domingo, 21 de dezembro de 2014

É assim..



Fomos buscá-la ao quintal de um amigo à Igrejinha, era uma maravilha, redonda e com cerca de 8 kg. Viajou até Setúbal e depois para Faro. Aí foi cozinhada lentamente e a dois numa tarde de domingo. Carreguei um bocadinho na canela. E aí está, tornada prenda para oferecer. 

Tomem lá um frasquinho e bom Natal.

~CC~


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Para ver o sol nascer



É sempre o mesmo e desde há tantos anos, é sempre o mesmo e cada vez mais intensamente. Nada que possa pedir a ninguém. Algo que dificilmente conseguirei ter, construir. Existe a música para o meu desejo. E agora sei cada vez mais que é isso. Como é uma segunda vida deve ser difícil. Mas eu queria ter simplesmente um lugar de mato verde para semear e para colher.

A casinha caiada de branco tem uma chaminé com a inscrição de 1847. A lareira ficou, é a mesma onde um casal se sentou anos a fio a fazer torradas em chapa quente. As mesmas que faço hoje. Sobrou o forno do pão, ainda o uso às vezes quando sei que vai chegar a família. O céu é grande, cheio de estrelas. Nos caminhos em volta as estevas cresceram até à minha altura e posso perder-me no meio delas. Junto à casa há alguns girassóis, uma mão cheia deles, gosto de ver como se viram em busca do calor, iguais a mim. Hoje é dia de ensopado de borrego na tasca da aldeia e por isso não cozinho, não cozinhamos. Logo bastará uma sopa com os legumes que colhemos com as nossas mãos. Depois disso vamos à escola velha que é agora a nossa escola, é lá que o lugar do cante às Quintas Feiras, os nossos ensaios de teatro são à Terça, às vezes também nos juntamos ao Sábado à tarde. Lamento tanto ter chegado tão tarde, devia ter chegado mais cedo quando esta dor na anca ainda não me incomodava tanto. Deixei de pintar os cabelos no dia em que aqui cheguei, não por me ter tornado velha ou querer sê-lo, mas porque me fundi mais com a terra e o céu. Houve tanta coisa que deixou de me importar. Levanto-me quase sempre muito cedo como antes acontecia, mas antes era porque as horas nunca chegavam e eu sufocava na azáfama, agora é...

Para ver o sol nascer.
~CC~

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Parado assim, em plena via.



O carro estava parado no meio da via, as portas fechadas, ninguém lá dentro. Parou pouco antes do sinal, pelo que era necessário contorná-lo para seguir em frente. A mesma marca de carro, o mesmo modelo que usei tantos anos, só a cor era diferente. Um coração que parou. Uma doença súbita. Ou simplesmente alguém que decidiu fazer um intervalo, foi-se embora porque aquele carro, aquela via, aquela vida já não faziam sentido. Penso em todas estas coisas várias vezes. Vou a conduzir e o meu coração pará, uma artéria rebenta no peito, na cabeça. Penso também em deixar esta vida assim de repente, interrompê-la, como quem sai num intervalo do cinema e já não volta ao filme. Veio a polícia e rodeou o carro de cuidados, avançavam para o analisar como se dentro dele estivessem mil bombas, um terrorista escondido, um corpo morto na bagageira. Um carro roubado talvez, mas que estranha forma de o abandonar assim em plena via.

Não saberei por certo quem era. Espero que o meu coração continue a bater, hoje dói tão estranhamente. 

~CC~

domingo, 14 de dezembro de 2014

Uma mão de vez em quando a tocar na nossa



Não sei se se aprende na escola, acho que não. Também não sei como certos passos nos levam a lugares mais certos do que outros. Sei que desde o primeiro dia que eles disseram: nós aqui somos uma família. Uma família de dentistas, todos fazem lá alguma coisa e até a mãe mais velha passa ali os dias, não a deixam em casa. O dentista pai vai todos os dias almoçar com ela. As filhas gémeas saem aos pulinhos felizes à hora do almoço. As empregadas, as únicas que não são da família, também parecem fazer parte dela. Fico a pensar porque parei ali um dia. Depois recordo melhor, foi em conversa com uma aluna minha que chegou a trabalhar lá, agradeci conversar com as alunas para além dos trabalhos, poder lhes perguntar qualquer coisa de pessoal e elas a mim. A minha filha diz que lá na universidade não sabem o que é isso. Os anfiteatros estão cheios, os professores não sabem os nomes deles, eu já sei os nomes de todos os meus alunos do 1º ano e claro, sei também os nomes dos do 2º e do 3º ano. Esta foi uma das razões porque escolhi o politécnico, essa coisa tão desvalorizada face à universidade.

Fiquei a pensar na palavra família, essa batalha interior sobre o que é ser ou não ser, ter ou não ter. No bom do assunto, no mau do assunto. Família cheira a máfia e a negócio escuro em combinação com negócio. Os Salgados, os Mello, esses. Mas pode também ser aquela coisa desfasada deste capitalismo feroz que tudo invadiu, a mercearia que passava de pais para filhos num bairro em que toda a gente se conhecia. Eu tenho essa tremenda nostalgia de um mundo em paz, não é a dimensão de uma aldeia pequenina, pobre e sem ambições, mas é nostalgia das coisas simples e verdadeiras, da solidez dos afectos. De nem tudo se mover por dinheiro, do profissionalismo não ser asséptico, inodoro, incolor.

Não sei se a minha filha aprende isso nas aulas de ética. Não sei se são assim por serem uma família. Certo é que o pai mais velho me dava a mão de vez em quando: está tudo bem, está bem? E ela dizia-me como se eu fosse uma criança: está tudo a correr bem, está tudo conforme o previsto. No fim deu-me um beijo na testa, ainda eu estava agarrada à cadeira, depois de quatro horas de intervenção. Não sei se tudo correrá bem agora mas o pavor que eu tinha já lá vai (sempre acordada, não é como quando nos colocam a dormir e só acordamos depois). O meu amor na sala de espera, a manhã toda. E de vez em quando alguém passava por lá para lhe dar notícias. Também esse cuidado, saber que ele entraria se fosse preciso, que elas o chamariam. É preciso dizer que da primeira vez que lá fui entrei em pânico e tive que me levantar várias vezes da cadeira, que o coração me saltava do peito, que estava em plena crise de claustrofobia, coisa que conheço muito bem. Como é que passa? Meus senhores, digam lá nos cursos de medicina, ensinem-nos, passa quando nos dão segurança e conforto. Para perceberem a vitória, pensem que eu sou uma pessoa que mal se senta numa cadeira de cabeleireiro e que não se deita numa maca para qualquer trabalho de cuidados femininos, vulgo depilação, sobrancelhas ou qualquer outra coisa do género, a simples ideia de alguém debruçado sobre mim, acrescentada do facto de ter de permanecer imóvel, gera-me pânico. Há que viver com certos buracos negros que nos habitam  e há gente que ajuda muito. 

~CC~




terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Simplesmente o medo



As coisas de todos os dias, o valor dessas coisas. Comer pão, nozes, uma maçã. Beijar, o sabor do beijo. Poder ir a um restaurante. Falar com pessoas, estar em público, sorrir. O medo de uma pequena coisa nos fazer perder tudo isso. A tensão que sobe e pode estoirar. O coração que se pode cansar de repente. O ar, sempre esse ar que me pode faltar. O pânico que pode tão facilmente vencer a racionalidade (sim, já tive essa prova).

Quando se aproxima uma intervenção cirúrgica, mesmo que pequena, aparentemente simples, tudo balança. Algo pode sempre correr mal, aqueles medicamentos que tomamos e que podem interagir de forma sinistra, as contra-indicações que parecem pendurar-se em nós como fantasmas. Os pensamentos estapafúrdios: quero os meus papéis todos queimados; se calhar estou a comer isto pela última vez, como fica desarrumado o meu gabinete. 

Nós e o nosso medo, esse bicho papão. Acresce em mim essa dificuldade de me entregar nas mãos de quem quer que seja, o toque, qualquer ele, a sentir como uma intrusão, os 20cm da bolha protectora tornados de aço ou o meu corpo feito de vidro. É difícil explicar pela racionalidade comum, há coisas que são de facto cicatrizes das quais nem nós conhecemos inteiramente os contornos, como se a nossa compreensão de nós próprios esbarrasse em fronteiras invisíveis. Depois a coragem, dessa só sabe quem sente o medo.

