terça-feira, 17 de junho de 2025

Junho, era bem capaz de me habituar a esta rotina

 

9.09 - Primeiro banho de mar de água gelada mas tão transparente, tão bonita, mergulho entre pequenos peixinhos. Quase ninguém, silêncio tão bom.

9h30m- Chegam as crianças, são muitos grupos e com muitos meninos, há bonés amarelos, azuis, fatos de banho todos iguais em alguns grupos e noutros todos diversos, bem clara a origem social. Muitas vozes, muitos gritinhos...

10h - Chegam os grupos de idosos dos centros sociais, a técnica traz uma bola muito leve e trocam-na entre eles no círculo dentro de água. São silenciosos, mas às vezes escapa uma asneira.

10h30m - Chegam os adolescentes em grupos de 6 a 8, trazem farnel para o dia todo. Atiram-se à agua ao desafio em chapões, como é que a adolescência é tão diferente e ao mesmo tempo sempre igual.

11h Café, cada ano mais caro. Mas a mais bela das janelas.

11h15m -Regresso ao trabalho em casa até pelo menos às 20h.

Infelizmente nem todos os dias de Junho poderão ser assim, bem vistas as coisas era capaz de gostar desta rotina, eu que sou tão avessa a elas.

~CC~

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O que de nós fica no mundo

 

Quando os ventos no campo profissional se agitam turbulentos e deles já só esperava mansidão e me zango quando já não me esperava zangar-me, há sempre algo que vem romper a tristeza da situação, normalmente um encontro casual com um jovem ou adulto de quem já fui docente e que entre abraços, às vezes lágrimas, outras pedidos de telefone que sugerem projetos ou criações futuras, me agradece. Nenhum deles sonha que às vezes rompeu um momento de negrume. 

Fico com a certeza de que as pessoas são ainda assim mais capazes de bondade e gratidão que as instituições, estas tendem a ser como os partidos políticos, gigantescas máquinas de trucidar insurgentes, mais atreitas à mentira e à ilusão do que à verdade e ao confrontamento. O que fica de nós no mundo é sempre esse bocadinho que deixámos no coração de alguém.

~CC~

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Vidas com livros

 

Chegou ao fim o Clube de Leitura que dinamizei este ano com estudantes e que resultou de uma candidatura ao Plano Nacional de Leitura. Foi uma experiência tão maravilhosa quanto dura. Dura quando as sessões ficavam quase vazias, maravilhosa sempre que as pessoas apareciam. De resto o conteúdo ou a dinâmica não são o mais relevante, apenas termos gente. Veio uma jornalista ouvir-nos e foi muito bonito, talvez das coisas mais bonitas. Nesse dia lemos um livro infantil baseado na história de vida da Marielle, a ativista brasileira assassinada no Rio de Janeiro. E foi a um sábado à tarde, alguma gente, não tanta quanto desejável, e apesar da minha filosofia ser sempre a de que contam os que estão, às vezes são mesmo poucos.

Duvido das estatísticas que ora apontam euforia ou depressão quando relacionadas com livros. Cresce o império dos livros triviais, sem grande brilho, ainda assim se há quem leia por causa disso, é deixar existir.  A maior parte lê apenas nas redes sociais, pequenas noticias, muitas coisas motivacionais ou de gente famosa ou de infuencers (até me custa usar esta palavra). 

Com tudo isto eu própria cheguei à conclusão que não leio o suficiente, poderia com facilidade escudar-me no excesso de trabalho e estaria a dizer a verdade. Mas não seria a única verdade, poderia não ligar a televisão uma ou duas noites por semana, poderia gastar uma hora por dia a ler numa esplanada. Os clubes de leitura, com tudo o que bom e de mau têm, obrigam-nos a ler um livro por mês (o meu não era assim, seria impossível dinamizar um clube desse tipo no ensino superior, com estudantes). Já comprei o deste mês, surpreendentemente numa semana li um terço, o que me mostrou que é possível. 

Não sei se há desse lado experiências com Clubes de Leitura, mas gostava de saber.

~CC~

Nota: Ainda a propósito de pessoas agredidas pela suas ideias e pela sua arte, Adérito Lopes é actor mas é também um maravilhoso professor de teatro, daqueles que recupera miúdos que há muito parecem descrer da escola e do seu potencial. Um murro nele é um murro na humanidade. 





segunda-feira, 9 de junho de 2025

Das coisas incompreensíveis

 

Ao início da tarde de Domingo, passei de carro e pasmei com a fila enorme de domingo à porta do Russo dos Caracóis. Pensei com os meus botões que há coisas no mundo que não compreendo e esta é uma delas.

Ao final da tarde, quase noite, oiço gritos e palmas na rua. Ligo a televisão e comprovo, a selecção de Portugal está a jogar. Também há coisas que não compreendo sobre mim, uma delas é não saber destas coisas, conseguir não saber uma coisa que todos parecem dominar.

Quem sabe a primeira e a segunda coisa até estão relacionadas. 

~CC~

domingo, 8 de junho de 2025

Um dia girassol, no outro margarida

 


Vejo flores, inundam Junho.

Atrai-me muito o girassol e o seu poder, essa energia vibrante que se vira sempre para buscar o sol e se põe por inteiro nas coisas para as transformar. Mas ao mesmo tempo esse amarelo que pulsa e vibra e tudo parece absorver, assusta, queima, distancia. Aprecio o seu poder mágico, ao mesmo tempo que o receio. Vejo as margaridas pequeninas mas tão poderosas porque muitas juntas criam um tapete que embala o vento. Mas tantas coisas iguais juntas criam a monotonia, um suave tempo que sem diferença é excessivo em harmonia. O girassol é jovem, a margarida uma velhinha. Um dia sinto-me girassol, no outro uma margarida. Um dia quero para mim o girassol, no outro uma margarida. É assim que vivo, entre flores que são diferentes partes do que desejo, sou e quero

~CC~

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O vento da noite também queima

 


Aguentei duas horas de vento intenso e frio e hoje acordei com o rosto como se tivesse ido à praia sem colocar protector. Afinal sou mais parecida com as plantas às quais a geada queima do que poderia imaginar. O filme era sobre mim e por isso não o pude abandonar. Deve ser por isto que existe a arte, para nos ajudar a encontrar aquilo que por vezes não conseguimos dizer, nem tão pouco saber inteiramente. O filme foi assim uma consulta gratuita ao divã. Ainda não sei exactamente o que fazer com a clareza do que trouxe comigo mas por ora preciso é de colocar bastante creme nas faces. 

