sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Ninguém vê



O que fazes quando estás sozinho/a e sabes que ninguém te vê?

Eu confesso, sempre que a comida se adequa, como tudo com um só talher; uma colher de sopa. Não há super ego capaz de me refrear.

Nada mau, parece que até aos 5 anos a minha preferência era comer com as mãos, por mais que tentassem ensinar-me o que era socialmente correcto, eu gostava de ser bicho.


~CC~

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Que espreite o sol



Como acender uma luz num dia chuvoso e tristonho de Janeiro?! Uma luz para quem chega até mim já na transição para a noite, depois de um dia cansativo e relativamente mal pago de trabalho...Alguém que se calhar estará a pensar no que fará para o jantar, no conforto do seu sofá, no abraço de uma criança pequena?! E no esforço de uma actividade não suficientemente valorizada socialmente, estão sempre a dizê-lo. E eu sempre a responder que a maior valorização vem de dentro.

Contudo, até eu às vezes preciso desse lume interior. Até ao fim e já depois de tantos anos de formação, duvido sempre da minha capacidade em entusiasmar alguém, salva-me aquela colega com quem falei mesmo ontem que diz que sou profissionalmente uma das pessoas mais apaixonadas que conheço. Já fui tão feliz como infeliz a fazer isto, por isso nunca sei o que vai acontecer-me, cada caso é um caso, é toda uma conjuntura. Reclamei por água e sei o quanto faz falta, mas será que o sol não pode espreitar um bocadinho? A ver se pelo menos dentro de mim o consegue fazer.

~CC~


terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Saudades



Tenho tantas saudades de receber uma carta que não contenha recibos, extractos ou publicidade. Tive a aguda consciência disso no outro dia no teatro, uma peça em que se liam e escreviam belas cartas. Saí de lá com uma carta que era generosamente entregue no fim a todos os espectadores, não consigo deitá-la fora.

Pior, já tenho saudades de receber um mail que não seja uma comunicação relacionada com o trabalho, qualquer coisa que contenha uma ideia, uma música, conte uma história ou tão só uma mensagem.

Por este andar, qualquer dia terei saudades de receber uma mensagem ou um telefonema não executivo, aqui sim na forma positiva do termo. Isto é anacrónico, bem sei, mas não consigo evitar ter nascido no século passado.

~CC~

Paladares



Eles abrem o meu armário da comida e activam a sua costela de detectives, a maior parte das vezes rendem-se e têm que me perguntar o que é. É verdade, sou intensamente atraída por coisas estranhas, ainda que amarrada às tradições culturais dos países e continentes por onde passei. Não encontrarão assim carne de morcego, formigas fritas ou compota de aranhas. As amarras culturais colocariam-me assim menos em risco face a vírus alojados em carnes estranhas como as que se vendem no mercado de Wuhan. Parece incrível que tudo tenha começado assim, com uma cobra ou um morcego. Mas como posso não compreender?! Eu sou aquela pessoa que pediu um gelado de mucua num sítio onde nem devia comer gelados, quanto mais de uma fruta local desconhecida. Acho que aí aprendi a lição, uma salmonela inesquecível que quase me levou deste mundo.

Tornei-me uma aventureira com muitos limites, os culturais e os da minha condição física. Ainda assim estou maravilhada com as flores de hibisco cristalizadas que comprei, com a sua cor e formato, são tão belas que não sei se algum dia as provarei. Já da pasta de tamarindo consegui provar um bocadinho e gostei, tem exactamente o sabor da minha infância, mas tenho receio de a consumir pois comprei-a num sítio um pouco duvidoso. Gosto também das comidas tradicionais, torço o nariz aquelas coisas que me parecem sem história, pelo menos para nós, tais como bacalhau com natas ou strognoff de frango. Tenho uma embirração solene com carne picada. Mas regresso a casa com as minhas papas de aveia matinais, é claro que, para além do limão e da canela lhe acrescento gengibre em pó, apenas para as tornar minhas.