~CC~

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O medo dos outros



A dificuldade que temos em lidar com aqueles que são diferentes de nós, os que levam outra vida, o que querem outras coisas. Dois episódios levaram-me até esta estupefacção.

Há umas semanas atrás um arrumador de carros oferecia uma senha de uma hora a uma senhora que estava a estacionar o carro. Ela nem por nada a queria, avançava directa à maquina para tirar o seu próprio ticket, ele insistia que não queria nada para ele, que era um desperdício. Ela nem olhava para ele, dizia que não com a cabeça, olhos no chão, parecia ter medo. A cena passava-se de dia e num lugar muito frequentado, não num parque de estacionamento recôndito. O derradeiro argumento dele: Mas a senhora quer dar dinheiro ao governo? Acha que merecem? E ela nada, nem uma palavra. Para mim que falo, negoceio e barafusto com os arrumadores, a cena deixou-me atónita, ela parecia assustada com um ser humano que estava a oferecer-lhe uma coisa, podia não ser uma pessoa das mais convencionais mas era uma pessoa.

Há dois dias tive também uma mãe muito abalada no meu gabinete e estamos a falar da mãe de uma aluna maior de idade e a frequentar o ensino superior. Chorava o desinteresse da filha pelo mundo, as manhãs que ficava a dormir, o curso por acabar. Perguntei à filha onde se sentia ela bem, quando é que não se sentia desconfortável, em que circunstâncias se sentia feliz. Ela sorriu onde antes chorava e disse: no Verão, no Algarve, a ajudar na discoteca do meu tio. Não era a resposta desejável e a mãe condenou-a imediatamente mas era aquilo que eu queria ouvir: a verdade. Tentei sem êxito canalizar este interesse da jovem para o campo profissional com o pânico cada vez maior da mãe que abanava a cabeça, aturdida com a professora que lhe calhara que em vez de levar a filha de volta a bom caminho, ainda parecia desencaminhá-la mais. Certo é que a jovem disse que iria fazer o que a mãe quisesse.  E eu pensei para mim que iria demorar mais uns bons anos a encontrar-se.

Alinhadinhos e conformados, será este o nosso maior destino?!

~CC~




sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Alentejo, esse lugar belo



Era para ter escrito Alentejo, o lugar mais belo mas refreei esse julgamento por não ter o direito de o colocar assim à frente de todos os outros lugares belos deste país. Era, no entanto, capaz de o dizer assim para mim, na intimidade. Atravessei-o hoje com sol e vento, essas ondas leves de terra misturadas com as nuvens ora brancas, ora rosas, ora cinzentas, é esse céu enorme que se cola à nossa alma. Não podia ser o cante de outro lugar porque tudo nele é choro, festa, pão e cheiro a ervas. Pode uma não alentejana tornar-se alentejana? Gostava. Meio caminho andando foi a emoção que senti, não obstante estas coisas valerem o que valem. Nada me liga ao lugar, não nasci lá, não tenho lá família, nunca lá morei. E no entanto, como é fácil sentir-me de lá. 

Um abraço a todos e a todas essas mulheres que cantam desse modo tão singular.

~CC~

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Os moços e as moças



Ontem, na aula (as minhas aulas têm esta hipótese de qb de intimidade em algumas unidades curriculares*) os moços desataram a falar das suas fragilidades e do que os fazia sentir mal. Eu estava estupefacta com a diferença entre os meus 18 anos e os deles. Quase todos se afirmavam negativos, pouco confiantes, com pouca auto-estima (mas quem é que os terá ensinado a usar esta palavra...), num painel impressionante de depressão colectiva em idade tão jovem. Que lhes teremos feito? O que é que este país lhe terá dado? Eu aos 18 anos tinha imensa esperança, queria fazer muitas e muitas coisas e apesar de ser reservada e tímida, tinha confiança nas minhas capacidades. 

Só um dos jovens se destacou para dizer: eu, o que eu tenho medo é da minha raiva, medo de levar tudo à frente.

Ora estamos conversados.

~CC~











* também é  a palavra da moda para disciplinas ou cadeiras.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Que voz tem a comunidade?!


"A comunidade reage"...belo título que o povo de Canelas encontrou para o seu protesto. Ainda há quem proteste, não sei se a razão está ou não do lado deles. Mas importa-me que se incomodem, que se rebelem, que questionem a autoridade do Bispo. Com inegável carisma, juventude e um palminho de cara, o padre Roberto tinha a sua paróquia na mão. Este laço fez-se a partir do tempo que parece ter dispensado para estar com as pessoas, da igreja sempre aberta, da exteriorização alegre da fé, da capacidade de mostrar afecto, inflamação no discurso, posições tomadas contra o uso do dinheiro da igreja em estatuária sem grande interesse para a população. De resto toda a explicação do carisma é insuficiente para o explicar. Uma delícia antropológica o padre expulso e a população que por ele chora.

O padre Roberto seria assim um populista como agora é habitual dizer-se. Curiosamente um populista e justiceiro da fé católica. Ou será que esse termo só se usa para denegrir os políticos desalinhados? Bem sabemos que o discurso que se põe do lado do povo pode ser perigoso. Mas o seu poder de assustar os bem alojados no poder tem imensa graça, entusiasma-nos por momentos, mesmo se não resiste a um olhar mais atento. Há na insatisfação popular uma dose de indignação que me agrada. Mas...


O povo que parece ter razão e grita pelo seu padre é o mesmo que manda o padre novo cortar a barba e o cabelo, tão conservador onde antes parecia arrojado. O problema do populismo é que é bom para derrotar mas não é suficiente para construir, é arrojado na emoção mas falta-lhe a razão. O padre que é um anjo não pode ser aquele que acusam de ter uma amante mulher e depois um amante homem, mesmo que seja verdade não pode ser porque os deuses não têm pés de barro nem estão sujeitos às fraquezas humanas. Sacralizar, criar heróis com pinta de anti-heróis; eleger palhaços, prostitutas, travestis, padres populares, sim...é o que nos apetece para quebrar a infinita cadeia dos jovens saídos das juventudes partidárias. Mas temo que o caminho não seja ainda por aí.

~CC~



sábado, 22 de novembro de 2014

Fila H (2)



Rever Bergman no ciclo que lhe foi dedicado foi um mergulho na mudança do mundo que ocorreu no século XX, no comportamento dos homens e das mulheres sobretudo. Mas Bergman era um realizador europeu conhecido e tinha visto alguns dos filmes mais tardios dele. O ciclo que agora é dedicado a Satyajit Ray surpreendeu-me mais, a mim provavelmente a todos os que nasceram na década de 60, já que a maior parte dos filmes dele é desta década, sobretudo os mais conhecidos. Bergman e Ray, vivendo e filmando em zonas tão diferentes do mundo têm pontos de contacto quer do ponto de vista técnico, quer de conteúdo. E diria que sobretudo este é o cinema que vingava antes do cinema americano ter dominado o mundo. Os filmes são longos, a câmara demora-se sobre os rostos, foca os olhos, um pedacinho de boca, um objecto no chão, um pássaro numa gaiola. Não sei se se filmava tudo com mais tempo ou também se vivia com mais tempo, fica-me a dúvida. Certo é que o ritmo é totalmente diferente do cinema americano. O conteúdo de Bergman e Ray é o mesmo, as relações humanas, sobretudo entre homens e mulheres, o medo, a traição, o amor, a solidão. 

Charulata, o filme da fila H de ontem. Meia dúzia de pessoas no cinema, muito menos do que no ciclo do Bergman. Ray é hoje um perfeito desconhecido, para mim também que me julgo minimamente amante de cinema. Os mais entendidos, os especialistas, claro, sabem muito dele. O filme é excelente na forma como mostra o domínio humano sobre a paixão em prol da lealdade, provavelmente do amor. O fósforo que risca e incendeia em contraste com a vela que arde lentamente mas que não se apaga. Dois jovens apaixonados renunciam a uma paixão em prol de um terceiro homem mais velho que ama profundamente (mas também silenciosamente e sem ardor) aquela jovem brilhante que é a sua mulher e que já não se encaixa no papel da mulher rica e ociosa da sociedade indiana mas que ainda borda chinelos e lenços para os seus amados. Demasiado bom, pacato e intelectual, o homem mais velho parece ter nascido para ser traído, tem uns olhos tristes onde se anunciam desde o primeiro momento todas as tragédias de que será alvo. Mas ao mesmo tempo a sua bondade é essa barreira onde param os futuros amantes, incapazes de consumar a traição. Habituados que estamos a encarar todos estes sentimentos de forma simples, quase esquemática, é bom ver alguém que retrata a complexidade real que todos estes sentimentos têm.

