinha vivido três dias na mesma casa do que uma freira. 

Guardo o paninho branco bordado que me deu, aquele abracinho terno e um respeito grande por quem é quem quis ser, ainda que me interrogue também se não tinha que ser quando se é uma de oito numa aldeia dos anos quarenta do século passado, em Trás os Montes.


~CC~

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Prova de fogo


O amor é uma coisa que demora tempo e tem que ser aprendida. O amor dá trabalho, as relações longas são uma prova de fundo, só digna de alguns corredores que aguentam nas subidas, embalam nas descidas e conseguem apanhar o ritmo durante as rectas. As desistências são muitas, também já desisti algumas vezes. E além disso a paixão, as relações breves, têm o seu poder de atracção. Mas desgastam-nos mais, consomem-nos. É claro que há quem prefira. Mas esta prosa é para os outros, para quem quer permanecer.

O amor muda porque nós também mudamos e precisamos de acompanhar as nossas e as mudanças do outro. Nesse caminho, é muito fácil que nos percamos. É muito fácil que tudo se torne um lago de águas paradas, uma busca de conforto e segurança, apenas o laço que se tem para impedir a solidão. Nesse caso só se precisa de coragem, desistir da corrida é o melhor, não porque não se é capaz, mas porque a prova não vale a pena, ou já não vale a pena.

O tempo de férias é muitas vezes a prova de fogo. Há tempo, o dia todo com o outro por perto, às vezes longe de casa onde não há os cantos habituais de refúgio, não há como evitar-lhe os olhos, as manias,  o que deslumbra e o que irrita. Como tantas mulheres e tantos homens, saí sem intenção de voltar depois de umas férias. E pensei muito sobre isso. 

Como justamente potenciar o encontro e não o desencontro, aproveitar o tempo maior, descobrir ainda coisas do outro ou nos descobrirmos a ambos em certos e outros lugares?

E de cada vez que regresso feliz, não isenta de sobressaltos e pequenos momentos infelizes, mas ainda assim mais rica e com histórias vividas a dois, acho que aprendo, vou aprendendo, vamos aprendendo.


~CC~