~CC~

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Laranja sempre em flor



Luanda, minha laranja sempre em flor.

O que interessa não é que mude o poder, mas a substância de que se faz o povo. Uma substância que não pode ser mais a admiração pela esperteza, a subjugação ao poder, a atracção imensa pela riqueza fácil, o desprezo por quem é pequeno e pobre.

Há uns anos numa feira de rua, quando na Europa a crise já se adivinhava, um angolano baixou-me o preço de uma peça por eu ter cara de portuguesa pobre, comentando que os portugueses eram agora mais pobres que os angolanos, com um ar trocista e orgulhoso. Não obstante a sua própria condição de feirante, na verdade devia ganhar mais do que eu. Os aviões, esses iam cheios de estrangeiros no alcance do lucro fácil, mais de metade americanos. Agora parece que vão quase vazios. O escândalo é muito maior do que estes papéis e estas personagens.

Vi outras coisas deste povo e deram-me esperança. Da última vez uma mulher pediu-me ajuda para os problemas da filha, uma menina de 14 anos que quase não falava. Na verdade era sua filha adoptiva, resguardada na sua casa depois de ter sido abusada por membros da família, nenhum preso ou sequer acusado. Uma mulher que era um tesouro de humanidade e bondade. Pensei muito nela e na sua coragem nestes últimos dias. Uma laranja sempre em flor, que Luanda e toda a Angola se pudesse encher delas, livrando-se de princesas.

~CC~

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Entre o fogo fátuo e o gelo frágil



Ela ligou só para elogiar, para dizer que a sessão tinha sido boa e útil. E eu que tinha sentido exactamente o contrário, que me tinha faltado a luz. Há pessoas generosas, capazes de coisas pequeninas que fazem bem aos outros, que têm esse dom de exprimir afecto. Outras, são incapazes de um abraço. O que nos torna quem somos? O que nos molda desta forma tão oposta? E como é que a vida nos muda? Que acontecimentos, pessoas e/ou experiências actuam na nossa mudança?

Lembro-me do meu pai, adorava andar abraçado a nós na rua, lembro-me de adolescente lhe tirar delicadamente o braço dos meus ombros, cheia de vergonha. Da minha mãe, hei-de lembrar o abraço quase só como o amparo que lhe dou na sua velhice, para a ajudar a caminhar. Entre o gelo e o fogo, cresci assim. Um fogo fátuo, um gelo frágil.

Não me lembro de telefonar a alguém apenas para lhe dar um elogio. Mas já fui capaz, embora tardiamente, de ligar para saber apenas como a pessoa se sentia e estava.

~CC~

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Frágil



Tenho uma dolorosa consciência da fragilidade de tudo. Não me assombra mas às vezes assusta-me. Ainda hoje um pássaro morreu contra o vidro do meu carro em plena auto-estrada do sul, afastou-se apenas ligeiramente do bando mas não subiu a tempo de evitar o embate enquanto os outros o fizeram. Estava demasiado vento e isso deve ter atrapalhado os seus cálculos. Apeteceu-me parar e chorar copiosamente a sua morte injusta. Nesse momento tive consciência também da minha própria fragilidade. Fechei os olhos sem os fechar verdadeiramente, parei para um café, e agarrei-me à vida como sempre faço.


~CC~

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A cor do ano

Resultado de imagem para cor do ano 2020

Esta cor divide-me. 

Mergulho nela como num manto infinito de paz e silêncio e consigo respirá-la, insuflá-la, senti-la a preencher-me lentamente o peito, a dirigir-se para o ventre, a espalhar-se pelas minhas pernas e braços, sobe-me à cabeça e os meus cabelos tornam-se azuis. Acho que consigo ficar tão leve que posso voar.

Mergulho nela e sinto-a gelada, quero fugir-lhe, mas é como um nada que me apanha e me tolhe os movimentos, é como o vazio da morte quando ela nos ronda. Ganho-lhe medo.