Mais uma vez, que bem se esteve na fila H, mesmo que sozinha num cinema vazio.

~CC~






quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Este dia



De quantos chás precisarei hoje se acordei com os pés frios e a alma inquieta? A chuva não me assusta mas a escuridão do dia sim, por várias vezes o écran do GPS fez do dia noite. De quantos chás precisarei hoje? Fui-me perguntando, enquanto os ia bebendo, se conseguiria vencer o desconforto. Apostei que com o de maça e canela, resultaria, mas nem por isso. Durante a tarde a percepção clara de que os meus alunos pouco percebiam do que andávamos a fazer, claramente escolarizados, é difícil fazê-los compreender o que podemos aprender quando vamos aos locais falar com as pessoas. As coisas que se aprendem estão todas algures na Internet em artigos que aparecem magicamente quando colocamos um tema no moodle.

Ao fim da tarde a miúda adensou o frio, o exame para o qual estuda intensamente há dias correu-lhe mal.

Há qualquer coisa partida cá dentro. Preciso de uma cola para o amanhã.

~CC~

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Essa alegria



Grandes cartazes publicitários, cada vez maiores à medida que se aproximava a data de abertura. Finalmente para muitos, Setúbal ia ter um grande centro comercial, talvez fosse a única cidade de média dimensão a escapar heroicamente. Abriu a meio da semana, mas no fim de semana passado a alucinação parece ter sido enorme e as conversas enchiam-se de comentários ao dito. Certo é que no sábado desci à baixa para avaliar o prejuízo. Duas das maiores lojas da baixa, de cadeias de pronto a vestir (não lhes faço publicidade e pronto) ostentavam cartazes a referir a mudança para o centro comercial. Assim se despovoam os centros históricos e se mata o que resta do comércio tradicional. 

Ontem lá fui espreitar essa catedral ao consumo. Confesso a apatia, as mesmas lojas de sempre, nem uma diferente, até já os cafés são iguais aos dos outros centros comerciais. A minha única curiosidade era a loja da FNAC, mas espanto meu, é pequeníssima, sem café nem área cultural, devem estar a experimentar um modelo qualquer outro, porque se parece com tudo menos com uma livraria. Desfeita a única esperança, nada mais há a dizer, nem sabemos em que parte do país estamos, nem em que parte do mundo, é tudo a mesma coisa, um dia o mundo irá reduzir-se a seis ou sete cadeias de roupa, duas ou três de sapatos e decoração e uma única cadeia de gelados que ganhou a corrida. Parece que aqui nem faltaram algumas tricas entre as cadeias de pronto a vestir, com duas ou três a vetarem a entrada de uma terceira por vender muito barato. Chantagem à séria.Claro que atentos às dinâmicas locais, lá enfiaram um golfinho como escultura à entrada e baptizaram as portas com nomes alusivos a zonas da cidade, uma interessante cosmética regional.

Essa alegria do consumo bem espelhada no nome do próprio centro comercial, não me diz rigorosamente nada. Como é que neste país, com tudo o que já se aprendeu, se continuam a construir centros comerciais. Bom, mas já nada espanta, parece que está em construção a cidade do futebol depois dos muitos estádios falidos do Euro2004.

~CC~


domingo, 16 de novembro de 2014

Fila H



Não sei se vocês também têm uma fila preferida num cinema perto de vós, talvez mesmo um lugar nessa fila. No cinema da minha cidade esgota primeiro sempre a fila onde podemos estender as pernas, onde ninguém está à nossa frente, onde o écran parece ser só nosso. Aprendemos uns com os outros que é a melhor fila, aprendemos com quem aqui nasceu, com quem nos levou pela primeira vez, é por estas pequenas coisas que começamos a pertencer a uma cidade.

É na fila H que recebo a festa do cinema francês, desta vez muito curta, sabe a pouco. Mas sabemos que se estendeu a mais cidades, um mal por um bem maior. Num país que nos habituámos a ver como avesso à emigração e onde a Frente Nacional ganha cada vez mais terreno, parece impossível um documentário como La cour de Babel, um ninho onde os miúdos de todo o mundo ganham asas para poder voar num território tão adverso como a França. Trabalho de tricot de uma professora que parece assumir a direcção da turma, costura afectos mesmo se tem linhas de dor. Gostei particularmente do modo como ela chama as famílias, dando-lhes espaço para que se expliquem por si mesmo, em vez de iniciar a conversa pelo sermão, é assertiva e exigente, é doce e amiga. Uma surpresa esta França.

~CC~

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Sim, nós podíamos...



Eles podem, está a acontecer aqui mesmo ao lado. Querem convencer-nos que nós não. Quem? Os partidos políticos convencionais, os sindicatos, ou seja, as organizações instaladas nos esquemas de acesso ao poder. Quem participou nas manifestações dos indignados sabe bem o que foi ter outra vez lágrimas nos olhos por alguma coisa, sabe dos cartazes e das faixas sem encomenda, que nasciam bem longe das fábricas de propaganda, saiam genuínos e cheios de frescura como eram os primeiros cartazes do PSR, muito antes de se juntarem ao bloco de esquerda e constituírem uma espécie de sumos detox das causas fracturantes. Sei que muitos daqueles jovens se foram embora do país, conheço mesmo casos, alguns de família. Mas as manifestações não eram só de jovens, todas as gerações estavam presentes. Faltou o quê? Poder de organização? Fácil sedução das organizações sindicalistas que no fundo queriam era engolir estes movimentos? Dificuldade de articular vozes que se erguiam sem grande ideologia de fundo? Ser anti-capitalista não chega, é preciso mais...mas seria um princípio, uma base.  Derrubar é fácil, construir é difícil. Nós não chegámos a uma coisa e muito menos à outra...mas ainda me custa pensar nisto como um passado, alguma coisa que não volta mais. Precisávamos para já de voltar às ruas.

~CC~

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Uma esperança fugaz


O tempo corre veloz contra mim, digo que é contra por me roubar quase tudo o que é lazer, possibilidade de vir aqui, de escrever, quase de respirar. 

Depois olho melhor e vejo que ele corre assim porque eu o fiz correr, presa da ideia de que consigo aumentar consideravelmente o número de horas de um dia. Podia ser pelo dinheiro porque tanto preciso dele. Mas parte do que faço não tem remuneração alguma ou tem baixa remuneração. Deve haver uma crença qualquer que não consigo expressar com clareza, muito subtilmente vestígios da adolescência de querer mudar o mundo, hoje redimensionado para uma pequenina marca, um vestígio, um papagaio a cair no cimo de uma serra.

Como me senti tão mal no Verão e agora me sinto melhor e sinto-me melhor no auge de tanto stress e trabalho, também receio ter-me viciado nesta louca vida, nesta adrenalina de esforço, neste adormecer de exaustão. Só ter tanto gosto por um jantar com uma amiga, por um cinema tirado a ferros no fim de semana, por um passeio na praia, me faz ter esperança que afinal isto não é vício, mesmo que parece um círculo vicioso entre congressos, formação contínua, organização de seminários, reuniões da associação, aulas e mais aulas. Gosto muito de todas estas coisas mas a minha vida é um excesso de coisas. Ainda há esperança nos meus pensamentos fugazmente poéticos sobre este frio que chegou em Novembro, nos minutos da manhã em que fico a olhar as nuvens reflectidas no espelho do meu quarto ou quando simplesmente penso no sabor de um beijo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Haja saúde...


Num dos hospitais do Espírito Santo Saúde, conversa entre as funcionárias da recepção, bem na frente da cliente (eu mesma):

- Quando é que folgas?
- Amanhã
- Bolas, que sorte...
- Que sorte porquê?
- Também queria...
- E vais ter, todos aqui têm o mesmo numero de folgas...

