Dela sei o que quis contar-me. As histórias mais bonitas, cruéis e estranhas do mundo rural. Uma delas escrevi-a aqui. Às vezes tinha dificuldade em perceber, não só por causa do seu falar muito próprio, uma espécie de dialecto forjado na terra, mas por acrescentar a esse linguajar os seus próprios traços pessoais. Por último, sei que já mal falava, prefiro guardá-la a contar histórias, sobretudo depois do marido falecer, até lá era ele que falava e ela quase nada dizia, muitas vezes até abanava a cabeça em sinal de desaprovação, um modo de lhe sancionar tanto paleio.
Outras coisas adivinhei-as ou foram ditas de modo velado, mas reconheci a dor da pobreza, o infortúnio de quem nunca foi suficientemente valorizado ou amado lá atrás, naqueles passados que nunca de nós se descolam inteiramente. Esses azedumes apuram-se com o final da vida, contudo, para os mais próximos, ela guardava apenas amor. Os filhos, as netas, o bisneto, podiam gerar-lhe preocupação mas nunca lhes negava o maior dos afectos, eram os melhores. Usava sempre a palavra "meu" antes do nome de cada filho, que bonito era isso.
Guardo coisas pequenas dela, sabendo bem o quanto eu não era, ainda assim, figura da mulher que ela pudesse realmente apreciar, mas, contudo, nunca me afastou. Dava-me panos da loiça bordados e chocolates no Natal, sem coragem para me incluir no universo dos pequenos envelopes com dinheiro que dava aos seus. Eu era e não era, é assim que somos de uma família quando não temos papel passado nem residência comum.
Uma vez pediu-me que lhe comprasse uns brincos porque ela usava sempre os mesmos e tinham algum valor. Em suma, queria bijuteria e não sabia comprar. Não era de grandes manifestações afectivas, mas nunca me esqueço como ficava a acenar até o carro desaparecer na estrada. Por último, adoptou um gatinho, mas ao seu modo, sem o deixar em casa e comedida nas festas. Penso onde andará o bichano agora, se alguma das suas vizinhas ficou com ele.
Agradeço-lhe o que me trouxe de um mundo que eu desconhecia, nas antípodas de mim e do meu universo. Despeço-me com todo o carinho que ficou dos anos habitados naquele território. Hei-de fazer arroz de forno.
~CC~