segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Dói-me a tua ausência

 

Fez ontem uma semana que partiste. Precisei deste tempo para te escrever. Como nos chocam as coisas que sabemos que vão acontecer?! Como é que nunca estamos preparados? Talvez porque não há preparo possível. É verdade que tu eras já um milagre, com a tua doença a maior parte desaparece num ou dois anos. Talvez fosse isso que nos fizesse arrastar a esperança, ou a tua força e resiliência. Este Outono, este Inverno, com chuva, vento, frio, pensava amiúde em ti e nos obstáculos que enfrentavas para ires à fisioterapia e tentares recuperar a marcha que perderas. Não era apenas um lance de escadas num prédio sem rampa e cujo condomínio se tinha recusado a fazê-la como obra colectiva, era o mundo representado nessa recusa, um mundo que não dá aos mais fracos grande importância.

Esta era a tua cidade, às vezes dizias-me que se notava bem que eu não era daqui, mas ajudaste muito a que me integrasse, a compreendesse e sobretudo me sentisse aqui mais acompanhada. Fiz do teu rio o meu rio. Viste crescer a minha filha e ajudaste nesse crescimento com o teu sentido crítico e dose certa de humor, até te renderes à miúda com quem conseguias cada vez mais conversar de igual para igual. Partilhava-a contigo com muita alegria.

Chorei e ri contigo, duas coisas que só fazemos quando a cumplicidade é o que nos une a outro alguém. Acolheste sempre todas as pessoas que amei e chamei companheiras, ajudaste a pensar essas relações, a superar os medos, as falhas, os desamores. Estou grata pelo momento em que sendo eu uma miúda alternativa (nessa altura dizia-se freak) e tu uma miúda betinha nos encontrámos, superando todas as distâncias que parecia haver entre os nossos mundos. Mais à frente surpreendia-me com alguns dos teus pensamentos, bem mais alternativos que os meus e sentia-me amiúde conservadora. Demos tantas voltas ao sol, aprendemos tanto. Dói-me a tua ausência. 

E tenho a dizer-te que te esqueceste de me dar a receita do bolo de amêndoa que sabias que eu adorava.

~CC~


4 comentários:

  1. Simples relato de uma situação tão humana e tão frequente. Grande dose de ternura.
    Parei no assunto do condomínio, um problema sermos obrigados a viver com um colectivo, na maioria dos casos com tantas deformações. Sei como é.
    Um abraço.

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    1. No colectivo reside o sonho e o pesadelo, o melhor e o pior. Um abraço e obrigada

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  2. A gente pensa que se a morte é esperada se torna menos penosa. Talvez menos chocante, mas nunca menos penosa. Como pode ser menos penosa a ida sem volta de alguém de quem gostamos?! Não pode. Ninguém consegue.
    É engraçado como ligamos algumas pessoas a certos sabores, bolos, refeições... Não gosto particularmente de pudim de ovos, faz-me até mal. Mas se falo dele logo uma amiga me vem à mente. E só em sua casa continuo a achá-lo magnífico. Não quero a receita, só assim continua a ser o pudim dela. Pense nisso em relação à sua amiga. Esse bolo de amêndoa será sempre e só o bolo dela.

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    1. Sem dúvida Bea, concordo com tudo o que diz, nunca farei esse bolo mas consigo sentir-lhe o sabor. Beijinho e obrigada

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