Entra uma terceira na conversa

-Sim e gozem-nas bem porque quando os chinocas vierem aí, acabam-se as folgas, eles não sabem o que é isso

~CC~

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

E já saudade



A nossa foto num dos móveis antigos do que parece ser a sala da avó. Sim, de certa forma foi isso que aconteceu nestes seis anos, um espaço de conforto, quase intimo, onde levei tantos e tantos amigos, onde fiz reuniões de trabalho,  conversei comigo mesma, fiz almoços com a filha, alguns em que até esteve o pai dela. Foi a festa dos 15 anos, se me recordo, um bolo de chocolate com morangos como não há memória, tão lindo quanto delicioso. Eram uns miúdos ainda...Voltámos lá pelos 18 anos, agora só entre adultos, num pequeno jantar com muito riso à mistura, cúmplices.

Pode um restaurante fazer parte da nossa vida? Restaurante?! Sim, custa-me chamar-lhe assim, não é bem isso, é também um café, um salão de chá e, sobretudo, um porto de abrigo. Comentávamos entre nós a criatividade de cada menu, o arranjo esmerado de cada prato, a surpresa de cada sobremesa, tudo a preços que não são propriamente módicos mas são razoáveis, comportáveis. Houve algumas coisas tristes, partiu uma das irmãs que geria o restaurante, com aquela doença que bem sabemos pode ser veloz.

Fui despedir-me da minha segunda casa cor de rosa. Pensei que seria um bocadinho triste mas não tanto como foi. Um dos empregados mais antigos fez um esforço enorme para segurar as lágrimas enquanto conversava connosco, imaginava eu que tinham sido para mim seis anos importantes, afinal percebi como para eles tinham sido seis anos de entrega total ao espaço, já não falávamos de empregados mas sim de vidas.

Parece que irá abrir outro espaço, mais pequeno, mais rentável como agora se diz e valoriza. Não poderá ser igual jamais, embora deseje que corra bem. Duas casas cor de rosa numa vida tornam-na de facto bem menos cinzenta, ocorre-me assim um obrigada. E já saudade.

~CC~


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Quarto azul e outros quartos mais



A miúda que está grande cortou o cabelo quase pela metade, é verdade que era longo e ficou apenas meio longo mas é uma coisa que qualquer mulher nota, isto fez com que descobrisse que todos os rapazes amigos e adultos homens não tinham sequer reparado que ela tinha cortado o cabelo, ao passo que todas as raparigas sim.

Não quis ser demasiado má, dizendo-lhe que se fosse a vizinha do lado com a qual nem sequer falam, eles teriam reparado. É chato falar dos homens pois todas as generalizações são naturalmente abusivas e teríamos que dizer: tendencialmente os homens não reparam nas suas mulheres, nas suas filhas, nas suas mães, naquelas que partilham o círculo da sua intimidade. 

O filme quarto azul é o retrato mais fiel e acabado de como os homens lidam com as mulheres, respondendo-lhes amiúde com distracção, não reparam no peso das palavras que elas usam e na força que elas têm no coração. As mulheres são capazes de todas as tragédias enquanto os homens assobiam para o lado. O homem que tem um caso não é igual à mulher que tem um caso, o filme retrata isso de forma rigorosa, precisa. Ele arranja só uma amante, uma coisa volátil, que um dia irá desaparecer como chegou, sem dor nem história. Ela quer um homem que seja dela, só dela, aceitando que naquele momento não o é, mas projectando um futuro dos dois. Na anatomia do crime só ela é verdadeiramente culpada e ele é totalmente inocente, no entanto não me causou pena, nem senti simpatia por ele. Todo o homem que não ama e deambula entre mulher e amante sem verdadeiramente querer nenhuma delas não me merece respeito, preferi-a a ela, trágica e louca na sua obsessão amorosa. Pois, cresci mulher.

~CC~




segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Coisas e causas domésticas



As amizades que desaparecem não doem como um amor que acaba. È como comparar uma dor forte no peito a uma dor suave e duradoura numa parte qualquer do corpo, não mata, não nos traz ódio, é só uma tristeza que fica, que parece ir, que volta às vezes. Ontem à noite raspei uma courgete para a salada e lembrei-me de quem me tinha ensinado a fazê-lo. Lembrei-me por causa desse gesto pequeno, tão trivial, tão doméstico, de tantas outras coisas que tinha vivido com essa amiga. De uma amizade boa que permitiu atenuar momentos de dor, meus e dela. Não, o caso dela não é igual ao de outros amigos que o tempo afastou, que vivem longe de mim, mas que ligam às vezes. Há doçura quando ligam, há saudade. O silêncio dela comporta alguma dor que não sei interpretar, alguma zanga que não disse, algum mal estar que não transpareceu inteiro e pleno. Se voltar teremos perdido meses das nossas vidas, coisas que não dissemos, tempos que não vivemos. Se não voltar ficará a sua memória, mais alimentada por coisas boas do que por más. É bom que a possa guardar assim, mas preferia que não tivesse ido. Não gosto de perder amores mas amigos muito menos. Envelhecer é também querer que as coisas permaneçam, que não mudem, é querer o conforto de quem nos conhece.

~CC~

domingo, 19 de outubro de 2014

Fora de casa



Os dias amanheceram chuvosos e cheios de nevoeiro na serra. Quando descíamos até à cidade as nuvens mostravam-se mais distantes e o calor fazia-se sentir. Não chovia mas permanecia no ar uma humidade tropical que nos amolecia. Os congressos são liturgias com partes muito boas (ver os amigos, os conhecidos, aqueles que admiramos profissionalmente...) e outras a cheirar a velho, a carecer de renovação urgente (a tendência a endeusar certas personalidades, a alimentar egos cheios de mais, a fazer aparecer gente que ainda carece de crescer muito para andar por aqui, o marcar presença pela pressão "bibliométrica" a que estamos sujeitos...). Três dias de coisas boas, menos boas e outras curiosas (como ouvir tocar pela primeira vez um gamelão).

Hoje o dia nasceu de sol em plena serra e foi possível notar a cor das folhas das árvores, a variar entre o amarelo, o laranja e o vermelho, uma prendeu-me o olhar pelo seu vermelho absoluto, de parar a respiração. O polje ainda não se encheu de água, apesar dos muitos cogumelos que dizem estão a brotar da terra húmida. Faltou-me a caminhada pela serra, desci demasiadas vezes à cidade. Encontrei, contudo, pérolas. Entre elas uma livraria linda e dinâmica numa cidade a pulsar de vida cultural. 

~CC~

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Como um dia de chuva leve


Um outro na nossa vida, penso no significado disso enquanto registo a ténue tristeza que invade corações que assinalam rupturas recentes. Já vi rupturas dolorosas, quase sempre trazidas por traição, alguém que foi trocado quando a relação não tinha sido dada por finda. Sei da fúria, da zanga. 

Mas as rupturas leves, semi doces, em voz sussurrada, em que todas as razões parecem tão sem razão, esvaziam mais. O inesperado não reside no amor ter acabado mas sim na forma como foi definhando sem deixar marca, um arrastar lento de uma dor que nem se nota. Porque se entristece quando já não brilhava? Porque se chora quando já não se ria? Porque o outro faz ainda falta, é ainda aquele calor que passa numa festa de cabelo, numa mão que se dá, num telefonema de auxílio. Antes ele era qualquer coisa que nem se notava, nem se sentia falta, mas agora que se foi é a sua ausência que alastra por todo o lado. Estas são as rupturas que se choram baixinho. Fico com uma vontade de abraçar estas mulheres, mas não se consola quem não grita, quem não se zanga, quem não protesta. Ainda assim, fico com vontade de as abraçar.

~CC~

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Da luta





Dona Ermelinda está entusiasmada com a possibilidade deste governo se ir embora, é vê-la a cozinhar com este desígnio. 

~CC~

domingo, 12 de outubro de 2014

Eram meninas


Eis que crescem. Lembro-me de como eram inquietas, vivas, brincalhonas, às vezes faziam birras, só gostavam de comer algumas coisas, desarrumavam muito, ajudavam pouco. Já tinham este brilho que hoje me parece em ascensão, como se fossem estrelas a traçar o caminho até encontrarem o seu lugar para poderem brilhar em pleno. As três meninas mais próximas, uma quarta que vem um pouco depois. Agora senta-mo-nos com elas à mesa, já não lhes fazemos a mesa à parte para que nos pudessem deixar em sossego, entre adultos. Elas são já jovens adultas e o país ainda não lhes roubou a esperança, querem estudar, querem trabalhar, querem ser. Ainda riem muito e é tao bom ouvi-las rir. Escolheram caminhos tão diferentes, uma já acabou economia, outra escolheu uma escola profissional de teatro já no secundário e outra acabou se iniciar o seu percurso universitário em medicina dentária, mas ainda a sonhar com medicina. A sensação quando as vejo, tão bonitas, tão inteligentes, é de que não podemos perder estas mulheres, que há uma luta inteira que passa pelo futuro delas, pelo que nós trabalhamos por este futuro delas.

