sábado, 27 de fevereiro de 2021

Todo um mistério.

 

Comecei por a achar uma mulher invulgarmente alta.

Depois reparei melhor e ouvi-lhe a voz, sem dúvida um homem louro, de cabelo comprido, rosto jovem e bonito, parecia um anjo.

Queria despachar uma encomenda para a Rússia. O proprietário da papelaria perguntou-lhe se era álcool. A pergunta pareceu tão estranha quanto a resposta: sim, acho que tem álcool, mas são perfumes.

Perfumes de Portugal para a Rússia, todo um mistério.

~CC~


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Saudades

 

As saudades que eu tenho dela chegam-me com cheiro. É um cheiro a bebé como se ela nunca tivesse crescido. É um cheiro a Primavera, como se só tivesse estado com ela nessa estação. É um cheiro a praia, como se todas as horas boas que vivemos tivessem por perto o mar.

~CC~


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Armário dos improváveis (1)

 

Abominável o chá com orégãos.

Muito aceitáveis, quase bons, os croquetes de alcachofra.

~CC~

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Solidão, solidões...

 

Lendo a crónica de Alberto Manguel sobre o confinamento, detive-me num pormenor que me fez lembrar também a minha adolescência. Ele diz que aos seis anos, em Paris, atirou pela janela alguns dos bonitos e caros vestidos da mãe.  Tinha crescido entregue aos cuidados da ama,  raramente vendo a mãe, mulher de embaixador e dedicada às obrigações que então ditava a carreira diplomática do marido, o que implicava vestir-se e maquilhar-se a preceito para brilhar nos muitos eventos em que tinha que comparecer. Fez-me pensar na solidão dos ricos e de como ela é tão diferente da solidão dos pobres.

Morei durante toda a adolescência e já no início da idade adulta numa das mais afamadas urbanizações de gente rica da periferia de Lisboa, na altura considerada inovadora em termos urbanísticos, talvez pela dimensão em altura dos prédios e do número de assoalhadas dos apartamentos. Eu morava na única rua dos pobres, a maior parte retornados, tinham ocupado as casas nos idos anos de 1975 e 1976. A minha rua dava por si só um romance. O contraste entre a minha vida e a de algumas das minhas amigas de outras ruas dessa urbanização era gritante. Uma delas tinha uma mãe que nunca acordava antes do meio dia, a empregada que entrava em casa às 8h tinha ordem para até essa hora o silêncio ser a regra, a mãe deitava-se tarde, não raro recebia amigos e a rotina da empregada começava por limpar os cinzeiros com beatas e os copos de uísque. A mãe não trabalhava porque não precisava e era uma mulher culta, mas o seu interesse pelas filhas resumia-se a que soubessem falar línguas, coisa que as obrigada amiúde a praticar à hora do almoço e a um questionário cerrado sobre as classificações escolares. O pai sumia-se em infinitas viagens, trabalhava muito e era bastante ausente, apesar de muito simpático. A solidão daquelas miúdas numa casa cheia e com uma mãe em casa era bastante estranha para mim, mas podia senti-la, uma espécie de revolta que a mais velha (e a minha amiga) acalentava, aproveitando para tecer aqui e ali um desafio, coisas que sabia não serem aceites na classe social a que pertencia (acho que  foi a primeira a quem vi calças de ganga rotas).

Se me deparo muito com a solidão dos mais pobres, até em termos profissionais, sei que a solidão atravessa todas as classes sociais, mas a sua espessura e os seus contornos são tão diferentes que parece que o seu plural é mais certo que o seu singular.

E no entanto é ainda solidão o que une o Manguel, um menino de seis anos, filho de embaixadores, ao cuidado de uma ama, com aquele menino, da mesma idade, que numa escola do Seixal acordava numa casa vazia e de tudo cuidava sozinho, até da irmã que ia para a creche, pois a mãe saia de madrugada para limpar escritórios em Lisboa, antes da entrada dos funcionários.

Gostaria de escrever um ensaio sobre a solidão, perdão, solidões (mas que mal fica a palavra no plural).

~CC~




sábado, 20 de fevereiro de 2021

Como resistir

 

O cenário do sábado de manhã, sem dúvida a parte preferida da minha semana. Sempre o ar fresco, um café bonito, o jornal, o café, o copo de água, o bolinho seco. Se na proximidade do mar ou do rio, satisfação plena.

Invento à mesma hora o cenário caseiro. O único dia em que tiro da máquina o café expresso, nos outros dias poupo o planeta e faço-o na cafeteira. Tenho tudo, e se me falta horizonte, foco-me naquela foto do porto da cidade que me ofereceu um querido colega pelo aniversário há uns anos, curiosamente invernosa como o dia de hoje.

Fórmulas de resistência à tristeza que quer fazer caminho.

~CC~


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Vista do céu

 

Um acampamento em Marte.

Talvez alguns miúdos sonhem com isto e não possa eu conter-lhes esta viagem.

Posso, contudo, acompanhar aqueles que entre eles, como eu, sonhem com uma terra limpa, respirável, bela e ainda azul vista do céu.

~CC~


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Fecho os olhos...

 

Este silêncio.

Já não me lembrava de como era a casa vazia e eu a vaguear dentro dela como num naufrágio.

Lá no outro lugar há sempre vozes, televisão ligada, apontamentos de viola ou de piano e, sobretudo, aquelas pequenas cantorias do miúdo pequeno.

Até a cidade lá fora está calada.

Fecho os olhos, tento recordar-me que mês é, que dia, que hora.

~CC~

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Do dia

 

Será difícil encontrar alguém menos romântico, com uma vocação zero para  dias de festa e rituais sociais, sejam eles forjados na fé, no comércio, na tradição ou mesmo no afecto. Eu que habito a escala média baixa destas coisas, nada refém, não totalmente indiferente, há muito que tento entender e habituar-me. Hoje até se excedeu face ao habitual e chamou-me namorada. 