~CC~



segunda-feira, 2 de junho de 2025

Chegava ter corpo e mãos

 


A criança chegou com os pais e devia ter pelo menos uns 8 anos. Apesar de serem apenas 9 da manhã não pode tirar a t-shirt nem o chapéu e os pais listaram oralmente todas as brincadeiras que podia fazer, mas recomendaram expressamente uma. A criança não abriu a boca e ficou sentada na areia a olhar o mar, tão parada e quieta que não parecia ser real. E isto a ocorrer no dia que simbolicamente seria o dela. 

Que sorte tiveram as miúdas que criei, mal chegavam à praia inauguravam o festival de pinos e rodas e depois esgueiravam-se para a água até ficarem com os lábios roxos. Aos três anos ou quatro anos deixámos de levar baldes e outros objetos mais ou menos inúteis, chegava ter corpo e mãos. 

As bolas de berlim só tinham duas modalidades, com e sem creme. Nada mais nos fazia falta.

~CC~

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Mulheres com lágrimas

Tantas reproduções que já tinha visto do Guernica, tantas. E ali diante do quadro real a dificuldade que tive em estancar as minhas lágrimas. Estava ali tudo, todos os gritos do mundo que me angustiam e enegrecem a beleza dos dias. 

E segui pela sala em frente para ficar quieta e muda diante das mulheres que choram. Mulheres que têm fome, mulheres que perderam filhos, mulheres que ficam para trás em tempo de guerra e fazem dos escombros as suas casas. Estavam ali as mulheres de Gaza, as mais meninas, as mais adultas, as mais velhas. E estava também eu e o meu corpo com partes em falta, esse corpo que tapado me parece aceitável e nu me envergonha, estava também ali o meu choro sem lágrimas na cama do hospital, nos amores que morreram, nos amores que não nascem. 

E depois vi a minha filha lá ao fundo numa sala, a olhar demoradamente os quadros e senti tanto orgulho nela, quando nos encontrámos no jardim já tinha o rosto limpo e provavelmente até sorria.



Mas as lágrimas, as lágrimas por vezes voltam.


~CC~

Nota: Quadros obviamente de Pablo Picasso.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Não é coisa que faça mal a ninguém...

 

Chamam-nos mocinhas naquele tom açucarado que trouxeram do outro lado do Atlântico. E convencem-nos com facilidade a endireitar as costas, a esticar as pernas e os braços, naquela ilusão de que os nossos corpos podem não ceder totalmente à gravidade. Mas não somos todas quase idosas ou idosos, há pessoas de todas as idades e algumas jovens, fico espantada com a sua opção por não escolherem os mega ginásios mas um pequeníssimo estúdio de Pilates. Dizem-se fisioterapeutas e eu acredito, mesmo sem ver o diploma, são criativas e bem dispostas, uma um pouco mais experiente que a outra. 

Talvez por ser a mais novinha, ela tenha pisado o risco. Até queria ser simpática, elogiou a senhora de meia idade, dizendo-lhe: a senhora tem um corpinho de fazer inveja, que cinturinha! Só que seguidamente: a senhora nunca foi mãe, pois não?! A senhora engasgou-se, respondeu baixinho: sou mãe, mas não biológica. Reparei no cabelo curto, na voz forte, no seu jeito masculino e talvez me engane mas pareceu-me uma orientação sexual predominante para pessoas do mesmo sexo. A pergunta já tinha sido um pouco invasiva, mas naquele caso talvez o tenha sido mais. A mocinha precisa de juntar à destreza física um pouco de psicologia, afinal não é coisa que faça mal a ninguém.

~CC~



quinta-feira, 22 de maio de 2025

Cozinhas decorativas

 

Desta vez os meus olhos pararam admirados no número de motas e bicicletas com uma caixa acoplada para levar comida, ligadas a várias plataformas, uns em andamento e outros parados, nas avenidas centrais de Lisboa. Concluo que grande parte das cozinhas em Lisboa se tornaram espaços meramente decorativos. Eis algo que a pandemia não levou, antes pelo contrário. 

Eu que ainda piquei cebola como um modo de puxar as lágrimas que não queriam descer e queimei muitas panelas enquanto trabalhava, tenho dificuldade em entender. Mas dificuldade em entender é algo tão abrangente que apenas tento que não domine toda a minha relação com o mundo.

~CC~


domingo, 18 de maio de 2025

Três laranjas, muita tristeza

 

É uma boa mercearia porque ele traz fruta da zona, queijos de várias partes do país e inúmeras outras coisas caseiras, embora em tempos tenha tido mais olhos que barriga e tenha querido abrir uma cadeia, com várias mercearias na cidade e uma loja de vinhos, tudo com o seu nome próprio em letras garrafais. O negócio correu mal e ficou apenas com a loja onde tudo começou. Mas sempre houve alguma coisa que me distanciou dele, uma forma de trato que embora cordial não me era próxima. Mas ontem tudo descambou.

A loja, mercê de ser quase hora de almoço estava sem ninguém, apenas eu e ele. Eu estava dentro da loja, quase na frente dele e a dar-lhe as coisas para pesar, mas ele mal olhava para mim, os olhos fitos no exterior, tive que me voltar para ver. Era um miúdo que andava lá fora a escolher fruta, talvez uns dez anos, negro. Já vi várias pessoas andarem lá fora a escolher fruta e nunca o tinha visto naquele controlo. Obviamente a desconfiança era muita. Mas o miúdo entrou e trazia três laranjas no saco para pesar. Ele disse que não lhe podia vender três laranjas, que o mínimo era um quilo. Inconcebível. Mas a criança foi encher o saco com mais laranjas e voltou para as pesar. Totalizou um euro e dez cêntimos e o miúdo estendeu uma nota de dez euros, ao que ele respondeu: não tenho troco. O miúdo em silêncio, nunca abriu a boca, saiu e deixou as laranjas. Eu saí também quase de imediato, indignada com tudo aquilo. 

Não encontrei o modo certo de interferir. Podia ter dito que tinha troco, mas efectivamente não tinha, se pagasse o valor, parecia que estava a dar uma esmola ao miúdo, o que ele obviamente não precisava. Simplesmente devia ter perguntado ao merceeiro porque não vendeu a fruta e que a criança tinha todo o direito de comprar apenas três laranjas. Não, isto não se passou há muito, muito tempo, foi mesmo em 2025.

Certo é que não volto lá mais.

~CC~


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Notícias da cidade grande

 

Outra vez na cidade grande, estranho-a como se nunca tivesse cá vivido.

Logo pela manhã no café um casal jovem pediu duas saladas de fruta e uma garrafa de água, não estava a ver ninguém a fazer tal na minha cidade pequena.

Mais adiante um édredon mexeu-se ao cimo de umas escadas e assustei-me mas era só um sem abrigo a espreguiçar-se lá dentro.

E pela hora de almoço ia sufocando no centro comercial, nunca pensei que houvesse tanta gente a frequentá-lo, havia filas e praticamente todas as mesas estavam cheias, não sei de onde saíram tantas pessoas e ao fim de um bocado tive que sair, nem tomei café, incapaz de suportar tanto ruído e luz.