~CC~

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Outro(s) espaço(s)


Terei tempo para mais alguma coisa. Não, nem mais uma. Mas ela fotografa e aprecia como ninguém. E não é mais, é o tempo que uso para fazer nascer sabores, aromas, é cá dentro, o que se passa cá dentro, nada feito de propósito para o blogue, para fotografar, é dentro da vida de todos os dias. A maior parte das vezes sem qualquer receita, é invenção com base no muito que já vi e provei, sem qualquer intenção que não seja mostrar o que se põe na mesa quando nos queremos esmerar mais um pouco, num fim de semana ou num dia de semana com um bocadinho mais de tempo. O que há mais por aí é blogues de chefes e protochefes. Este é da Dona Ermelinda.

http://donaermelindaf.blogspot.pt/

Ermelinda era o nome da minha avó algarvia, uma mulher calada que colocou no mundo mais de oito filhos (na verdade quase todas raparigas), alguns que precocemente faleceram. Gosto de Ermelindas, mulheres do povo e de muito aguentar. Aposto que sabia fazer peixe assado, xarém, e pouco mais. Também não havia muito mais.

E a pares é diferente, faz-me ter saudades do meu primeiro blogue que era colectivo. Depois disso fiquei para aqui a morar sozinha. Ora provem...

~CC~

sábado, 4 de outubro de 2014

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A idade dos primeiros lamentos



Os jantares semi trabalho-quase amizade são assombrados pelas nuvens da meia idade, há quem já tenha tido a doença (bicho mau), há quem a tema, há quem veja em tudo os sintomas de que está perto. Já não se consegue comer tudo e como todas conduzem de volta a casa, bebem pouco, já ninguém fuma. Os preâmbulos que dantes começavam com algum tipo de exame aos filmes vistos, aos colegas com charme, às últimas notícias das política, são agora gastos com longas descrições do cansaço, do mal estar físico centrado ou não numa parte do corpo específica, das muitas tarefas que as organizações por iniciativa própria ou de algum organismo central estão sempre a criar para encher o tempo e torturar de forma miudinha os seus trabalhadores. Há queixas, há lamentos. Costumava detestar isto. Ainda quase não consigo dizer nada, tenho imensa relutância em queixar-me, em dizer coisas sobre mim, em revelar sintomas de dor ou mal estar, prefiro ignorar, fazer de conta que não existem, esquecer. 

No entanto percebo ultimamente que me faz bem perceber que há mulheres a envelhecer como eu, a comprar leques para enfrentar a menopausa, a dormir de janela aberta, a ouvir pela noite o miar dos gatos. Ainda oiço mais do que falo mas esta terapia espontânea de jogar sobre a mesa os sintomas torna-nos bichos humanos a enfrentar o envelhecimento, na velhice não serão apenas os preâmbulos, será grande parte da conversa que teremos e será bom tê-la com alguém. A minha tolerância aumentou imenso em relação à fragilidade alheia e de algum modo à minha. Não que ser forte, ter esse rumo da resistência, essa vontade, tenha deixado de ser a minha meta, foi ela o meu norte toda a vida e se a perder espalho-me ao comprido. Mas ganhei outras ambições, outras metas, outra relação com o mundo. 

~CC~






segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Correr aos catorze anos



Corri apenas um bocadinho mas era como se tivesse voltado aos meus catorze anos, curiosamente a primeira vez que pisei Tróia foi num corta-mato, como estava longe a perspectiva de um dia morar aqui. A posição das mãos, das pernas, o respirar, era eu mas já não era eu, era um antes que voltava. Nesse tempo correr era moda não pelos mesmos motivos que agora, é que havia em todos nós um Carlos Lopes, uma Rosa Mota adormecida, era um país a começar a acreditar em si. Agora correm para colocar as fotos de si a correr nas redes sociais, porque correr é em si mesmo uma rede social. 

Eu corro para me lembrar que tive catorze anos e uma esperança enorme na vida, corro para recuperar a esperança. Ainda pouco, muito pouco.

~CC~

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O bicho mau



Chegou aos 42, após dois anos de intenso cansaço sem saber o que fazer da vida, calores, sufocos. A filha nascida um ano antes com uma ligeira deficiência mental, uma loirinha linda de olhos cor de mel a que deu o nome de flor. Tinha nome de bicho ruim - linfoma. Seguiram-se dois anos de tratamentos e muita indisposição, muita tristeza, o salão de cabeleiro vendido, a vida virada do avesso, incapaz de segurar o secador de cabelo e o calor que dele emanava, sendo aí que residia o pão de cada dia. A pobreza a ameaçar como a doença. Coisas que valeram: o cabelo sempre muito rente depois de começar a crescer, os olhos pintados, manter o sorriso, a doçura. Agora outra vez o bicho ruim a querer casar-se com os cinquenta, a voltar novamente, a começar tudo outra vez. Aquele caroço no espelho, bicho mau que entra na maçã quando ela está bonita, madurinha. Estava eu com calores, estava eu faltar-me o ar, estava eu neste pré pranto que gosta de rondar-me os fins de tarde. Olhei-a, com o seu cabelo curto, quase da minha idade, o seu bicho mau muito pior que o meu, que eu saiba a minha lagartinha é qualquer coisa que eu hei-de domesticar. 

~CC~

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Este país é para velhos ricos



Estranhei que num fim de semana de Setembro a lotação estivesse esgotada em alojamento hoteleiro alentejano. Sabemos como o Alentejo é belo e eu perco-me pela sua luz, mas não faz propriamente o estilo do turismo de massas, sobretudo se não for mesmo à beira mar. Uma festa, imaginei. Casais com filhos desejosos de esquecer que começaram as aulas. Um evento por perto, por certo um congresso. Afinal pude constatar da casinha que a muito custo consegui que eram casais sexagenários ou mais ainda, a gozar o sol e chuva de um Outono tropical. Um pormenor: eram todos estrangeiros...do norte da Europa é claro. Este país é tão bom para velhotes ricos.

~CC~

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Dançar à chuva



A chuva apanhou-me na saída do dia e finalmente levou o calor que senti toda a manhã, toda a tarde. Pingos grossos, fortes. Eis o regresso à terra natal em pleno Setembro, já há quem lhe chame Setembro tropical. Mas há toda uma diferença difícil de explicar...tentando ser simples, eles parecem ter nascido felizes e nós tristes. Os velhos lá cozinham, fumam e dançam e aqui andam adormecidos a xanax, atrirados para cadeirões de centros de dia ou hipnotizados pelos programas de TV que parecem durar tempos infinitos. Nasci lá, vivo cá, já vivi aqui muito mais tempo. Mas ainda sinto, juro-vos que ainda sinto o chamamento, curiosamente não tanto para Angola mas para Moçambique, Brasil, Cabo Verde, S. Tomé. Dançar na chuva é diferente se sabemos que a seguir vem o sol, lava tudo e a seguir rimos e comemos galinha picante. Nada desta chuva que parece anunciar um longo e cinzento Inverno. 

~CC~

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Outra vez a escola



O meu regresso fez-se com dificuldade. Desligo a agulha, vou para muito longe, às vezes lugares tão felizes que não quero voltar, outras lugares menos felizes de que não sei como sair.

Regressei em dose dupla, eu à minha escola, a minha filha na universidade pela primeira vez. O meu regresso fez-se pautado por uma clara luta anti praxe, eu e alguns colegas fizemos um panfleto e um manifesto em que apontamos a degradação de entrar assim numa nova etapa da vida, incentivamos sem medo a recusa, assumimos. Muitos colegas não nos apoiaram mas não importa, quebrámos anos de marasmo, anos em que nenhum professor disse nada, acho que esses anos de conivência muda foram decisivos para a situação ter piorado cada vez mais. Os pais em casa a dizerem que a opção era deles e sem assumir uma posição, os professores mudos. Adultos demissionários geram jovens perdidos.

