Será que alguém me lembra para que efeito comprei isto?
~CC~
Houve várias tentativas de derrubar o regime denominado de Estado Novo.
Mas tenho para mim que não foi um acaso ser em Abril, assim juntaram-se duas Primaveras.
Nunca as ruas foram (são) assim tão bonitas.
~CC~
Ele saltava o muro mas eu saltava mais vezes.
O meu quintal era caótico, tinha duas grandes mangueiras, muita terra livre e bichos ocasionais.
O dele tinha cimento, uma enorme gaiola cheia de pássaros, muitos vasos com flores, nenhuma terra, algumas árvores pequenas que não recordo se davam frutos. O quintal dele era lavado com água e lixivia, cheirava sempre a limpo e a organização.
Eles eram dois irmãos, um deles sempre adoentado, o outro vibrando de saúde, olhos esverdeados e caracóis, sorriso pronto, muita vontade de brincar aos médicos.
Um dia o irmão doente quis saltar o muro com o irmão para o meu quintal. Tudo correu absurdamente mal, a queda, os gritos das nossas mães, e o menino que por causa da queda ficou cada vez mais doente. Nunca mais espreitámos por cima do muro, ora um chamando, ora o outro chamando. Uns tempos mais tarde as portas e as janelas fecharam-se, nunca mais os vi, nem a ninguém da família. Não sei se pensei que o menino doente tinha morrido ou se morreu mesmo, mas achei que tinha a culpa também tinha sido minha.
E do meu amigo nunca mais nada soube. Tinha sete ou oito anos, a desilusão de amor, talvez a primeira.
~CC~
A primeira ida a uma loja.
Como é que ficaram tão simpáticos?
Desejaram-me resto de bom dia, boa semana e volte sempre.
~CC~
Eram homens e mulheres muito solitários os que no tempo da Rosa Mota e do Carlos Lopes saiam ao entardecer, treinavam a sério e com um objetivo profissional, por isso eram muito poucos.
No crepúsculo deste último Domingo eram mais, muito mais e de todos os tipos e feitios, ninguém a parecer-me capaz de se lançar na maratona. É impressionante como a Pandemia trouxe as pessoas à rua para caminhar, correr e andar de bicicleta, quase as únicas actividades que não lhes foram vedadas. Eu se pudesse caminhava mais, muito mais, mas não queria viciar-me, certas pessoas fizeram-no, tal como antes em relação ao ginásio. Talvez porque para mim caminhar não é mexer o corpo ou puxar por ele mas é sempre andar de nariz no ar, observar, respirar.
O que eu ainda nunca tinha visto e vi este Domingo era um casal a correr e simultaneamente a empurrar o carrinho do bebé, assim satisfeitos, estrada fora...
~CC~
Sinto que o meu coração ardeu tanto que já não é possível atear nele fogo, queimaram-se no meu corpo muitas células em discussões, ciúmes, desconfiança ou simplesmente no desgosto do outro em mim. Fez-me mal a paixão e sempre que se transformava em amor e depois em amizade, quis sempre voltar ao início do ciclo, com saudades de vibrar, balançar e abanar.
Agora sinto o seu bater compassado, embala-me o corpo como uma morna, naquele sabor doce e quase desinteressado, numa mão que se dá, num abraço que se estreita. Não sei se estou a caminho da paz, mas às vezes é o que parece.
~CC~
Diz que vários colegas o aconselharam a não se envolver nos órgãos de gestão da instituição, não só isso por isso ser um poço de chatices mas pelo tempo que lhe roubaria ao estudo.
Não os ouviu e ainda bem. Assim, pude eu ouvi-lo dizer o quanto essa experiência o enriqueceu, o mudou, o preencheu.
Fiquei com a sensação que tinha sido tão ou mais importante que o próprio curso. E ainda concluiu que com o menor tempo que tinha conseguiu ter resultados escolares tanto ou melhores do que aqueles que o tinham muito mais. Agora o termo fazer parte não significa para ele apenas o lugar sentado na sala, a resposta às questões dos docentes, a classificação colocada numa pauta, um canudo que porá na prateleira e que lhe pode abrir a porta para uma carreira que o mais certo é começar nos 500 euros. Quando me cruzo com esta gente jovem que aprendeu a ter voz, fico com esperança. Oxalá o futuro não os enfie numa espelunca cinzenta ou num lugar distante, a milhares de quilómetros deste país.
~CC~
Desligar-me é uma arte cuja prática para mim foi muito tardia na vida. Ainda hoje é difícil. Atraída pelo Budismo, fui sempre no essencial o seu contrário.
Mas já consigo deixar que a pressão contida num mail de trabalho fique a esvaziar-se sozinha na caixa. Deixo que baixe a temperatura, que arrefeça, só depois respondo. Certas coisas precisam de estar mornas, a quente valem de mais, a frio já não valem nada.
E contei dez anos, parece-me ainda tanto para deixar de receber estas missivas de alta intensidade que tenho que responder à morna temperatura.
~CC~
Que belos os campos de estevas, puxavam-me para eles em todo o seu esplendor, e não obstante o rumo estar definido até ao local mais a sul, só me apetecia parar e perder-me neles, dissolver-me. Pensei gravar uma mensagem de voz: não estou, tornei-me flor.
~CC~
Dias que começam e acabam rapidamente sem que dê conta do tempo a passar. E isto apesar deles terem crescido tanto. Enrolam-se uns nos outros e quando me apercebo já é sexta e sei que no fim de semana as tarefas mudarão apenas um pouco de tipo e intensidade. Quando consigo uma manhã ou meia tarde para mim própria sinto-me grata e quase feliz. Nunca conseguirei explicar porque trabalho tanto. E muito menos responder à pergunta que a miúda fez aos oito anos: porque ganhas tão pouco?
Apenas me satisfaz saber que o pouco chegou para construir a minha independência, ou seja construir tudo do zero, sem heranças, ajudas familiares, partilha de orçamento ou de qualquer bem a nível conjugal. Bem colocado o título daquele filme "este país não é para velhos", a maior parte não o é, nem para mulheres que querem viver sozinhas e não têm qualquer outro suporte financeiro que aquele que ganham por mês como assalariadas, muitas até podem ter essa aspiração mas não conseguem. Não duvidem que esse é o motivo para muitas não abandonarem casamentos há muito fracassados, casas dos pais nas quais já não se sentem bem, apartamentos co-partilhados por muito mais gente.
Afinal o meu pouco é muito.
~CC~
Poucas ou nenhumas coisas nos faltaram em termos alimentares para consumir no segundo confinamento. Nem o pão falhou. Afinal, apesar do camuflado do gestor do programa de vacinação, esta guerra é completamente diferente das outras. Como tal, é fácil sair e comprar um folar, há por todo o lado à venda. Mas as minhas mãos não têm grandes dotes, não sabem costurar, bordar, não são dadas à bricolage ou ao cabeleireiro, até usar uma pinça lhes custa. Por isso, antes que elas sejam instrumentos que apenas sabem pousar nas teclas do computador, vou usá-las hoje para amassar e amanhã para pintar. Sonho um dia usá-las para plantar e colher, mas isso tarda.
~CC~