Creio que o problema está no clássico, o clássico tem sobre mim este duplo efeito de atracção e afastamento. Penso em como será toda a cambiante de azuis não clássicos, hei-de descobri-los. 

~CC~


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Aldeia poema




Foi em Dezembro que localizei um círculo no mapa, já são poucos os que consigo traçar no mapa do nosso país, correspondendo a lugares desconhecidos. A muitos fui só para encher os olhos de lugares não vistos, a muitos, muitos outros, fui em trabalho. Gosto de ir dos dois modos, são duas formas de estar diferentes. Desta vez precisava de ir sem tarefas, estava exausta. Procurava apenas duas coisas: horizonte e silêncio. Não sabia nada desta aldeia que escolhi no Alentejo interior, detectei a hipótese de ficar numas casinhas da própria terra, fora de unidades hoteleiras mais comuns e massificadas e simplesmente marquei. Logo nas primeiras casas à entrada comecei a ver as frases escritas nas paredes. Uma e mais outra e outra, acabei por as detectar todas no passeio posterior, já a pé. Depois a conversa com as pessoas desvendou mais e mais. Tinha encontrado uma aldeia poema. Há ocasiões de sorte ou talvez seja eu que ainda me apaixono com facilidade.

~CC~

domingo, 12 de janeiro de 2020

Mães e filhas



Olho para a sua condição de fragilidade e crescente falta de autonomia e revejo o curto período da minha vida em que também eu estive naquela condição, lembro-me de todos os pensamentos negros que então tive, mas havia alguma esperança de recuperar, coisa que nela é mais ténue, embora tenha havido lentos progressos.

Só há uma coisa que me distancia totalmente dela. Enquanto para ela a imagem é muito importante, recusando sair à rua porque o cabelo não está arranjado, porque não quer que a vejam de andarilho ou de cadeira de rodas, eu saí muitas vezes de carequinha e se fosse preciso ir ver o mar de cadeira de rodas, iria. Enquanto para ela a velhice foi o perder de uma magnífica beleza sem nada em troca de substantivo, eu não tenho assim tanta beleza para perder e espero ganhar alguma paz e mais saber. Não posso prometer não ficar algo implicativa, por vezes injusta, por vezes sombria. Terei ganho por ter lidado com este processo, espero poder lembrar-me e fazer o meu melhor, sobretudo por ti, menina que vens depois de mim.

~CC~

sábado, 11 de janeiro de 2020

Sábado



Sei que o mundo é hoje um lugar em perigo, inóspito, cheio de loucos que chegaram à política, de guerras tribais que voltaram em força, totalmente ameaçado pela ganância, dominado pelo capitalismo, em que surgem novas formas de entreter as pessoas para as distrair das suas pequenas ou grandes escravaturas.  

E, no entanto, ao acordar com saúde e ao ver a beleza deste sábado de sol de inverno, quase esqueço que este planeta é um leão ferido, sinto-me como uma borboleta que nasceu para poisar nas flores. Ganho assim coragem para deixar de lado o trabalho de lado, ao qual prometi dedicar-me. Vou  ali respirar azul.

~CC


quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Nostalgia



Estive a contar e os anos de vida em Lisboa ainda ganham a todos os outros.

Houve a Lisboa da minha adolescência, quase desaparecida. O que não morreu, é hoje profundamente diferente. A baixa, Alfama, o Bairro Alto. Amei e vivi intensamente cada um destes lugares. 

Houve a Lisboa da minha idade adulta, que julgo ainda viva e por isso busco-a e ao buscá-la constato também que certos lugares, icónicos, se esfumaram. Acreditam que fui à livraria Buchholz no Campo Grande? A senhora do café olhava-me incrédula: mas minha senhora isso já desapareceu há uns anos. Ainda penso ir ao cinema Londres e tomar um café com um scone no Magnólia. É hoje um hiper china fantasmagórico. Sobra-me a livraria Barata, mas acho-a um bocadinho sombria, parece não ter o encanto de antes. E todos os cafés são agora padarias, cadeias de padarias, iguais em cada bairro, com os mesmos produtos e os empregados vestidos com os mesmos uniformes, mais uma mania que durará uns anos. E no Go Natural, essa primeira loja de produtos saudáveis, um sopro de ar fresco quando abriu, pedem-me agora o cartão continente, pelo que deve ter sido comprada pela Sonae.