E há lojas e lojas cheias de coisas, primeiro entro maravilhada, mas depois é um excesso de cor, de estímulo e não consigo comprar nada.

Salva-se a beleza do edifício em que momentaneamente estou a trabalhar, acabadinho de restaurar, é como um oásis de verde e azul, tem as paredes cheias de rostos e de frases de escritores e é como se os jovens os respirassem. A jovem da saia branca que escreveu um poema sobre a sua saia branca e o leu para celebrar a liberdade de poder escolher a cor da sua saia, tinha um brilho tão grande nos olhos que iluminou também os meus.

~CC~




domingo, 11 de maio de 2025

Premir o botão

 


Quanta falta nos faz a insatisfação.

E uma pitada de humor...ai Onofre!

~CC~


sexta-feira, 9 de maio de 2025

Coração velho

 

O coração bate rápido, como aquele passarinho que a Primavera viu nascer. Mas com o passar dos dias, falta-lhe aquele alimento que permite ao passarinho ganhar asas e voar. Falta-lhe não só a segurança da mãe que traz o alimento, como a inocência de quem quer ver o mundo.

O meu coração é velho, assim é que eu sei. Demora a arrancar, têm êxtases momentâneos, encarquilha com a insegurança e desiste com facilidade. Ainda acende o que é uma constatação nova para a descrença que tinha nele. Mas um coração velho é parecido com esta Primavera, tão cheia de hesitações, de rasgos de sol logo afastados pela sombra e pela chuva, de uma temperatura que não se sustenta, de flores que tanto aparecem como se escondem. O meu coração é velho, da idade do meu corpo.

~CC~

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Tão como nós

 

Titia, que é para fazer agora?

Falam assim os meninos, uma boa parte dos meninos que encontramos nas nossas escolas. Depois dele me fazer esta pergunta, sendo a primeira vez que me via na sua sala de aula, perguntei-lhe mais coisas. Se tinha memória da Bahia que o viu nascer, ligação com os avós ou com outra família do outro lado do Atlântico. A tudo respondeu que não. Guardava apenas na fala aquele sotaque, aquele jeito doce. São estes meninos que querem colocar na fronteira, aqui e noutros lugares? Não quero simplificar aquilo que é complexo, mas algures, umas gerações atrás, eramos nós estas crianças em múltiplos lugares deste mundo, tão filhos de ilegais quanto muitos dos que connosco se cruzam.


~CC~

 


domingo, 4 de maio de 2025

Foi contigo que aprendi a derrubar certos muros

 

Falta-me ligar-te e saber a ordem pela qual eu tinha chegado. Registavas com afinco os deveres afetivos dos teus filhos e as falhas magoavam-te, embora com o tempo também relevasses quando, pela distância, não me era possível fazer-te chegar um presente, nessa altura bastava a voz e um beijo. 

Sinto muitas e muitas vezes a tua falta e sei que contigo aprendi a valorizar as pessoas comuns, presas de tradições, rituais e amantes das pequenas coisas. Nunca me leste histórias mas contaste muitas histórias, nunca me falaste sobre o universo ou discorreste sobre os sentidos do mundo, as guerras ou as problemáticas políticas que nos contornam as vidas, mas ensinaste-me a fazer ervilhas com ovos, a votar em todas as eleições e a apreciar um café e um bolo de pastelaria. Levei tempo mas não esqueço nem esquecerei que foste tu que me destes os meios para saber falar com uma infinidade de gente diferente e apreciar. Não era preciso que tivessem feito a faculdade, soubessem falar bem, dominassem ou gostassem de alguma arte, lessem ou viajassem...

Foi contigo que aprendi a derrubar certos muros. 

~CC~

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Esta Primavera

 

A Primavera não trouxe apenas aos meus olhos essa irritação vinda do pólen das ervas e das flores, ao meu coração chegaram estranhas borboletas, não consigo decifrar-lhe bem a cor, o rumo do voo, se irão pousar ou desaparecerão mal feche os olhos. Não sei dizer se este tremor que me abala o corpo e enfraquece as pernas não passará daquela ilusão que têm os mortos vivos, são descritas as melhoras da morte, ou seja a forma como aqueles que têm morte anunciada vivem dias antes um fulgor de vida como se tivessem renascido, dando a todos uma esperança de que estão regressados para afinal se despedirem. Creio que o amor também faz partidas destas, ameaça vir instalar-se para depois partir para sempre.


~CC~

quarta-feira, 30 de abril de 2025

O ruído que interrompe o silêncio

 

Os fins de tarde no Recife ficaram registados em mim. A partir das 17h e considerando que às 18h é de noite, as crianças e jovens começavam a afluir. Traziam bolas e enchiam os vários parques desportivos ao longo da enseada da praia. Às 18h, já com as luzes ligadas, continuavam a jogar. Era um ruído maravilhoso de gargalhadas e gritos. Praticamente não havia adultos, eles tinham vindo por ruas e ruelas até ali e gozavam aquele momento antes do jantar com uma alegria imensa. Era uma liberdade contrastante com aquelas que nós europeus em visita não tínhamos, mostrava o quanto eles eram daquele lugar.

Essas crianças e jovens apareceram aqui na rua e parece que por Portugal inteiro durante o apagão. De repente tinham na mão bolas em vez de telemóveis. E sabiam brincar. Eu que gosto de silêncio e estive sempre sozinha em casa agradeci-lhes tanto esse ruído vivo e intenso que vinha da rua, subia ao terceiro andar e parava no meu coração.

~CC~~


sábado, 26 de abril de 2025

Uma e outra vez e sempre a Festa


Uma e outra vez o cansaço agarra as pernas a casa. Uma e outra vez elas movem-se, vencendo-o. Uma e outra vez penso que já vi todos os cartazes, todas as pessoas, todas as manifestações. Uma e outra vez o olhar maravilha-se e capta novas e diferentes imagens, o coração volta a voar e a querer cantar, volta a ser como os pássaros. 

~CC~

domingo, 20 de abril de 2025

É esse grão de loucura a cola que nos une

 

Paçoquinha e amores perfeitos são os meus doces desta Páscoa. Recém chegada não havia onde comprar folar e muito menos o cansaço acumulado me motiva à cozinha. E se estivesse lá sabem o que comeria? Bacalhau da Páscoa, é o o que se come na maior parte do Brasil nesta época (pelo menos em Pernambuco, o Brasil é tão imenso que talvez haja diferenças). 

Podemos ser iguais e ainda assim muito diferentes? Foi o que senti esta semana. Tal como acontece com os irmãos em que o sangue partilhado e o sangue singular tornam cada um único. E rejeitar as semelhanças é tão inadequado quanto o contrário. 

