quinta-feira, 16 de maio de 2024

Não chegou Maio

 

O vento trouxe o pólen primaveril que se infiltrou na minha exaustão. 

O corpo obrigado pelo dever a levantar-se diariamente parece que irá ali desfazer-se num canto do caminho. Vi o meu rosto no espelho e não o reconheci de tão gasto e cansado.

Sobrou da alegria apenas o casaco de muitas cores e a echarpe rosa e essa pequena chama lenta que nunca me abandona e é por certo o que me ficou do genes maternos e da infância inocente.

Não foi ainda Maio, aquele que me traz os primeiros passeios de pés nus na orla do mar.

~CC~


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esperança

 


Tenho uma caixinha de esperança.

Não é bem, é quase. Nela deposito todos os brincos que ficaram solitários. Fico à espera que o par apareça algures, que volte para mim. Hoje aconteceu. E era um dos brincos de que mais gostava, quase não queria acreditar que estava outra vez a formar aquele par e que os poderia usar. Um par oferecido, o que em si é também raro. 

Para quem só soube o que era usar brincos aos 42 anos isto tem sabor, fui furar as orelhas com um grupo de adolescentes da família.

~CC~


terça-feira, 7 de maio de 2024

Nada se conserta sozinho

 

Volto às salas de aula dos meninos pequenos no âmbito deste meu ofício que se desmultiplica, o que mais aprecio nele, esta possibilidade de deambular por muitos mundos.

Ainda estou impressionada com o menino de ontem. Costuma ser intempestivo e fazer birras, zangado com a vida. Muito inteligente, astuto, sensível. Vinha de cara amuada logo ao início da manhã e assim esteve, bastante calado ao contrário do que costuma acontecer. A professora chamou-o perto de si e perguntou-lhe o que se passava. E ele chorou pois tinha feito chorar a mãe logo pela manhã, fê-la zangar-se por causa da roupa que queria vestir (um clássico). E pediu para telefonar para casa e pedir desculpa à mãe, caso contrário naquele dia não ia cumprir nenhuma tarefa bem. Só oito anos...e que lição para tantos adultos que não sabem usar a palavra, nem entristecer com a tristeza que nos outros provocam, andam sempre em frente, nunca voltam atrás para reparar nada, acham que tudo se conserta sozinho.

Que se conserve sensível, imune à masculinidade tóxica que parece estar outra vez na moda, é ver como ela grassa entre políticos e figuras públicas.

~CC~


domingo, 5 de maio de 2024

Cuidarei do teu lugar em mim

 

Mais tu

Visto-lhe os casacos que me ficam invariavelmente grandes, pois no fim da vida ela tinha diminuído em altura e em peso, mas não deitava a roupa fora, cuidava dela como ninguém, lavando à mão e separando cada coisa por cores.

É o primeiro dia da Mãe em que não lhe oiço a voz. Era ela quem me prendia a estas convenções, sabendo que delas eu não sou adepta, perdoava-me a falta de fascínio, mas pelo menos o telefonema tinha que existir. Ela gostava muito de rosas e de orquídeas, enquanto eu prefiro as flores do campo e as de jardim, as estrelícias, os girassóis, as flores sem nome ou cujo nome não sei. Sendo duas mulheres tão diferentes, não sei o que nos aproximou tanto nos últimos anos. Talvez tenha sido eu, tardiamente a reconhecer-lhe o esforço de uma vida e o desamparo em que ficou, talvez a sua solidão tenha tocado na minha própria solidão. Dei-lhe a protecção que ela não me deu, perdoando-lhe ausências, omissões e escolhas menos boas. E comecei-lhe a achar-lhe graça, uma coisa fundamental para nos ligarmos a alguém, não é apenas o laço de sangue que o faz.


Mais eu


Cuidarei do teu lugar em mim.

O casaco castanho fica-me tão mal, tu nem deixarias que o usasse, com o teu fino sentido estético. Mas olha, sou eu e sendo assim também me importa que me cubra toda e não tenha que levar o guarda-chuva neste dia em que ela cai amiúde. 

~CC~

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Mais do que...


 

Umas pedras retiradas da terra. Uns paus apanhados pelo campo. A infinita paciência de um artesão. Tenho a certeza de que não lhe chamavam reciclagem, era apenas a lenta sabedoria de aproveitar o que  estava ali à mão. A peça era única e mesmo assim quase sem custo. Tanta coisa deixada para trás, resta saber o que ganhámos, o que aprendemos a fazer, o que construímos. Às vezes penso no que acontecerá quando a tecnologia estourar no centro de qualquer pandemia ou efeito semelhante. O que saberá cada um fazer com as suas mãos?! De salientar que isto não é apenas sobre o outro mas também sobre mim própria, como aliás quase tudo o que escrevemos. Luto para as minhas mãos saberem fazer muito mais coisas do que apenas disparar letras no teclado, luto para dar abraços reais, com cheiro e tudo.

~CC~