terça-feira, 27 de junho de 2023

Direito à Insatisfação

 

Enquanto a bruxa má que veste Prada nos dá sempre o mesmo remédio, cuja eficácia que testa há meses não tem resultado, pois a inflação não desce, conheço mais e mais histórias tristes. 

E ela sabe que praticamente dobrar o valor um empréstimo bancário é lançar muita gente no desespero. As pessoas não podem correr a vender as casas, não podem pedir mais ordenado, não podem abandonar os filhos, os animais de estimação, em alguns casos os mais velhos a quem auxiliam. Agarram biscates ao final do dia, ao fim de semana, coisas que nunca antes tinham feito. Artistas aceitam fazer limpeza de prédios, administrativas cuidam de velhotes ao fim de semana, técnicos superiores na função pública vão servir à mesa em casamentos.

Longe de estar no mesmo sufoco, também eu trabalho para além do desejável, quando verifico o dinheiro que entra dessas tarefas, tendo a achar que não foi a gratificação suficiente para todos os crepúsculos que perdi, todos os livros que ficaram por ler, todos os momentos que não passei junto de quem precisava de mim (sobretudo a minha amiga doente). Tenho uma vida inteira de trabalho adicional para pagar aqueles extras que ainda assim foram sempre o outro alimento: os bilhetes dos espectáculos, a renovação do guarda roupa, a ida ao restaurante, uma viagem a um lugar sonhado, a ajuda à mais velha ou a quem em determinado momento precisa ou precisou. Praticamente nada acumulado para além dessa colecção de momentos felizes que o dinheiro não pagou mas ajudou a construir. Enquanto o banco ao qual pago a prestação vai enriquecendo com o que pago a mais em juros, não consigo arranjar a cozinha, investir na troca do carro velho que já bebeu metade do seu valor em arranjos ou adquirir a ruína que imagino semente daquela casa branca na planície com a qual sonhei uma vida. E ainda dizem que isto é dinamizar a economia. E claro que isto são pequenos males comparados com os de outros que os sofrem bem maiores, mas ainda assim, também tenho o meu direito à insatisfação.

~CC~




sábado, 24 de junho de 2023

Curtas de Verão (II)

 

Se a noite estivesse fresca, poderia dizer que seria por isso que fui anoitecer para a varanda. Ao meu lado ela desfiando histórias de noites quentes destas, com passeios de mulheres pela avenida principal e os rapazes atrás a segui-las. Dentro dela é ainda essa jovem bela e admirável, nunca deixou de o ser, mesmo com o corpo primeiro aumentado e mais pesado pelos quatro filhos e agora mirrado pela velhice. Dentro dela ela não é esta, ela é ainda esplendor e vida e por isso sofre com o espelho, com a impossibilidade do passeio pela baixa da cidade, com as barras da cama erguidas para não sair durante a noite. Apagou de certa forma todas as outras mulheres que ela também foi e deixou apenas esta, a mais bela das belas irmãs.

É ao mais fundo dos fundos de mim que vou buscar o que nos pode unir, de tão diferentes que somos. 

Ambas partilhamos afinal a nostalgia que invade as noites quentes e a difícil arte de gerir as impossibilidades.

~CC~

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Solstício de Verão

 

Faço a cada tempo novas aprendizagens, patamares que tenho que conquistar do andarilhar pelo mundo. Há que explorar o mesmo lugar de outras maneiras, quando se está sozinho a paisagem parece outra, aparecem outros receios mas também outras cores.

Ainda tenho receio é certo. Ainda ecoam a cada canto coisas e sombras antigas, muitas memórias. Procuro limpar os caminhos, tirar as ervas, abrir outros percursos mesmo quando eles se têm obrigatoriamente que se fazer nos mesmos espaços. 