Estas rugas não são visíveis ao espelho, são uma espécie de marcas interiores, um frio que nos chega quando sentimos perder os sítios que identificamos como parte da nossa vida. Sempre me disseram que eu tenho uma costela nostálgica, qualquer coisa de triste que me anda agarrada. Enfim, sobra-me a outra para rir.

~CC~





terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Parece que hoje é Natal



Liguei-lhe para dizer que não viesse, a casa tem estado vazia, não precisa de limpeza. Ficou feliz porque hoje é dia de Natal para ela e para os seus ia ligar-me pois havia festa toda a tarde e era capaz de durar até à noite. Gostei que me tivesse contado. Gostei que me recordasse que o mundo não gira todo da mesma maneira, à mesma velocidade e com os mesmos rituais. Somos etnocêntricos até à medula. Pensei nos seus dois meninos que já nasceram cá em Portugal, esperando que possam festejar todos os natais a que têm direito, sem nenhum conflito de identidade. Às vezes apetecia-me ir a esses natais de outras latitudes e orientações.

~CC~

sábado, 4 de janeiro de 2020

Acordar



Fiz a mala a 21 de dezembro e ainda não voltei a casa, nestes dias dormi em muitas casas diferentes e tive a minha aldeia como queria, tive mesmo duas. Acho que o meu ter vai ser sempre assim, volátil, temporário, errante. Voltarei para vos falar dessas aldeias em lugares tão diferentes, tão temporariamente minhas, sei que em nenhuma delas viveria. Cada dia que avança sei que de meu só terei mesmo o meu corpo e as marcas que fui deixando por aí, muitas coisas que o tempo apagará e outras que talvez não. Provavelmente ter não é a minha natureza, enraizar-me, fazer ninho. Um dia aceitarei talvez a minha natureza vagabunda, saltimbanca, desprendida de tudo quanto é material.

Por necessidade encostei aqui, talvez a terceira das minhas cidades, a número três.

Onde vocês cresceram e foram tão felizes, entre zangas monumentais, muita praia, portas a abrir e a fechar, fantasias de deixar qualquer um estupefacto. Pouco resta dos vossos risos, as casas são já outras, sobretudo uma delas, é agora bela como um museu pode ser belo, mas que saudade da desarrumação em que se arrumava. As duas casas estão agora mais tristes, embora o sol lhes continue a bater durante toda a tarde e a vista continue deslumbrante. 

A linha do horizonte mostra três camadas de um laranja a três tons sobre os vários braços da ria. A senhora que esta manhã vendia conquilhas na rua diz que as apanhou ali, quando o sol ainda raiava.  A ria, esta ria, talvez a primeira das coisas com que este país me encantou. É tão bom poder vê-la ao acordar.

~CC~





sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Vai demorar um bocadinho



Há momentos de grande desarrumação interior, sentimos que nada fica igual, as coisas próximas ficam distantes, como se estivessem noutra vida.

Creio que um desses momentos, provavelmente não só para mim, acontece quando temos que trocar fraldas à nossa mãe. Essa inversão de papéis é muito dolorosa e é uma dor que não se explica facilmente, penso que é vivida tanto pelas mães como pelos filhos e filhas.

Quando um novo ano começa difícil, deixa-nos ficar, contudo, com esperança, talvez acabe melhor.

Já a ausência, daqui, de outros lugares, e até da minha própria vida, é muito mais que falta de tempo, de oportunidade, de capacidade, é o desalento que toma o espaço de tudo. Também sei lutar contra ele, também saberei vencê-lo, às vezes demora um bocadinho, vai demorar um bocadinho.

~CC~