Voltando ao que une, uma boa dose de loucura alimenta por certo dois povos que escolhem para prato típico dos seus momentos religiosos e festivos um peixe que não existe junto das suas costas.

~CC~

sábado, 19 de abril de 2025

Conviver com os tubarões

 

De manhã a água turva, o vento e as pequenas ondas traziam a todas as conversas os tubarões fugidos do seu berçário natural, espraiando-se agora à espreita dos mais afoitos ao longo de toda a costa de mais de seis quilómetros da praia da Boa Viagem. Não são uma ilusão, avistei a barbatana de um e no grupo houve quem os filmasse por mais de uma vez, a não ser que sugestionados pelo receio, as nossas pupilas gerem estes fantasmas.

Contudo, os avisos de cuidado com o turbarão estão lá e são parte integrante da paisagem, embora pareçam de filme de Hollywood, quase a par das histórias que se contam pelas esplanadas, invariavelmente de um ou uma turista europeia, bem lourinha, tornada almoço do animal marinho. Já para os vendedores das mais de mil coisas que se encontram pela praia, não passam de uma invenção, ao estilo das bruxas, e foram boatos para levar todos os turistas do Recife para Fortaleza.

Pela tarde, o mar fica mais claro, sem modo de se disfarçar os tubarões ficam para lá da barreira das rochas e as crianças podem largar as piscinas de plástico que são afincadamente enchidas pelos mil e um trabalhadores da praia, a troco de uns poucos reais. 

A minha condição de nadadora pouco audaz colocou-me em paz com os tubarões e pude deitar-me na água cálida como se fosse ainda uma criança deslumbrada pela possibilidade de ficar no mar infinitamente, sem o mínimo perigo dos lábios roxos. Ainda assim, sendo veraneante intermitente, não pude usufruir nem desfrutar em pleno, era pouco o tempo para beber o sol. Reforcei, contudo, a minha convicção de que a felicidade combina mesmo com certos momentos da nossa existência..

~CC~

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Vanessa Cardui

 

Há borboletas que atravessam um oceano, o mesmo atlântico que eu pretendo cruzar. Ao contrário de outras espécies que fazem curtas travessias parando para descansar, esta aventurou-se mais, muito mais, chamam-lhes bela dama e dizem-nas mundanas. Deve ser o seu desejo de ver mundos outros que as leva a superar-se. Oxalá que eu também consiga ultrapassar as minhas fragilidades, esta foi uma semana atravessada por constipações, calor febril, momentos de insónia e alguma insatisfação. Às vezes é preciso ir respirar do outro lado do oceano, ou do outro lado de nós próprios. 

~CC~

domingo, 6 de abril de 2025

É singular

 

Ontem fui ler uns textos no aniversário de uma biblioteca que muito frequento. Eu e mais umas quantas pessoas, elas por serem habituais nas oficinas de escrita criativa que a instituição dinamiza. A mim falta-me o tempo para me inscrever e a crença de que tal fará de mim uma escritora melhor. Contudo, acredito que seja algo de positivo, pelo menos assim o partilharam. Cada um leu textos seus e de outras pessoas e ainda lemos todos juntos uma pequena quadra. 

O público não era muito e por isso não pude deixar de notar no homem de telemóvel na mão a filmar. É coisa que me chateia muito alguém filmar sem pedir consentimento. Contudo, percebi que não tinha com o que me preocupar. Ele filmava apenas uma pessoa quando ela lia. Era uma mulher grande, de cabelos todos brancos, sorriso largo, nem bonita nem feia, mas de alguma forma parecia estar em paz, transmitia isso. Num determinado momento, ela leu uma pequena poesia intitulada Narciso que evocava sol e que acabava em amo-te. Disse-a a olhar para o homem que filmava e que se emocionou. Ficou então claro. Depois alguém comentou que eram marido e mulher desde sempre, ele aparentemente um pouco mais novo, por isso não efectuei logo aquela ligação. 

Como é belo um amor que perdura assim. Mas não queiram saber o segredo, não há. Cada amor destes é absolutamente singular.

~CC~


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Para derrotar o medo

 


O medo está a subir na escala. Talvez medo nem seja a palavra. É mais desconforto. Não gosto de aeroportos nem de aviões. As barreiras, os apitos, a polícia, os documentos, é tudo insuportável. Como é que alguém que detesta uma coisa a faz?! É o destino do outro lado a chamar. Haverá uma balança em que o desconforto pesará tanto que ficarei à beira de desistir, aguentarei por um triz. Depois talvez chegue e se assim for e acordar na manhã seguinte numa rua e num lugar que não conheço, farei como as mães que deslumbradas pelas crias esquecem toda a dor. Mais, apenas longe de casa consigo realmente descansar. E a cada dia noutro destino é como se tudo se relativizasse para me proporcionar o esquecimento necessário para respirar mais e mais e outra vez. Além disso, derrotar o medo é viver, escrevo aqui também para o derrotar.

~CC~


segunda-feira, 31 de março de 2025

Um bichinho inquietante

 

Hoje numa reunião numa escola que acompanho, disseram-me que alguns estudantes tinham entrado durante o fim de semana, não o tinham feito para roubar nada mas sim para escrever nas paredes. Quando dei por mim a pergunta já tinha saído: e escreveram alguma coisa de interessante? É que as paredes também falam... Vi o espanto no olhar do outro e a resposta foi negativa, parece que foi só asneirada. Ainda assim gostava de ter visto, quando alguém se dá a tal trabalho, não me chega o rótulo de vandalismo, tenho curiosidade por perceber. Admito, contudo, que alguns atos possam ser gratuitos e sem sentido e que tenho cá dentro um bichinho chamado Psicologia, é uma grande ajuda na janela que se abre ao mundo e na inquietação que transporta, mas às vezes também é só uma minhoca. 

~CC~

sexta-feira, 28 de março de 2025

Transbordar

 

Ontem transbordei, sensação de felicidade e ao mesmo tempo de exaustão, pois o dia começou às 6h.

Fiz a fotossíntese, assisti a uma estreia de Teatro e a A. realizou com sucesso mais uma das suas provas no percurso profissional, fê-lo com muito  êxito e, ainda assim, modéstia. Nos três casos recebi sol para transformar em matéria celular vivente. O corpo anda a reboque, às vezes com dificuldade, peço-lhe que se aguente em prol da luz.

~CC~


domingo, 23 de março de 2025

Vê como esta Primavera chegou tão torta e imperfeita.

 

Foi tudo por causa de Lá.

Poderia imaginar um lugar onde confluíssem as minhas devoções todas juntas?! O José Luís Peixoto junta-se ao Teatro Meridional e ao Teatro de Montemuro?! Nenhum desiludiu, pelo contrário, potenciaram-se uns aos outros. 