A minha filha está em casa sem fazer nada, em não querendo ir às praxes, não há mais nada, a escola paralisa porque os a favor da praxe estão na cerimónia  e os contra não põem lá os pés. Ficam, contudo, sem nenhuma informação, no limbo. Na Faculdade dela seria bom ter os sete resistentes que o ano passado, sendo alunos do 2º ano, foram às minhas aulas, tiveram essa coragem. Não a proibi de nada, assumi a minha posição, deixando que assumisse a dela, ia custar-me se ela fosse mas não a coagia a não ir porque estas coisas têm que se fazer em liberdade. Nada disto deve ser proibido, mas deve ser denunciado, apontado, discutido.

Por acaso acho que foi para mim um começo mais feliz, senti que tinha voz e falava.

~CC~




sábado, 13 de setembro de 2014

As noites brancas



Passei a noite com o nevoeiro, sem sono, atónita com este Setembro tão virado do avesso quanto eu. Aguento bem noites sem dormir mas aguento mal noites sem fazer dormir os outros. O meu mal é-me relativamente pacífico, aguento o sofrimento, mas muito mal o sofrimento que causo aos outros. Haverá por aí quem tenha insónias e resista a medicamentos para dormir? Agora o sol já espreita, assim a querer entrar dentro de mim, timidamente. E eu bem quero enrolar-me nele, pode vir sem o vigor do Verão, um céu mesmo pintado com algumas nuvens, mas que chegue doce para que me possa abraçar. 

~CC~

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Abertura do telejornal


Impressionante a abertura do Telejornal, centrada na demissão de Paulo Bento, num dia como hoje, 11 de Setembro, historicamente uma data a ser analisada não só pelo passado mas à luz do que se hoje se vive, Mas isso, que interesse tem?!

~CC~

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Nascer em Setembro



O homem lava as janelas com tanta força, depois senta-se a fumar um cigarro na varanda. É bom ver um homem em trabalhos domésticos de afinco e esforço, seria bom que tivesse mulher em casa e mesmo assim fosse ele fazer brilhar os vidros. Preciso de esperança na humanidade para recomeçar Setembro. E nos homens.

A mulher que leva o homem paraplégico ao café e dá-lhe a beber o café e a água com enorme carinho, nenhuma vergonha, um sorriso embevecido ao olhar para ele. Preciso de acreditar no amor para que seja um bom Setembro.

O homem que preenche os impressos para a emissão do cartão de estudante de ensino superior da minha filha relaciona Setúbal com o choco frito para nos dizer que vimos de boa terra, eu acrescento os tons poéticos, tem serra e mar e rapidamente me lembro de Oviedo para dizer: e bom peixe! Preciso de acreditar que ela e eu, estejamos onde estivermos, vamos continuar a ter este laço forte.

Os colegas riem na primeira reunião de equipa, ninguém se chateia, trazemos sol ainda na pele apesar da chuva que hoje caiu. Este foi um dos Verões mais estranhos da minha vida, um preto e branco difícil de perceber até para mim. Um colega perguntou-me: as férias são mudança, o que mudaste tu? Estranhei pergunta tão profunda em pleno bar, mas respondi: em mim mudou qualquer coisa mas ainda não sei o quê. E é verdade. Preciso de acreditar em mim como pessoa essencialmente feliz para que seja Setembro. 

~CC~

domingo, 7 de setembro de 2014

Quintalão das acácias



Certas partes das cidades estão ocultas. Certas partes da vida ocultas estão. Algumas estão escondidas porque passámos por lá mas não as vimos realmente e precisamos de passar de novo, de olhar, de nos demorar, até de chorar. Outras estão ocultas porque as esconderam de nós, segredos nas cidades, nas famílias, nas vidas. Coisas que se podem desvendar e outras que nunca o serão.

Há um quintalão das acácias em Faro cujas paredes estão pintadas com as sombras das próprias árvores e dos pássaros que por lá passam. Se os lugares guardam as pessoas, então também ficámos registados na memória do lugar, foi o melhor sítio para se estar no festival que ocupou o centro histórico da cidade. Parte do meu tempo foi ocupado a olhar as árvores, tanto tempo contido em altura e magnitude, desenho vasto de ramos e folhas, quando a luz as atravessava, ficava a olhar e a música ficava para segundo plano.

No centro do meu desnorte a tua mão, o teu abraço, os lugares no chão lado a lado, a fingir-nos os miúdos que ainda somos, rir como sabemos rir e entrar na onda, concerto mais pequeno e intimo é outro diálogo com o artista. No centro da minha luta a tua mão, um laço a puxar-me para o melhor de mim.

~CC~


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Auto e heteroterapia



Um dentista não pode curar a sua própria dor de dentes mas compreende-a melhor que ninguém, o mesmo acontece com todos os outros médicos e terapeutas. Essa compreensão que acrescenta uma lucidez maior ao núcleo da dor pode ser ainda mais cruel. Quando a dor não é física mas psicológica e as suas causas se difundiram pelo tempo não tendo no passado mais do que um nó, o psicólogo é em causa própria alguém que sofre duplamente. Poderia entregar essa dor nas mãos de qualquer colega mas é como se soubesse antecipadamente o que o outro lhe vai dizer e por isso diz isso a si mesmo. Não escolhi clínica por não acreditar que uma dor se possa tratar nas quatro paredes de um consultório, hoje acho que tenho disso outra perspectiva, menos ecológica e menos assertiva, menos crítica do divã. 

Tudo é afinal válido na busca que uma pessoa empreende no sentido da sua própria cura, do seu estar bem. Sendo agnóstica já tive vontade de me sentar numa igreja e falar com Deus. Sendo crítica do fechamento psicanalítico já tive vontade de me sentar num divã, sendo contra ansióliticos, antidepressivos e medicamentos para dormir, já os usei em SOS, achando a meditação conversa de enganar meninos e almas fracas, já tive vontade de meditar. E ao mesmo tempo que desejava nunca deixar a felicidade que acho que é o meu desígnio natural, um gosto enorme pela vida, já a achei um fardo imenso do qual não me importava de me livrar, ou desgosto de mim própria, pena de ser quem sou. Estes momentos escuros que se atravessaram no meu caminho algumas vezes, umas com razões precisas e outras com contornos obscuros e muito centrados na infância, ensinaram-me a ser tolerante com os fracos, os deprimidos, os inconstantes, os fóbicos, os loucos. É estranho que encontremos na dor o ensinamento, a compreensão, a plasticidade, mas a empatia constrói-se melhor não só quando entendemos a dor do outro mas quanto a entendemos a partir de dor semelhante. Hoje acho-me mais capaz de abraçar a dor de qualquer outro ser humano.

~CC~







terça-feira, 2 de setembro de 2014

Rosa Albardeira


Mais imagens de uma semana especial, rara como é a rosa albardeira, a crescer em altitude, só para ver sem colher.





Um carvalho tão velho que já era velho no tempo dos mais velhos.




Inventámos paredes novas com as nossas próprias imagens.


Quem já experimentou uma roda de oleiro?



Descobrir onde se inscreve a memória.

 Teares industriais na luta contra a crise que assolou a região e fez fechar nos anos 60 grande parte das fábricas.



E ainda se tece à mão, bem mais devagar, mas com outro amor.


Grutas onde se produzem cogumelos.

Tantas coisas mais...

~CC~

Crédito da reportagem fotográfica de AF. Por necessidade de proteger a imagem das crianças, não colocamos fotos em que aparecem os seus rostos (temos essa autorização apenas para o site da associação).

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A vida numa semana



Desapareci sim. Mas foi para dentro de mim mesma. Ou para um carvalho grande que fica numa mata especial que se inunda de água no Inverno. Ou para o meio de olhos brilhantes, dedos levantados para perguntar coisas, palavras a soltarem-se, mãos a juntarem-se no meio dos caminhos. Eram 19, entre crianças e jovens, dos 8 de um sorriso matreiro aos 14 de uma loura feiticeira. De Segunda a Domingo da última semana marcámos encontro, não um encontro qualquer, mas um a sério, de alma inteira, telemóvel desligado, longe da internet, só nós na sala da igreja desactivada, ali escondidos bem no meio da vila. 


