segunda-feira, 30 de março de 2015

No silêncio



Pensei que era o mar o bálsamo mas agora hesito.

Creio que é o silêncio o meu bem maior, o modo como se ouve o vento, o seu som a abanar os pinheiros, o chilrear das aves, as rochas imponentes nas suas escarpas a pique.

Os campos manchados de flores, os rios que cavam as rochas para encontrar o mar, as cegonhas com ninhos por todo o lado.

É o mar mas não é só o mar. É ter quase tudo desligado, acordar sem o comboio, o som dos carros, as pessoas que falam na rua. É acordar nessa imensa quietude.

É a beleza profunda que apesar de tanto estrago a natureza ainda guarda. É ter vontade de chorar, emocionar-me pela paisagem, pela sua grandeza.

Eu própria, tantas vezes tão faladora, calo-me mais, apetece-me mais a pele, o falar do corpo.

Silencio-me, a primavera esmaga-me e cura-me.

~CC~


quinta-feira, 26 de março de 2015

Caminhadas pelo sal




Quando o cansaço me agarra assim ao ponto de me impedir de pensar e de sentir, sei que só a proximidade do mar é o antídoto certo, é a dose certa de sal para me fazer reagir.

Por isso acredito no estudo que hoje divulgaram resultados que mostravam a (quase) equivalência entre medicamentos antidepressivos e uma caminhada. Só que o comprimido demora um segundo a tomar e para uma caminhada é preciso tempo, energia, vontade e, para alguns, também companhia. Os gráficos de vendas mostram a clara vantagem da primeira coisa sobre a segunda, ainda que a segunda não tenha normalmente nenhum custo. 

Vou ali salvar-me a caminhar junto ao mar e já volto.

~CC~

sábado, 21 de março de 2015

Poesia Primavera



Algumas pessoas são poetas, tornam-se poetas. Outras nasceram para a ler, para se deleitarem com as palavras dos outros, para leitoras.

Durante algum tempo achei que podia ser a primeira e agora sinto-me cada vez mais a segunda, confortável como leitora, amante, apreciadora do que os outros fazem e produzem.

A distância da primeira à segunda condição parece ser muito grande mas é pequena. Nasce tudo da mesma génese, esse encantamento com as coisas, não pelo concreto que elas são mas por aquilo que nelas encontramos. As nuvens, por exemplo, podem ser quase tudo, dependendo da luz que lhes bate, da forma que tomam, da ligação que tecem umas com as outras. Uma árvore em flor, há lá coisa mais emocionante que essa festa fulgurante da natureza, desde a cor, a luz, o feitio da flor, a forma como ela se encaixa no verde das folhas. Quando é que comecei a gostar de poesia? Muito pequena, na imensidão do meu quintal angolano. No exacto momento em que parei durante muito tempo a olhar o carreiro das formigas a serpentear lentamente, lentamente. 


~CC~

segunda-feira, 16 de março de 2015

O mundo, o quintal, os nossos corações



Morreu um velho bom e com sentido de humor. E com isso e por causa disso o mundo ficou mais vazio, mais pobre. Quem diz o mundo, diz a terra, a aldeia, a vila. Quem diz a aldeia, diz o quintal onde passou mais de metade da vida de volta das couves, das batatas, do milho. E quem diz quintal diz os nossos corações.

~CC~

quinta-feira, 12 de março de 2015

A outra margem



Há dezanove anos atrás fiz o impossível, consegui que a minha filha nascesse naturalmente no mesmo dia em que o parto estava, em princípio, marcado para ser induzido. Foi apenas um pouco mais cedo porque a consulta estava marcada para de manhã e a miúda deu sinais de querer vir conhecer o mundo logo que se pôs a noite. Consigo-me lembrar de cada minuto como se fosse hoje, o que mostra que a minha memória é do mais selectivo que há, uma vez que há determinadas fases da minha vida, às vezes quase um ano inteiro, do qual não tenho recordação alguma.

É trivial dizer que o nascimento de uma criança muda para sempre a vida dos pais mas conheço casos em que não é bem assim. Tudo depende mais do cordão umbilical que se vai construindo e também do modo como nos vamos desligando dele ou ligando de uma outra forma. Para cada fase é preciso uma dose de intuição e sabedoria e o amor vai mudando e mostrando outras formas de ser. Não tenho saudades do bebé que ela foi, ainda que tenha sido calminha e muito bonita. Gosto dela como é agora, ainda que com as pequenas coisas das quais gosto menos, gosto de ver cada etapa, cada conquista, mesmo que com ela venha um receio novo. Tirou agora a carta de condução, gosto do que isso lhe irá trazer de autonomia mas acrescenta um medo novo. Tenho, contudo, a absoluta certeza de que ela enriqueceu e completou a minha vida de uma forma única, não apenas por existir mas por ser quem é. Tento fazer-lhe justiça e não construir sonhos e desejos de futuro por ela, prefiro analisar com ela os múltiplos caminhos, as escolhas possíveis, as decisões que não são fáceis. Por respeito pelo que ela é e não por aquilo que eu sou, escolho uma prenda como um bilhete para um dos festivais mais badalados do Verão (não me apetece fazer-lhes publicidade). E acredito que o amor também é isto, não vermos nos outros a projecção do que somos ou queremos ser, mas alguém singular e distinto de nós, que por o ser nos leva também a ver lugares do mundo onde sozinhos não iríamos.

Parabéns A.

~CC~






quarta-feira, 11 de março de 2015

Sinais


Foi talvez há cerca de um ano, talvez um pouco mais. 