 é aquele lugar onde pensamos ser felizes, aquele lugar que buscamos sempre como uma quimera, aquela risca azul do arco-íris. Partimos nessa busca mas quando chegamos nada é o que imaginámos que seria. E vamos e voltamos. E quando voltamos e pensamos que afinal o lugar que deixámos para trás era afinal o melhor, no regresso ele também já não é o mesmo. Talvez esta peça seja sobre campo e a cidade, sobre emigrantes e imigrantes, sobre ir e voltar. Mas é também outra coisa. Ou talvez a coisa que eu senti e só eu. É sobre o lugar onde pensamos que está a felicidade, um lugar de chegada. E depois de lá chegarmos afinal a felicidade esquivou-se e não nos abraçou como devia. 

A Primavera também chegou com chuva e muito vento. E depois da chuva dar tréguas veio o frio. Não é o que esperávamos. Mas há alguns morangos, há margaridas brancas e amarelas, há de quando em quando um raio de sol que fura aos nuvens, há o cheiro da terra encharcada de água, há bichos sem sede. 

Não há , há uma só uma viagem, nessa viagem há vários lugares e nenhum é totalmente belo e encantador. Dentro das coisas bonitas há coisas feias e dentro das feias há coisas bonitas. Demoramos a aceitar, toda a publicidade gira em torno da perfeição e do belo. Quando me olho no espelho demoro a aceitar-me, não sou bonita, não sou feia, tenho todas essas coisas em mim. Quando uma coisa te parecer perfeita fica atento, é postiça. Vê como esta Primavera chegou tão torta e imperfeita. 

~CC~


terça-feira, 18 de março de 2025

Que sangue terá sido aquele?!

 

Com amigos que não via há mais de vinte anos. Os meus amigos que na adolescência me abriram horizontes para um mundo novo, e que mundo. Eu era só uma miúda suburbana que não conhecia nada da grande cidade. Não os encontrei nesse lugar onde se vai à procura de antiguidades, primeiro porque não o frequento e segundo porque não procuro nada do passado, fica apenas o que tiver que ficar. Achei-os surpreendentemente iguais ao que eram. Enquanto eu estou bastante diferente. 

Às tantas uma amiga disse-o e perguntou-me se tinha sido a doença. E referiu que muita gente o dizia, que são processos transformacionais bastante profundos, apoiados por terapeutas que ajudam na catarse. Eu calei o que me apetecia dizer porque a conversa tinha registo sério. Apetecia-me dizer-lhe: olha, no meu caso deve ter sido do sangue das transfusões, continha uma boa dose de alegria. Mas com eles nunca se pode dizer coisas assim tão tontas. Contudo, ao dizer isso a mim mesma com uma gargalhada, descobri o que mudei. E consegui responder-lhe com palavras aceitáveis: olha, antes estava do lado da tristeza e agora estou do lado da alegria, é tudo mais leve deste lado, ganhas outros olhos.

~CC~

quarta-feira, 12 de março de 2025

Todos os dias

 

Eu tenho uma medida simples para o amor. É só saber o número de vezes que se pensa numa pessoa. Acontece que penso nela todos os dias. Pode ser por causa da chuva intensa, da terra tremer, de uma comida, de um lugar, de algo que passa na televisão, do terrível estado do mundo, de um raio de sol que atravessa uma nuvem cinzenta. 

Todos os dias há um bocadinho dela dentro de mim, era assim quando estava perto, quando está a meio caminho, quando está longe. Não penso nela com saudade de quando ela era criança, adolescente ou qualquer outra coisa, em paz com todas essas fases em que a vi crescer, penso nela como a adulta que hoje é. E quando quero viver, quero viver para a ver mais, para passar um e outro aniversário com ela, mais um Março, mais um 12.

Todos os dias, penso nela todos os dias.

~CC~

segunda-feira, 10 de março de 2025

Às vezes até fecho os olhos

 

O céu fica momentaneamente de chumbo e desaba impiedosamente. Há muito que não via pingos tão grossos, capazes de nos encharcar em poucos minutos. Pensamos que no dia seguinte será diferente mas é igual e assim no outro e no outro. As abertas não chegam para um pequeno passeio. Imagino todos os países em que os Invernos são assim e compreendo a medida do crescimento das sombras interiores até ao abismo. Por outro lado, também aqueles em que só há sol abrasador devem produzir uma secura tão grande que a própria alma mingua. Evitando as minhas sombras, penso que no Verão a terra estará molhada, mais capaz de resistir aos incêndios.

Mas a verdade, a verdade, é que eu agora precisava que viesse sol e os dias começassem a crescer...nasce cá dentro a saudade de passeios, piqueniques e esplanadas. Costuma haver um período entre Março e Maio em que é possível beber um café na esplanada, com o sol ainda suave a bater-nos no rosto. Às vezes até fecho os olhos e bebo o sol em vez do café. 

~CC~

sábado, 8 de março de 2025

Para a Z com ternura

 


Conheci a Z com os seus pequenos vasos de planta já era uma mulher velha. Agora sei que mal sai da sua casa e apenas visita a sua pequena estufa, construída com as suas mãos e as de um dos filhos, artesanal, com muitos troncos e plásticos recolhidos. Encantou-me às primeiras palavras sobre as suas plantas. Disse-me que nunca tinha aprendido a ler nem a escrever. Não gosta de muitas perguntas e só à medida que a fui conhecendo e com ela me cruzando é que me contou mais coisas. Uma vez aceitou vir à academia e pedi-lhe que falasse com os meus estudantes de como era viver neste mundo sem saber ler nem escrever. Contar o básico, Z sabe. E sabe porque vendia todas as semanas os seus vasinhos no mercado e com isso criou os cinco filhos. Enviuvou cedo e todos ficaram a seu cargo. Como é possível criar cinco crianças com uma pequena estufa de plantas? Z conseguiu e com quanta dignidade. Fizeram um pequeno documentário sobre ela e levaram-na a vários encontros, uma vez até à televisão. Mas nada nela mudou com isso, conta-o a rir e diz que não quer ser famosa. Todas as plantinhas que trouxe da sua estufa não sobreviveram, todas vinham com as indicações dela a nível medicinal e de cuidado, mas faltou-lhes Z, o calor e a sabedoria dela. De mulheres como ela se fez este mundo, formigas voadoras que sustentaram casas.

~CC~




quinta-feira, 6 de março de 2025

Como não os adorar?!

 

Adoro blogues. Como não os adorar... se sou tão afortunada?

Isabel, peço tanta desculpa mas só há cerca de uma semana o vi. Raramente vou ao cacifo e tenho andado com tanto, tanto trabalho...o tempo para lhe vir agradecer só agora chegou. 

É tão lindo!!! Muito, muito obrigada. Um abraço cheio de sal de admiração.