Não podemos prender ninguém na teia do nosso afecto, é deixar ir quem precisa de ir, libertar é também libertarmo-nos. Até com os filhos é assim, quem os ama muito, sabe como é difícil libertá-los do nosso amor para se construírem como seres autónomos e plenos. A eles, contudo, estaremos sempre ligados, mesmo os que se zangaram, viraram costas ou se ignoram, sabem que eles estão lá em permanência. Aos nossos parceiros e amigos não, a eles só nos prendem os laços do encanto, da partilha, da comunhão. São os mais ténues, perecíveis e incertos. Se perduram, é de uma beleza imensa. Se morrem, é triste. Mas não os podemos forçar, não podemos insistir, não podemos existir neles sem reciprocidade. Cada amigo ou amiga que fica para trás é um pequeno luto, cada amor que acaba é um grande luto, e de tudo isso a vida se alimenta, constrói e prossegue. Haja vida, é essa a minha grande luta agora.

Hoje combinei com uma amiga festejamos para o ano o solstício de Verão como ele merece ser festejado, em harmonia com a natureza, vendo o sol descer e erguer-se. Pode não acontecer, mas são estes pequenos nadas que nos ligam uns aos outros, o inverso do luto é o nascimento, a maravilha é podermos ver nascer, alimentar, criar.

~CC~







segunda-feira, 19 de junho de 2023

Curtas de Verão (I)

 

Um casal na casa dos quarenta madrugando domingo na praia, pareceu-me que já segunda relação, pois ela chegou primeiro e ele uma meia hora depois. Ela chamava-o de Fofinho e ele de Lontra. A conversa prosseguiu assim na maior parte do tempo, ela em tom doce, ele em tom de menosprezo. A determinada altura ele disse-lhe: precisavas de perder dez quilos. A mim ocorreu-me que talvez ela pudesse responder: e tu precisavas de um cérebro novo. Infelizmente ela calou-se.

~CC~

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Contra corrente

 

Ontem fui ver a sala para a formação de sábado. Mostram-me o écran de ultima geração, os robozinhos lego, as colunas, e toda uma parafernália de equipamento tecnológico do melhor. Depois de olhar com alguma incredulidade tudo aquilo, saiu-me o seguinte: pois é, isso é tudo para o meu colega que vem de tarde...eu só uso o espaço, a voz...e ah, também tenho um corpo...eu e os formandos.

~CC~


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Querido mês de junho, como adorava estar contigo

 

É algo esmagador para mim que Junho, mês que amo por trazer esse esplendor da chegada do Verão (antes que tudo se encha de secura) coincida com o tempo em que não consigo respirar, abafada pelo trabalho avalassador do final do ano lectivo. 

Cada ano acho que conseguirei ter outro destino, outro modo, mas cada ano é pior, é muito além da avaliação dos estudantes, é uma espécie de psicose colectiva, como se tudo, mas tudo tivesse que estar resolvido antes de partirmos de férias. E creio que este ano este estrangular de felicidade será até ao último dia do mês de julho.

Querido mês de junho, como adorava estar contigo junto ao mar.

~CC~


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Saudade de...

 

Vi uma imagem na série Conta-me como foi (RTP 1) dos autocarros de dois andares que havia em Lisboa nos anos oitenta. Que saudade...eu era daquelas que nunca hesitava em subir para ver a cidade do primeiro andar.

Há alguém aí que tenha sido adolescente/jovem nos anos oitenta? Do que têm saudades?


~CC~

domingo, 11 de junho de 2023

O amor nasce dos pequenos nadas

 Um

Ele entrou na sala com um sorriso e um pacotinho de bolachas na mão, perguntando se havia café. Era uma reunião formal, mas ele cortou o silêncio da espera. Nunca o tinha visto, embora o nome já me tivesse sido muitas vezes citado. Não combinava com a pessoa que esperava. Nunca bebo café sem uma bolachinha, para compensar a ausência do açúcar. Eu tenho a certeza que o meu sorriso foi grande, finalmente alguém me percebia, ainda por cima um homem. Mas quantos homens trazem pacotes de bolachinhas numa mochila? Só eu e ele tomámos café e comemos uma bolachinha, risonhos e cúmplices. Era capaz de me apaixonar por um pequeno nada destes. 