Há cerca de três meses começamos a pensar nisto apenas como uma ideia, integrando o rumo que quisemos traçar quando fundámos a Associação Move Comunidades: valorização das comunidades locais, do que têm de bom, de belo, de único. Levar connosco crianças e jovens a redescobrir um quotidiano que lhes deve parecer descoberto, sem interesse de maior. Mas não apenas isso. O desafio de transformar a descoberta de uns e dos outros, dos lugares, dos encantos, numa coisa que se possa dizer de modo artístico. Nasceu pouco a pouco a nossa rosa albardeira - história colectiva construída a partir de coisas que sabiam e de outras que descobriam, história tornada exercício dramático.

Pergunto a mim mesma porque demorei tanto a chegar aqui se sempre soube que era isto que queria. Pergunto-me porque tenho que continuar a fazer outras coisas se é por aqui que quero ir, não só com crianças e jovens mas também com adultos e idosos. Olho para a vida académica, ainda agora fui espreitar um concurso para investigador de um grande centro de investigação e embasbaquei a olhar para os critérios, já não basta publicar, é preciso que se publique nas revistas internacionais de topo, que se seja citados em determinadas bases de dados bibliométricas, tudo é escrutinado ao pormenor, tudo absolutamente pobre, um verdadeiro capitalismo, uma bolsa em que cada professor de ensino superior pode ser equiparado a um valor em acções.

A magia desta semana volta até mim com intensidade, adormeço e acordo ainda maravilhada com o que conseguimos fazer, com a forma como trabalhámos como equipa de adultos, com a forma como discutimos intensamente tudo e discordámos tantas vezes para nos podermos acertar, criar caminho. Maravilhada como estes miúdos foram capazes de numa semana evoluir tanto, fazer tanto. 

O espanto de alguma coisa ainda me espantar tanto, trazer-me uma tão grande alegria. E esta alegria veio no momento certo, acordar-me de momentos escuros que se atravessaram no meio do Verão. Oxalá o meu coração possa guardar esta energia, fazê-la eclodir mais vezes. Só por isto já valia a pena ter criado esta associação. Mas creio que faremos ainda mais, devagarinho, à medida das nossas possibilidades.

~CC~





quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Dizer não



Dizer não é fácil, excepção se esse não é dito a quem amamos. Dizer não aos filhos que adoramos, dizer não ao namorado, aos amigos, à família. Este tem sido um dos meus maiores problemas, a minha assertividade morre com facilidade em face do amor e isso mortifica-me porque não quero fazer aquilo e faço-o em prol do outro. Faço-o para o (a) ver feliz, empresto um vestido que não queria emprestar, vou a um lugar que não queria ir, tolero um comportamento que me parece intolerável.Vou colocando limites, não cedo se o desejo do outro esbarra em algum medo meu, em algo que me repulsa, que rejeito. Mas admito que é pouco, há muito que devia ter posto a fasquia mais acima, ao nível do que me faz feliz, do que me faz bem. Mas se a ponho aí, sinto-me demasiado egoísta. Tento fazer coisas pelos que amo que não me custem muito, que não me façam sofrer a mim. Mas ainda assim tenho que me deixar de sentir triste por cada vez que digo não, o não é um direito meu, devia tê-lo aprendido logo em miúda e não teria sofrido de forma tão tonta. E devo dizer-vos: é assim que muita coisa má começa, nesse não querer desagradar a quem amamos por medo de o(a) perder. Devemos ter a coragem de perder, de sermos nós inteiros e desassombrados, dizendo as coisas que custam dizer e não são muitas vezes politicamente correctas. Tantos casais que eu vi acabar lentamente por causa dos almoços de domingo em casa dos pais (que um não queria), dos filhos e dos animais (que um não queria), das férias de família (que um não queria). Não é uma palavra redonda, sonora, linda.

~CC~

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Eu ao quadrado e ao cubo, da pestana à unha do pé


Os psicólogos, sempre os primeiros a ser chamados em caso de anomalia técnica, emitem alertas a um ritmo que não acompanha a velocidade das selfies que são tiradas por minuto, não vou mais longe. Chamam-lhe a sociedade narcisíca, cada um se ama a si mesmo e quer que todos o amem. É difícil para quem não se ama assim tanto nem tão pouco quer que os outros o amem. Uma terrível desadaptação é o que ando a experimentar. A aversão está a ser tão grande que desejo conhecer pessoas sem FB, pessoas sem mail e mesmo pessoas sem Internet. Depois tento controlar-me.

Fotografado cada bocado de perna, olho, nádega, há que colocá-lo a circular para que alguém do outro lado do mundo possa pasmar. Se não se for suficientemente lindo, avança a operação plástica mais veloz do mndo: o photoshop. Para alguém que raramente tem vontade de tirar uma fotografia a si própria e padece de uma crónica falta de paciência para a imagem, é razoavelmente absurdo, passamos a sentir-nos estranhos no mundo, fora dele. Faço alguns esforços de normalidade, ontem a minha filha resolveu ganhar um pano para estendermos na relva, à conta de uma selfie das duas. A coisa era razoavelmente ridícula, uma das nossas operadoras de TV/telefone e NET oferecia os panos a troco de tirarmos uma selfie (fazíamos de conta que a tirávamos) porque quem a tirava eram eles com o nosso (dela) TM e este tinha obrigatoriamente que ter acesso à NET para que a colocássemos no site deles. Fiquei é claro apavorada com a ideia de a troco de um pano fazer publicidade a uma marca, aparecendo a sorrir no site deles. A minha filha tranquila só se ria, assegurando-me que ela tratava do assunto. Lá tiramos a foto ridícula que lhe valeu uma hora de sesta na relva porque o vestido branco que levava não era compatível com o espraiamento ao natural. Perguntei-lhe pela foto, riu-se, é claro que não a colocou em lugar nenhum, eles contam com a ideia de que todos querem aparecer e não verificam se a colocamos mesmo. E riu-se ainda mais de mim: até podiam obrigar-me mas no minuto a seguir ia lá e apagava. Elas já sabem viver nestas coisas e se são espertas, brincam ao gato e ao rato com a exibição pública. Se se deslumbram, lá ficam agarradinhas. Eu ando a aprender mas não quero aprender muito, só o mínimo necessário para não cortar completamente com este estranho mundo.

~CC~



sábado, 16 de agosto de 2014

As mortes deste Verão


Como se pode morrer se é Verão? Mortes em contraste absoluto com o desejo de festa, os muitos festivais, os miúdos a encher de água os baldes, a grande quantidade de bolas de berlim vendidas, as ruas cheias de gente à noite. Por todo o lado há festa, por todo o lado há pessoas a querer esquecer o ano que passou e o ano que vem, tudo num único mês. A alegria tem duas faces e ora me parece bela, ora me parece absurda.

As esplanadas estão espantosamente cheias, um sumo de laranja natural pode custar 4,5 euros e um café 1,5 euros. Esperei hora e meia para comer uns petiscos vegetarianos numa mercearia gourmet da moda, ao meu lado cinco velhotes tinham posto as cadeiras ao luar e conversavam como se a sua rua não tivesse sido tomada por gente estranha e os carros não persistissem em passar naquela estreiteza.

As sardinhas acabam às 11 da manhã ou vendem-se as últimas por volta do meio dia, estão caras, mas são o peixe do momento, de repente todos sabem o que é a dieta mediterrânica e todos querem um sumo detox, há também night runners em todas as cidades e sabemos que em Inglês é que este desporto tem mais charme, se fosse em português seriam apenas uns tontos a correr à noite. A minha cidade persistindo na historicidade do seu passado operário, chama-lhe ainda corridas nocturnas e por isso aparecem homens barrigudos e cinquentonas com muita celulite e sem roupa de marca.

E no entanto morreu Robin Williams que a muitos ensinou a rir e a mim deixou-me sempre a chorar, mesmo sabendo que o clube dos poetas mortos era mesmo para chorar. Morreu Dóris Graça que eu mal conhecia mas cujo nome me soa familiar como se tivéssemos partilhado em tempos as mesmas tertúlias. Morreram tantas pessoas cujo nome não sei na faixa de Gaza. Até eu quase morri este Verão não obstante estar aqui viva a escrever. Pode morrer-se estranhamente numa tarde quente, basta que os fantasmas nos assaltem para nos sugar o sangue e nos tirar o ar, de repente acaba-se a alegria, começa o Outono com chuva intensa e simplesmente nos tornamos a sombra do que somos. Depois há que voltar a viver, soprar as teias de aranha, respirar devagar como faz quem sobrevive. Robin Williams devia ter feito como eu, morria só um bocadinho, soluçava sem nenhuma racionalidade, gritava como um peixe fora de água...e depois abraçava alguém que o amasse para lhe pedir a energia para poder continuar. Morrer de vez é que não vale, não pode ser, até porque é Verão. É Verão e há frutas que nunca há, podemos comer melão, melancia, estão a chegar os figos e as uvas. E este Verão aprendemos a fazer gaspacho agridoce alentejano, uma delícia gelada que não combina com a tristeza. 