~CC~

terça-feira, 4 de março de 2025

Sambando com muita melancolia

 

Posso brincar assim ao Carnaval? Bem sei que esta melancolia não combina, mas é tão linda

" te dei meus olhos para tomares conta", não é pura poesia?

~CC~

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

É no sofá que se envelhece mal

 

O professor de Chi-Kung, que encheu a minha Primavera de 2022 de sorrisos pós pandémicos e verdadeira vontade de voar, partiu uns meses depois para morar algures no interior do país. Nada que uns mergulhos de Verão em água cristalina, infelizmente gelada, não ajudassem a esquecer. Mas o Inverno chegou e com ele a vontade imensa de me confinar ao sofá, tapada com uma mantinha, a adormecer às dez da noite, tão esquecida do corpo como de tudo o resto. 

Com esforço procurei alguma coisa para fazer. Os tapetes de yoga são bonitinhos e a combinação com as velas e a promessa de paz espiritual no fim de cada sessão, lá me arrastaram. Uma belíssima professora para uma péssima e desconcentrada aluna, capaz de quase dormir no final da aula mas incapaz de meditar. Ainda assim gostava do desafio de me equilibrar num pé e numa perna e o esforço para o fazer era tão grande que me abstraia de tudo. Durou uns meses até as dores nas costas evidenciarem que ainda não tinha encontrado algo para mim. Parei quase um ano, salvo umas quantas caminhadas, sem dúvida um bálsamo, mas mais entretida com flores e borboletas do que com qualquer esforço físico. Rendida ao meu sofá, não obstante ainda chorar pelo antigo, esse verdadeiramente bom. Envelhecer no sofá não é mau, o problema é que se envelhece mal, com dores nas costas e demais partes do corpo e uma sensação que não temos força para subir uma escada.

Lá fui para a nova meca de todas as pessoas de meia idade. Na primeira factura veio adicionado um chocolate e em todas as aulas ela me chama de mocinha, o que me faz lembrar a maravilhosa canção do Chico. No Carnaval não há aulas obviamente, pelo que rapidamente lhe perguntei se ia sambar aí algures num desfile. Mas para abanar os meus estereótipos ela disse que ia sambar do sofá para a cama e vice versa. Ao que respondi: olhe que no sofá é que se envelhece mal.

~CC~


domingo, 23 de fevereiro de 2025

Manhãs de Domingo

 

Ontem vi um arco-íris inteirinho da minha janela. As cores eram distintas e claras. Partilhei-o com algumas pessoas, tamanha era a sua beleza. Logo me perguntaram se ia buscar o pote de ouro que podia estar num dos extremos.

Não, não vou. Não é que não sonhe comprar aquela maravilhosa casa com os tectos trabalhados, os azulejos antigos e um quintal com uma fonte e um tanque. Mas os meus desejos, os meus sonhos são agora um lugar em que a espera se faz sem tensão nem ansiedade. Se nada fizer eles ficarão lá apenas como um cenário que alimentou a minha alma. Não corro, já só caminho. E nesse caminho às vezes não tenho rumo certo, posso mudar de direcção. A única coisa que quero mesmo é só mais vida sem dor nem doença, mais dias para acordar como hoje com uma manhã de sol e inspirá-la como uma flecha que abre o meu coração. Quero manhãs de domingo em que o pequeno almoço é saboroso, lento e harmonioso. 

~CC~

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Quando a terra treme...

 

É das coisas boas desta profissão, há sempre um ou uma colega da qual gostamos e encontramos casual ou propositadamente no nosso lugar comum.

E nós não nos podemos encontrar que a conversa flui sem barreiras, entretidas como duas miúdas. Olhámos assim uma para a outra boquiabertas quando nos disseram, vinte minutos depois, que tinha havido um sismo. Passou ali entre nós ou ficou parado à porta da nossa conversa, nada sentimos.

Mais tarde alguém disse: os sismos sentem-se muito mais quando estamos sozinhos. Sozinho é uma palavra de mil nuances, pode ou não vir vestida de solidão, de mal e de bem, de preto ou de azul. De qualquer modo prefiro que os sismos passem por mim com baixa intensidade e de preferência que esteja a conversar com alguém que goste.

(medo? sim, tenho imenso medo)

~CC~

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Biopic do único Nobel da literatura que canta

 

O filme é todo tomado pela voz do rapaz, diria que melhor que o original, que ele me perdoe.


~CC~

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Haja paredes para escrever

 ~CC~


Nota: algures numa aldeia do Alto Alentejo, quase encostada à fronteira com Espanha

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Parados no frenesim da Avenida

 

Ditava a roupa, a mochila com o colchão enrolado e a barba de muitos dias que devia morar na rua. Estava parado a ler um cartaz de um congresso sobre Fernando Pessoa que ou já ocorreu ou muito em breve ocorrerá, não registei. Registei-o a ele e à sua atenção plena. A Avenida da República é um frenesim de movimento, uma onda que se movimenta rapidamente em dois sentidos. 

Mais ninguém parou, só ele bem junto ao cartaz e eu, a uma distância de um metro dele.

~CC~

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Pratos com essência

 


Sou o exemplo mais acabado de má vizinhança. Não frequento os restaurantes aqui ao lado de casa e não sei explicar a razão, a alguns deles chegam pessoas de todos os lados atraídas pela sua fama de boa comida. 

Mas hoje foi por pouco. Anunciava a ementa uma cachupa. E eu de repente já estava a viajar, se há algum sítio do qual tenho memória de cheiro e sabor é de Cabo Verde, não só a(s) ilha(s), como aquela que em Lisboa se frequentava, bocados do país pela cidade. 

Imaginei-me ali sentada diante de uma cachupa, saboreando longamente já que como bastante devagar. Mas não foi ainda o dia, o vizinho que me desculpe, mas a reunião das 14h30m não se antevia compatível com tal repasto. Há coisas que só se comem com tempo e com companhia, uma cachupa a solo não combina com a essência da morabeza. 

~CC~



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Para abutres e outros seres inumanos

 

Atendendo a que já morreram 43 mil palestinianos, a Riviera Palestina, a construir como futuro destino turístico será um lugar de banhos com cheiro a morte, bom para abutres e outros seres inumanos. Mesmo assim, deve haver quem compre o bilhete de avião.

Nem os ficcionistas mais loucos criariam este guião.

~CC~

Menos uma catedral

 

Eram só umas jovens de vinte anos num dia de sol, sentadas com os seus computadores frente a frente, aparentemente tão absortas quanto eu dentro do écran. E uma delas mostrou à outra o trabalho de Ciência Política, pedindo-lhe opinião. E a outra leu-o, talvez em dez minutos, disse que estava bom. Eu esperei que a conversa pudesse girar em torno do tema, não é todos os dias que se encontra alguém de vinte anos, na mesa ao lado, que estuda tal tema. Mas deslizaram durante mais de uma hora por objectos de marca, perfumes, prémios Grammy e cidades para as quais queriam viajar ou já tinham viajado. Os computadores continuam abertos, como um adorno, tal como o dito trabalho, apenas qualquer coisa para entregar a um professor qualquer num dia qualquer. 