Dois

Alguém já me tinha dito mas não o próprio. Sozinho tinha criado uma miúda, a mãe tinha partido sem nada dizer. A ternura com que ele relatou o facto, mexendo também em tudo o que não tinha feito bem naquele acompanhamento de uma vida, tocou-me. Mas quantos homens se aguentam sozinhos com uma criança, levando e trazendo da escola, preparando as refeições e trabalhando a tempo inteiro e são ainda capazes de autocrítica quanto ao êxito da missão? Alguns haverá por certo e ele é um deles. São estas coisas as coisas. Não é o brilho da inteligência ou do discurso, não é a beleza. Sem me emocionar nada me acontece, se me emocionar tudo é possível. 

Atendendo a que durante tanto tempo nenhum homem me despertou qualquer emoção, talvez estes pequenos nadas signifiquem o que acontece a uma terra queimada quando chega a chuva. Não é ainda tempo de sementeira, talvez nunca seja, mas já é tempo retirar as cinzas, revirar a terra, deixá-la receber um pouco de água. Mesmo que tudo não passe do regresso às paixões platónicas da minha adolescência, o estremecimento é tão bom como um mergulho na água salgada, cristalina e fria da Arrábida. 

~CC~

sábado, 10 de junho de 2023

Dizer NÃO

 

Bem sei que hoje é um dia sério. Confesso, gosto muito deste país, só o trocava por uns outros dois ou três no mundo. Tenho sempre saudades de cá quando viajo, até no Brasil onde a maior parte deseja permanecer.

Só espero que não se torne num inferno turístico, Lisboa está a caminho do desastre. A Arrábida foi tomada pelos fundos monetários sem nome nem rosto. O Algarve era lindo antes da tragédia. Agora é aqui bem perto, do outro lado do Sado que a ameaça é mais intensa. Grandes resorts para alguém ocupar um mês por ano ou ainda menos. Não conheço sector onde as alianças mais estranhas aconteçam, parece que não há partidos políticos nem ideologias, apenas lucro à vista, mascarado de oportunidades de emprego para a população local. Não é possível proibir, nem desejável, todos devemos poder usufruir da luz magnifica que é singular de um país, mas há limites que deveriam ser claramente colocados. O mais possível a favor do travão ao alojamento local e outros travões semelhantes.

Hoje os discursos deveriam começar todos pelo que NÃO queremos que este pais seja, pois somos o país do SIM. 

~CC~



quinta-feira, 8 de junho de 2023

Trivialidades de um feriado

 

Gosto que Deus tenha um corpo para que possamos ter um feriado (que me perdoem os Católicos esta heresia).

Gosto que o feriado seja de chuva porque tanto eu como a pequena grande temos que trabalhar e porque a terra agradece este banho (que me perdoem os que estão junto à praia).

Só me preocupo com as cerejas lá nas terras quentes da beira, que não resistam e apodreçam num instante, causando prejuízo a quem delas faz sustento e um aumento de preço que fará com que não as possamos comprar (que me perdoem aqueles que acham ridículo pensar em cerejas num dia de chuva de Junho).

Aproveitando o melhor do pior, sempre posso trabalhar com uma chávena de chá Príncipe ao lado, em pleno mês de Junho. 

~CC~

terça-feira, 6 de junho de 2023

Esquadro (ou sem)

 

O nosso subconsciente, esse eu acordado enquanto o eu consciente dorme, é muito mais poderoso que do que pensamos. Ele e os futuros que estão para acontecer. Eu explico.

Há dias em que acordamos felizes e outros em que acordamos infelizes, claro que nós, os comuns mortais, aqueles que não vivem no limbo que é a ausência de emoção (e tantas razões há para viver nele, às vezes pura defesa). No outro dia acordei feliz e fui para uma reunião que não podia ter corrido pior. Mas nada era capaz de me chatear, tinha um almoço marcado com um amigo e era sexta feira. Hoje, passados alguns dias, consigo perceber que o trilho que se desenhou naquela reunião está cheio de pedrinhas que se calhar me irão magoar os pés. Mas naquele dia não, passei a tarde a rir-me de algumas pessoas que tiveram comportamentos atrozes, com pena delas, de se terem portado assim. 