Embora não seja dada a grandes esforços físicos, sempre gostei de caminhar, sobretudo com um rio à minha beira, ou mar. Caminhava assim com uma amiga num dia de início de Primavera, caminhávamos como lagartos ao sol, mais a gozar a paisagem, do que a sofrer pela boa forma. Depois uma paragem para um café e uma água. Foi nessa esplanada que encontrámos o marido de uma amiga que nos brindou com o seguinte elogio: então, assim é que queimam as gordurinhas? Ignorando a questão, perguntámos como estava e íamos prosseguir com a conversa de circunstância, quando ele diz: também a minha mulher precisava... está a ficar gordinha. Nem respondemos mas a mim aquilo caiu-me particularmente mal, mais ainda por ser connosco, amigas dela.

Talvez por isso muita gente se surpreendeu pelo fim dos 28 anos de casamento e por iniciativa dela e não dele. Ao início também ia indo nessa onda de espanto mas depois lembrei-me deste comentário negativo à própria mulher, feito não apenas em público mas junto das amigas dela. Um aplauso é o que a minha amiga merece...e se calhar até já foi tarde.

~CC~


domingo, 8 de março de 2015

É bom, tem que ser melhor



É bom ser mulher. Mas tem que ser ainda melhor, há muito a fazer. Nenhuma luta pela dignidade dos direitos humanos está terminada, esta muito menos.

Para começar zero de rosas, zero de jantares de mulheres, zero de festas que imitam os arquétipos masculinos. Rosto, erguer todos os dias o rosto, cerrar todos os dias os punhos, às vezes chorar baixinho, outras gritar bem alto.

~CC~

quinta-feira, 5 de março de 2015

És tu


És tu. És aquele que procura as árvores pela quais me apaixonei num livro. Curioso, seguindo roteiros singulares, perseguindo uma ideia, um conceito, uma coisa, até ela parar nas tuas mãos ou debaixo do teu olhar. 


És tu, aquele que entendeu os rios como caminhos, vias largas que arrastam peixes e aves até ao encontro maior. És tu, capaz de procurar as nascentes mais pequenas, aquela gota onde tudo se inicia.


És tu que percorres as falésias para fotografar as gaivotas que um dia foram o teu lugar de escrita, tens dias de caçar imagens, social e solitário, nos trilhos da terra que escolheste e onde mora o mar, livre como só ele.


És tu o meu amor, nasceste hoje e estou feliz por isso ter acontecido.

~CC~





quarta-feira, 4 de março de 2015

Um bocadinho doloroso



As pulseiras tilintavam, os casacos mostravam etiquetas de boutiques que não cabem em centros comerciais, tudo nelas era deveras trabalhado, cuidado, enfim e como diria o Herman, chique a valer Tratavam-se uma à outra por Senhora Doutora e Senhora Engenheira e sorriam muito enquanto apresentavam aos futuros desempregados, ou seja, futuros diplomados do ensino superior, as muitas oportunidades que se lhes ofereciam. Oportunidades tão boas como um estágio profissional por cada grau académico conseguido, descontos na segurança social para as empresas que contratam e, finalmente, para os empreendedores (sim, têm que ser isto) a possibilidade de um empréstimo sem juros. Tudo quase maravilhoso. Um final de dia um bocadinho doloroso.

Imaginei-as a atender os muitos desesperados que lhes devem bater à porta, não sei se no dia a dia se vestem e perfumam tão bem, mas não era apenas isso que estava fora do lugar, era mesmo toda a pose, a incapacidade clara de se desenhar qualquer abraço naqueles braços.

~CC~

domingo, 1 de março de 2015

Rostos da crise



A história desta crise lenta, demorada, persistente, devia ser feita com rostos. Devíamos anotar tudo para a história.  Há os dramas grandes de quem perdeu quase tudo e os dramas mais pequenos mas igualmente dolorosos de quem viu degradar-se o seu nível de vida. Chegam-me essas histórias por várias vias. 

A de L, por exemplo, foi-me contada por ele próprio. Motorista de pesados, trabalhou anos a fazer várias viagens por dia entre Santarém e Lisboa, levando areia, pedra e demais ingredientes para mudar a face da capital, nomeadamente na zona da Expo-98. Ganhou dinheiro justo por tanto esforço, já que às vezes nem de noite descansava. Lembra-se de ter férias, de ir para o Algarve e para Espanha, de almoçar e jantar onde a classe média costumava parar, a pobreza parecia se ter enterrado para sempre. A partir de 2006 as obras começaram a escassear e a empresa a ameaçar fechar, depois de dois anos lentos de agonia em que já só recebiam o ordenado base e não as comissões e extras de antes, fechou realmente. 

Homem, na beira dos 50 anos, L perdeu o emprego. Do tempo no desemprego não guarda grande memória, durou mais ou menos um ano e chamaram-no. Não teve alternativa, aceitou o emprego que lhe deram como motorista de uma autarquia, pouco mais do que o ordenado mínimo. A mulher tinha sido incentivada a não trabalhar, na altura que o dinheiro chegava e sobrava e não era agora, com mais de 50 anos que ia arranjar trabalho. O filho, como jovem em quem tudo se apostou para estudar, não arranjou emprego na sua área e vai procurando agarrar  o que aparece, sem grande êxito. Com a sua idade , já não tem esperança de arranjar outro emprego em que ganhe mais. Mas o dinheiro não chega, nunca mais teve férias porque as gasta a trabalhar na apanha do tomate. 

Sim, não se passa bem fome, mas sofre-se tudo o resto, afirma que o pouco que resta "na lata" é para se houver uma doença porque se se lá for buscar, nunca mais se volta a colocar. É uma espécie de choro sem lágrimas aquele que dele oiço. Um homem grande, robusto, o perfil típico de um camionista, triste como um menino sem colo. 

~CC~