Mas a coisa mais bonita que fez por mim foi mesmo descoser o botão do casaco que eu tinha cosido com linha creme e cosê-lo como deve ser, como linha condizente com a cor do dito. Na verdade isso deu-me muito mais jeito do que receber flores, não obstante eu apreciar flores, sobretudo do campo.

~CC~

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Duas perguntas

Com que sonhará o homem dentro do barco em terra?

Que parte de mim é também ele e sonhará o mesmo?

~CC~




 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

É mansa e passageira

 

Começo a achar que os meus estudantes não existem mesmo em carne e osso, são apenas uma realidade virtual,  faz um ano em Março que tudo se passa através de um écran, alguns deles nem nunca conheci de outro modo, com esses é particularmente difícil, não tenho imagem mental deles, do seu corpo, do modo como se movem, como se sentam, como são.

Hoje tive mesmo vontade de estender uma mão a ver se conseguia tocar alguém, de apurar o olfacto a ver se sentia algum cheiro. Por vezes sinto uma espécie de loucura a invadir-me, felizmente é mansa e passageira. 

~CC~


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Volta ao quarteirão

 

Acusou muito cansaço, podia sentir-lhe o coração a bater mais rápido. Há mais de um mês que não saia.

Mas conseguiu dar a volta ao quarteirão, num passo muito muito lento, enquanto lamentava a cidade vazia que ainda não tinha sentido, não é que não acreditasse em mim, mas precisava de ver (não obstante ver para ela seja um verbo usado com muita tristeza, dada a perda gradual).

Desta vez, apesar dos meus poucos contactos com seres humanos, usei máscara e nunca fiz as refeições com ela, esta última parte custou-me bastante. Depois da videochamada com as netas que menos vê, ainda me disse que gostava de ter um facebook e se eu lhe podia fazer um, assim como o meu (inexistente), que trouxesse assim as pessoas a casa em ponto grande.

A resiliência dela é sempre uma coisa com a qual me espanto.

~CC~



sábado, 6 de fevereiro de 2021

Das pequenas coisas

 

Dentro deste grande mundo que é a blogosfera, tecemos, recortando sem muita precisão, um mundo que é nosso, sem que saibamos exactamente explicar as razões pelas quais nos ligamos mais a uns do que a outros, afinal não deve ser muito diferente da vida, não fui eu que inventei a palavra empatia e tudo o que ela comporta.

A Laura (que nome mais bonito) fazia parte do meu mundo. Quando ela disse que ia mudar de casa, eu achei que era uma casa a sério, desses ninhos de pedra, cimento e/ou tijolo. Mas depois desapareceu. Tenho saudades dela, da sua poesia, do Teatro, do tanto que ela dizia sobre Teatro. Será que mora noutro lugar e eu não encontrei o caminho? Será que encontrou um sitio para as suas pequenas coisas que é tão grande que lhe ocupa a vida inteira?

~CC~



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Escala Cinza

 

Naquele tempo lá atrás quando os meus olhos tinham uma luz quase insuportável era o cinza a minha cor. O cinza em várias escalas e matizes alternava com o preto e o azul, mas era o cinza o meu rei. Precisava dele para acalmar o meu amarelo, o laranja, às vezes até o vermelho.

Usei cinza adolescência dentro, como quem precisa de um manto, de um abrigo, de acalmia. Vi-te depois, na tua adolescência, escolher também o cinza.

Talvez tenha sido só depois dos trinta que pouco a pouco o fui deixando, nunca completamente. Às vezes acrescenta ao azul do céu interessantes mesclas de beleza.

Se pudesse, se pudesse, era agora no azul do Índico que mergulharia, devagar, bebendo a claridade e o calor e chamando devagarinho a estrela do mar para nadar ao meu lado.

~CC~


Também há escalas cinza (pioneiras) aqui e aqui





quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Loucuras do confinamento

 

Não, não vou falar da forma como este país está a enlouquecer, preso de uma caça às bruxas nunca antes vista, da injúria, da acusação alheia. Sempre achei que havia pior do que o vírus e há quem já lhe tenha colocado o nome certo: banalidade do mal.

Prefiro falar-vos da minha própria loucura por ser mansa e inócua. 

Não é que hoje lhe pedi que me fizesse uns fritos para o almoço, qualquer coisa, peixe ou carne desde que fritinho e crocante. E não pedi mas pensei numa sobremesa tipo pavlova, coisa como sabemos pouco doce.

Enjoei da minha própria comida saudável, embora nunca tivesse tal como prática ortodoxa. Só posso atribuir estes súbitos desejos compensatórios à falta que o mar me faz. E os abraços, à falta deles.

~CC~

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Numerologia (2)

 

Eram três meninas pequenas

E três cães ainda mais minúsculos

Correndo e saltando felizes no relvado...

 

Mas a mãe das meninas gritou:

- Ai que os cãezinhos fizeram chichi nos casacos!

A mãe dos cães respondeu baixinho:

- É o que acontece à roupa deixada na relva.

 

Eram duas mães

Cada uma defendendo as suas crias

Eram lágrimas, eram suspiros, eram gritos...

 

As três meninas e os três cães

Correram e correram cada vez para mais longe

Ignorando lamúrias e protestos

Misturaram-se algures na paisagem

 

No bebedouro dos pombos lavaram os casacos

Mas ao olharem em volta

Contaram seis desaparecidos...

 

Gritaram e correram pelo parque

Os casacos deixados outra vez na relva

Mas não podia ser só eu a ver

Os baloiços estavam num frenesim...