Provavelmente naquele dia os sonhos nocturnos, aos que não acedi, deverão ter sido positivos e eu acordei cheia de futuros. Fico muito bem disposta quando sei que dentro do dia haverá algo bom naquele ou nos dias seguintes. Outros dias apresentam-se sem expectativas ou mesmo preocupantes e parece que ao acordar já se sabe isso, há mais peso e menos azul. Às vezes nem sei explicar as razões para a tristeza, como não sei para a alegria. Aceito agora muito mais que não consigo controlar tudo, pois se nem sobre mim tenho inteiro controlo.

Deixo a música a combinar, ouvida ontem ao vivo na grande sala do Sado.


~CC~



sábado, 3 de junho de 2023

Tantos anos depois...no Campo Pequeno

 

Sonhei contigo esta noite, sonhei que te encontrava lá. Não sei há quantos anos não te vejo, por certo mais de vinte. Provavelmente foi contigo que ouvi pela primeira vez uma música do Chico Buarque. Eras de uma família Lisboeta, de média burguesia, engajada na esquerda e muito culta. Eu era apenas uma miúda dos subúrbios, pobre e sem grandes horizontes culturais, na música o mais longe que tinha ido era ao horizonte dos Beatles e dos Génesis. Era milagre que me tivesses prestado atenção, atendendo ao meio em que vivias. Eu, tão tímida, reservada, média aluna, sem saber muito bem o que queria da vida, sem nenhum conhecimento dos meios artísticos ou culturais alfacinhas. Estava muito perdida quando me encontraste.

Um dia perguntei-te porquê eu. 

Usavas xaile, disseste. No dia em que te vi pela primeira vez tinhas um xaile, nenhuma miúda de quinze anos usava um xaile como tu usavas (nos anos oitenta).

Já não o tenho, nem sei bem como o arranjei, provavelmente pedi à minha mãe que o fizesse ou então encontrei-o lá por casa, deixado por alguém, já que a minha casa era também uma espécie de pensão.

Tenho contudo um ali muito bonito que raramente uso, não tenho coragem de usar algo tão excêntrico num tempo em que a excentricidade já quase não existe, é tudo muito mais banal. Lavei-o e estendi-o enquanto pensava em ti. 

Talvez o leve.

~CC~





quinta-feira, 1 de junho de 2023

Rosa, minha irmã Rosa

 

A miúda deve ter uns três ou quatro anos e só a vi três vezes naquele contexto de ATL de fim de tarde. Mas nunca consegui tirar os olhos daquela cara redonda, de olhos brilhantes e riso pronto. Nem da forma como se misturava com a terra, apanhava flores, manchava com gosto as mãos de tinta e se abraçava aos outros miúdos. Tudo nela é ampla liberdade. Desconheço os pais e o contexto familiar, assim como quase tudo sobre ela. Apenas sei que me apetecia ficar ali esquecida a vê-la brincar. Ainda há crianças que brincam.

Tão diferente da criança que eu fui, tirando o gosto por me sujar com terra e andar descalça.

Também há crianças sós, também há infâncias de solidão. Não posso dizer que tenha sido infeliz, havia sol, um quintal, mamoeiros altos aos quais retirava as canas para fazer bolas de sabão. Havia telhados e árvores para trepar, alguns livros e bonecas que nunca saiam do alto dos armários. Havia dois irmãos mais velhos que eram felizes, ou que o pareciam ser. Havia a rua, as brincadeiras na rua, quase sempre lideradas por eles, os mais velhos. Não havia quase nenhum dinheiro e às vezes apercebia-me disso. Um pai intermitente, uma mãe sempre presente mas totalmente ausente. Não sabia que havia solidão porque não tinha nome para o meu sentimento de estar num mundo só meu, atrás de uma cortina de vidro. Não sabia ainda que tudo iria piorar de um momento para o outro, acrescentado mais solidão à solidão já existente.

Para todas as crianças devia ser possível aquele sorriso da Rosa. Um sorriso que aprendi demasiado tarde a ter. Eu e muitas outras crianças.

~CC~