Vi-as depois seguir caminho, tão leves, tão flutuantes, tão bonitas, só me esqueci foi de reparar nas marcas que levavam nos pés ou nos braços, mas provavelmente não saberia reconhecê-las como não sei reconhecer metade dos rostos ditos famosos. O café do CAM já não é o mesmo que intensamente habitei nos mesmos vinte anos delas, nesse tempo também não nos cobravam um chá por três euros e vinte cêntimos e os empregados não se dirigiam a nós em Inglês como se fossemos estrangeiros no nosso próprio país. Com estes preços, com este ambiente, nem a pala do edifício me fascinou. Até as catedrais de uma vida empalidecem. 

~CC~





domingo, 2 de fevereiro de 2025

É livre o pensamento

 


Enquanto estou aprisionada em tarefas múltiplas que me sugam todo o tempo disponível é quando o meu pensamento se liberta de mim e viaja a sítios inimagináveis onde provavelmente nunca irei. Hoje enquanto estava em casa presa ao computador fui a um festival de camélias em Sintra. Eram belas, de todas as cores, com a minha preferência para o branco que se destaca nas folhas verde escuro, exalavam um suave perfume que parece que me ficou agarrado à roupa. 

Não se riam, não dizem que a felicidade é uma busca interior?! 

Não que eu acredite, em certas circunstâncias extremas o pensamento agarra-se às coisas mais básicas: água, comida, agasalho, alívio da dor. Na presença delas, podemos deixá-lo ir a lugares onde seríamos felizes, posso imaginar-me.

~CC~


Nota: para quem possa levar o seu corpo até lá.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Frases que se tornaram detestáveis (I)

 


A senhora tem a Aplicação?


(segue-se normalmente o rol de vantagens e alguma pressão para instalar).


~CC~



terça-feira, 28 de janeiro de 2025

É sublime

 

Ainda estou aqui

Creio que nunca tinha visto uma câmara captar tão bem a felicidade e o amor conjugal, aquele que se situa entre o pequeno almoço e o deitar, se enrola nos risos das crianças, desdobra-se pela praia, vive também com os amigos e se demora na tarde lenta de um Domingo, num jogo a dois. Uma família em tudo o que ela representa dos laços que são necessários para iluminar a vida com um sol doce. 

Muito depois do filme ter acabado viviam dentro de mim as imagens daquelas crianças, tão próximas das crianças que nós também fomos em Luanda, inocentes em tudo, imunes a tudo.

O que interrompe tal felicidade é brutal, intenso e doloroso. Um pai intensamente amado retirado à força de um dia para o outro. Eis o caroço da Ditadura Militar, a capacidade de levar pessoas das suas casas sem ter que indicar qualquer culpa ou crime, interrogando-as, torturando-as, matando-as. Pior, não sendo capaz de assumir essa morte, deixando um corpo por enterrar, a família com um luto por fazer. Uma ausência que mata e corrói, que deixa lágrimas no lugar daqueles risos tão belos. A luta daquela mulher é soberba porque é também a da sua transformação, embora venha aliada a tanta dor.

Um dos filmes que ficará para sempre em mim.

E eu que vi uma vida interrompida, perdendo aquela casa da infância, tantas coisas parecidas naquela largueza, no chão, na inocência, até as nossas lágrimas de crianças e sobretudo dos meus irmãos adolescentes, também nós deixando para trás um pai (que eu muito amava àquela data), eu soube que ao menos a minha dor significou a liberdade de um povo e  isso foi um bálsamo que mais tarde actuou como um penso sobre a ferida. Ali não, nada houve de sentido ou significado, a ferida está aberta pois os responsáveis nem sequer foram julgados. 

Este filme, neste português doce de além mar, é sublime.

~CC~


domingo, 26 de janeiro de 2025

Para onde vai o vento?

 

A tua voz do presente, como ela é diferente. Ainda lhe associo apenas um rosto do passado. Ficam assim incongruentes, numa mistura de tempos. Ganhaste um leve sotaque brasileiro e com ele muita leveza, na minha memória tinhas voz de rádio e um sotaque puro de alfacinha que gosta de bitoques e de pasteis de nata. Há quem vá atrás das amizades que ficaram para trás num mergulho sem hesitação, há quem rejeite preferindo deixar tudo onde ficou, no lugar em que aconteceu. No nosso caso, dos três, seria num certo café do centro de Lisboa, antiga leitaria, em que persistíamos em nos misturar com os velhotes, de tanto o fazermos vários mais novos começaram a entrar e a poisar. Não sei se não afastámos os velhotes, não tinha essa sensibilidade que só chegou muito depois. Eu nada fiz, nem procurei, apenas aconteceu o que parece impossível, ter-me cruzado acidentalmente com essa menina girafa presencialmente na grande capital a que raramente vou e que há muitos anos não via. Continua a ser alta, mas não a sinto tão alta. Tenho a certeza do momento da ruptura daquela amizade e que fui eu que a fiz, em parte por mágoa, em parte porque precisava de ir ver outros lugares.

Certo é que já tinha acontecido antes, num momento que não consigo precisar e que nada fiz. Não estava disponível, enquanto agora segui o vento e o vento trouxe dois, por ora. Não sei se vão ficar ou se é apenas um cruzamento, aquele lugar em que vemos alguém e sabemos que seguirá para a direita e nós para a esquerda. O que me surpreende em mim é lidar bem com isso, com a insegurança e com incerteza. Eu costumo querer e saber a direcção dos ventos.

~CC~


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Dancemos no mundo



Velhos são os trapos, diria este miúdo cheio de lantejolas e aquela miúda de cabelo curto e sem medo das rugas.

Há que cantar para assustar o bicho papão, os que moram cá dentro e os que moram fora. Dancemos no mundo.

~CC~

 


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Estado(s) de choque

 

A Helena afirma que o que mais a chocou foi a redução do mundo ao género binário H/M. Eu simplesmente não consigo escolher, creio que estive em estado de choque do princípio ao fim. Ainda assim, o estado da multidão que em sinal de apoio batia palmas e gritava foi o mais assustador, é no coletivo, massa humana de mente toldada pela emoção e cega por um ideário que reside a força capaz dos maiores e mais terríficos massacres. Ele existe porque eles existem.

~CC~

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Há flores

 

Afinal até valeu a pena um fim de semana quase roubado ao descanso que já mal existe.

