Lendo a crónica de Alberto Manguel sobre o confinamento, detive-me num pormenor que me fez lembrar também a minha adolescência. Ele diz que aos seis anos, em Paris, atirou pela janela alguns dos bonitos e caros vestidos da mãe. Tinha crescido entregue aos cuidados da ama, raramente vendo a mãe, mulher de embaixador e dedicada às obrigações que então ditava a carreira diplomática do marido, o que implicava vestir-se e maquilhar-se a preceito para brilhar nos muitos eventos em que tinha que comparecer. Fez-me pensar na solidão dos ricos e de como ela é tão diferente da solidão dos pobres.
Morei durante toda a adolescência e já no início da idade adulta numa das mais afamadas urbanizações de gente rica da periferia de Lisboa, na altura considerada inovadora em termos urbanísticos, talvez pela dimensão em altura dos prédios e do número de assoalhadas dos apartamentos. Eu morava na única rua dos pobres, a maior parte retornados, tinham ocupado as casas nos idos anos de 1975 e 1976. A minha rua dava por si só um romance. O contraste entre a minha vida e a de algumas das minhas amigas de outras ruas dessa urbanização era gritante. Uma delas tinha uma mãe que nunca acordava antes do meio dia, a empregada que entrava em casa às 8h tinha ordem para até essa hora o silêncio ser a regra, a mãe deitava-se tarde, não raro recebia amigos e a rotina da empregada começava por limpar os cinzeiros com beatas e os copos de uísque. A mãe não trabalhava porque não precisava e era uma mulher culta, mas o seu interesse pelas filhas resumia-se a que soubessem falar línguas, coisa que as obrigada amiúde a praticar à hora do almoço e a um questionário cerrado sobre as classificações escolares. O pai sumia-se em infinitas viagens, trabalhava muito e era bastante ausente, apesar de muito simpático. A solidão daquelas miúdas numa casa cheia e com uma mãe em casa era bastante estranha para mim, mas podia senti-la, uma espécie de revolta que a mais velha (e a minha amiga) acalentava, aproveitando para tecer aqui e ali um desafio, coisas que sabia não serem aceites na classe social a que pertencia (acho que foi a primeira a quem vi calças de ganga rotas).
Se me deparo muito com a solidão dos mais pobres, até em termos profissionais, sei que a solidão atravessa todas as classes sociais, mas a sua espessura e os seus contornos são tão diferentes que parece que o seu plural é mais certo que o seu singular.
E no entanto é ainda solidão o que une o Manguel, um menino de seis anos, filho de embaixadores, ao cuidado de uma ama, com aquele menino, da mesma idade, que numa escola do Seixal acordava numa casa vazia e de tudo cuidava sozinho, até da irmã que ia para a creche, pois a mãe saia de madrugada para limpar escritórios em Lisboa, antes da entrada dos funcionários.
Gostaria de escrever um ensaio sobre a solidão, perdão, solidões (mas que mal fica a palavra no plural).
~CC~