Estava eu a falar da água como um bem necessário à vida que deveria ser gratuito (afinal a dita palestra era sobre os Direitos Humanos) e uma miúda (13, 14 anos?) na plateia (composta por gente dos 11 aos 70) levanta o braço. Dei-lhe a palavra. E ela explicou que do seu ponto de vista não devia ser gratuita pois era um bem valioso e era preciso responsabilidade no seu gasto, se fosse gratuita as pessoas provavelmente iam gastar em excesso e isso prejudicaria o planeta. Gostei do ponto de vista dela, não abdicando ainda assim totalmente do meu. Mas é isto que é preciso, diálogo. Depois dela, outros foram participando, ora para responder às perguntas que deixava no ar, ora para manifestar como eu pedia uma opinião que podiam indicar apenas levantando o braço direito, o esquerdo, ou os dois.

E ainda recebi flores, ora eu adoro flores.

~CC~




quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Deixem-me um canto

 

Corro atrás das horas e elas andam sempre para a frente a fugir-me, a escapar-me. Assusta-me não conseguir chegar onde prometi chegar mas faz-me profundamente infeliz tê-lo prometido, os meus compromissos já não deviam ser estes que estão sempre a chegar, a assolar-me, a tirar-me o sono. Tudo tem um ciclo e posso não ter chegado ao topo dos topos, seja lá o que isso for, mas agora é tudo o que eu menos quero. Houve um tempo que achei que de um lugar de poder conseguiria influenciar o mundo ou pelo menos uma organização e isso poderia valer a pena, estive quase a fazê-lo, mas houve sempre em mim alguma descrença. 

Nunca pensei querer tanto que se esqueçam de mim. Não quero falar para plateias, desse lugar não vejo os olhos de ninguém, não consigo abraçar ninguém. E estou condenada, obrigada a fazê-lo, isto já é uma violência e parece estranho não poder dizer não, mas há circunstâncias em que não se pode fazê-lo. Quero estar com pessoas, mas de outra(s) forma(s). 

Deixem-me um canto onde me possa abrigar e submergir na poética das coisas. 

~CC~

sábado, 11 de janeiro de 2025

É sábado à tarde, estou aqui no prédio em que vivias.

 

Cinco subidas, três a parar no teu andar, junto à tua porta. É tão bela esta vista da ria, tão imensa quanto a saudade que tenho de ti e do teu amor por mim, o único que conheci que cresceu em vez de diminuir, bem mais certo é ser a segunda coisa a acontecer, seja em que tipo de relação for.

E, contudo, há um qualquer alinhamento de estrelas no horizonte, qualquer coisa que ainda não sei decifrar, o passado está a devolver-me gente que não imaginava voltar a ver. É um puzzle em que certas peças se encaixam como os bocadinhos bons que sobraram das muitas vidas que vivi, talvez finalmente as consiga conjugar numa harmonia de construir futuro.

É sábado à tarde mãe, estou aqui no prédio em que vivias, se quiseres podemos ir lanchar à baixa, ao sítio do costume.

~CC~

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O Inverno vai acabar

 

Saí do trabalho às 17h45 e o céu não tinha ainda anoitecido, pude ver a réstia de luz a passar entre as três amendoeiras do pátio e encher o peito dos fios rosa que se infiltravam num azul já a empalidecer. Às 18h, na entrada de casa, ainda havia crepúsculo. 

Pensei luminosamente no fim do Inverno e do Semestre. Esses quinze minutos de percurso focados entre a beleza do céu e o pensamento em acontecimentos que trazem alento foram suficientes para apagar o cansaço, as tonturas, algum desânimo que se insinua quando as festas já se foram e os enfeites persistem mas entristeceram. O Inverno vai acabar, vou voltar a gostar de cirandar por aí. 

Quando a chave entrou na fechadura surgiu a frase: mas ainda falta e este ainda é muito duro. Depois sentei-me a escrever isto no silêncio da casa. 

~CC~

domingo, 5 de janeiro de 2025

Tanta é a luz

 

Vi dois filmes num só.

O filme em que as mulheres são em si próprias a luz que procura rasgar a tristeza em que todos os sítios estão mergulhados, não obstante as suas magnificas cores. A sua batalha que se faz sem choros, sem mágoas, aqui e ali deixando a raiva emergir, aqui e ali o inconformismo de uma condição a que são conformadas, ainda hoje os casamentos arranjados, a impossibilidade da escolha, a religião como imposição maior. E os seus sorrisos têm olhos tristes, sobretudo da mulher do meio, nesse seu nobre ofício que é ofuscado pelo abandono emocional a que se sente sujeita. Tão maravilhosa essa mulher que a todos dá um colo silencioso, sem grandes gestos de amor. Trabalhadoras incansáveis, movimentando-como formiguinhas em grandes percursos, parte deles já dentro da noite. E a mais nova, toda ela coragem, toda ela uma estrela riscando o céu com o seu desejo, os seus olhos pretos tão belos. E a mais velha, um rochedo, uma resistência, uma pedra atirada contra todos os muros que asfixiam. Surpreendi-me com este filme pois não tenho um particular fascínio pela Índia, ao contrário de muitos, nunca senti esse apelo de viagem. 

E vi também outro filme, o das mãos nos caracóis do rapaz. Aquele rapaz era muito semelhante ao meu primeiro amor, digo amor, não namorado. As mãos dela nos caracóis dele, um arrepio tão intenso. A boca dele, tão parecida à boca do meu primeiro amor. O amor deles, tão parecido ao nosso amor, sem sítio nem lugar onde alojar os corpos que se queriam luz. Uma memória tão adormecida, assim a acordar numa matiné. Em que lugar morre de vez o nosso passado? Ou será que nunca morre?

~CC~

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Quando foi que envelheci?!

 

A rotunda incorpora um lago em jeito de monumento, talvez o seu todo seja um barco, na verdade não lhe consigo descortinar o sentido, parece-me sofrível como escultura. Contudo, as gaivotas gostam, há pelo menos seis pousadas na beirinha do lago-piscina e interrogo-me sobre a sua natureza. Quando foi que deixaram de preferir o mar? Quando foi que começaram a preferir o lixo urbano aos peixinhos retirados das ondas? E, sobretudo, quando é que saíram da poética do Fernão Capelo Gaivota em que planar no vento era o verbo que nos encantava para se arrastarem quietas nos becos e nas praças?

Diz-me uma amiga que se não usar a I-A nos próximos tempos, ficarei para sempre em desacerto com o mundo e que não o posso fazer, que ainda é cedo.

E eu desacerto-me com o gosto de quem sabe que comecei a descer o plano inclinado. Ainda sonho com voos picados diretos a retirar das ondas um peixinho mais descuidado e com aquele momento do dia em que me deixo ir planando. 

Quando foi que envelheci?!

~CC~


quarta-feira, 1 de janeiro de 2025