~CC~


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Esperar o sol, o piar dos pássaros, uma qualquer lagoa



É um verão de manhãs de bruma, faço um exercício aritmético em torno da hora em que o sol espreitará. Espero outras coisas ainda. Um banho com temperatura quente de mar, um acordar com piar de pássaros ou pelo menos sem ruído de carros. Uma refeição demorada, em que não apetece levantar da mesa. Um livro que me apaixone. Acordar vários dias perto de ti, sentir o teu braço matinal e preguiçoso a passar por cima de mim. Sentir as raparigas num qualquer quarto da casa, na galhofa em torno de coisas parvas. Passar por uma feira pimba em qualquer terra, só para ver o artesanato regional, comer um petisco e rir da fatiota da moça ou do moço que pisará o palco. Durante uns dias pensar que não há nada para fazer, convencer-me que o mais que há é pensar onde haverá uma lagoa, uma piscina, um bocado de mar, um bocado de verde, uma aldeia bonita, umas compras numa mercearia ou num supermercado cujo nome não me seja conhecido. Manhãs de bruma, há muito que não havia tanto nevoeiro em Agosto. É preciso paciência para esperar o sol, acreditar que vem.

A escrita era intermitente cada vez mais por excesso de trabalho, pouca vontade de estar ao computador porque é o meu instrumento privilegiado de trabalho, pouca apetência por comunicação não presencial, agora são as intermitências estivais que se aproximam
.

Até mais ver* como  se diz no país irmão, no qual em breve (me) nascerá um sobrinho-neto, não o primeiro a nascer em terras brasileiras, mas o primeiro carioca e filho de emigrante recente, de um sobrinho muito querido.


* não por força de qualquer acordo ortográfico mas porque apetece de vez em quando aquele português açucarado.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Coisas pequenas de gente grande



Acabei de cozinhar uns cogumelos maravilhosos que trouxe do fundo de uma gruta, é aí que um jovem ensaia produzir várias espécies e nos faz emergir no mundo da micologia, explicando como é que de vários substratos (que também experimenta) nascem cogumelos de tantas cores e feitios. Antes tínhamos ido à fábrica das mantas, ao que sobra de uma indústria que já foi poderosa, o matraquear dos teares mecânicos só precisam agora de duas ou três pessoas, continuam a ser pequenas fábricas, ainda assim a recuperar desenhos antigos, a ensaiar cores novas. Uma manta custa muito barato, três vezes mais nas lojas. Ouvimos as histórias que sabemos mas esquecemos tantas vezes: as grandes superfícies que querem vir buscar o produto a custo quase zero, a dificuldade em suportar. Falhámos a senhora que faz os sabonetes artesanais, lá iremos depois. Parece que estou a falar de férias, de visitas de férias, mas não estou. 

Andamos a ver como mostrar às crianças a sua própria terra, ensiná-los a ver o que não está à vista, transformar-lhes o olhar, se possível criar a partir do que se vê, ouve, cheira. Não somos profissionais como os bailarinos que estão em Rabo de Peixe e colocaram as crianças a fazer um bailado intitulado cardume. A nós move-nos o coração de amadores, alguma generosidade, o folgo que nos resta antes da velhice chegar. Passaremos assim uma parte das férias a trabalhar sem com isso ganhar monetariamente nada. Mas eu só quero ganhar  o resto, a semente que fica nas crianças quanto participam nestas coisas, se em mim frutificou para sempre a semente lançada nas oficinas de Drama era eu adolescente, quem sabe em alguns deles também. Podemos sempre perder, perceber que não vale a pena, mas por ora move-nos aquela Igreja velha de sala ampla onde agora aos fins da tarde fazem ginástica os mais idosos. Já não há santos no altar, teremos nós que os inventar, entre os anjos e os nossos corpos, talvez nasça alguma coisa.

~CC~

domingo, 27 de julho de 2014

Palavras para Gaza


É um povo
a viver numa faixa
enfaixado
cercado
numa caixa
tapada
um buraco apenas
onde entra agora o fumo negro

É um povo
entalado
apertado
controlado
que vive quase sem respirar
cercado
facilmente assim se aprende a odiar

na desproporção tão grande da força
os vemos
com o desespero à porta
já não há mais mel
já quase não há oliveiras
só sangue e mais sangue

um dia todos serão radicais
e bem dentro da palavra estará anti ocidente
assim cercados
facilmente se aprende a odiar
quando se vive numa faixa
controlados.

~CC~





quarta-feira, 23 de julho de 2014

A educação dos amantes



Pensamos que nascemos ensinados, que basta seguir a intuição, que se os bichos encontram o caminho, nós também encontraremos. Tudo mentira. São inúmeros os casos de casais apaixonados que não encontraram o prazer nos seus corpos. Casos em que sexo e amor se desencontram. Mulheres que não sabem, homens que não sabem. É por isso que a Vida de Adèle é um filme tão bom. É instrutivo acerca dos corpos das mulheres e do seu prazer. É verdade que são duas mulheres a explorar-se uma à outra, eu diria que isso é bastante mais fácil, elas sabem o que lhes dá prazer, onde e como. São também mulheres e amantes muito belas e por isso penso que o realizador as escolheu como um pintor escolhe os seus modelos mas ao mesmo tempo cobriu-as de pequenas imperfeições capazes de as tornar humanas, próximas. A Emma não tem os dentes perfeitos, a Adéle não usa maquilhagem e tem um cabelo que solto a deixa com ar de bicho. Mas são tão bonitas. 

Estou em crer que o erotismo do filme reside no amor e não no sexo e na forma quase perfeita como o amor consegue combinar com o prazer. É nessa combinação que reside a instrução do filme, o seu magnífico valor educativo. É longo, tem muitas cenas de sexo, ouvi queixas à saída relativamente ao assunto, considerando-o exagerado. Discordo, se há cenas que poderiam ser cortadas, creio que não seriam essas. É bem verdade que nunca vi uma câmara mostrar tanta pele, não é apenas nudez, são os contornos, a luz, cada bocadinho que uma encontra na outra. Trata-se de amor entre mulheres e, contudo, acho que é um filme para os homens conhecerem as mulheres. Haverá algum assim para que as mulheres conheçam os homens? Não, nunca vi nada semelhante em filmes com sexo entre homossexuais homens, nem sequer Fassbinder, nem Almodóvar. 


~CC~

Nota ou quase outro post. È outro tipo de instrução que é filmada nas cenas em que Adèle aparece no Jardim de Infância como educadora mas é o mesmo amor por trás da câmara que filma aqueles miúdos, nunca os vi tão naturais, tão eles próprios. E as cenas em que Adéle, triste, tem que lidar com a alegria das crianças que exigem dela e a querem,  tocaram-me muito. Também eu já dei aulas assim triste, a pensar em cada minuto que eles iam reparar e ver que na realidade eu estava a chorar. E como ela nunca deixei de ir, fui sempre nos dias mais tristes, engolindo para dentro a dor até a poder soltar em lágrimas, como quem solta um rio.



sexta-feira, 18 de julho de 2014

Recuperação de guarda chuvas em pleno Verão



Sempre fui uma pessoa muito distraída, com grande disponibilidade para perder objectos, vestir roupa ao contrário, esquecer-me de tirar etiquetas, varrer nomes das coisas ou trocá-los. Não sei como é que os genes guardam estas memórias e as passam às gerações seguintes pois a minha filha é tal e qual, talvez para pior, porque com a idade eu fui melhorando e há muito que não perco chaves, cartões multibanco e carteiras. Contudo, dois objectos são ainda recorrentes: óculos de sol e guarda chuvas. Adoptei assim a regra de os comprar baratos, mesmo assim ganho-lhes afeição e fico triste por não saber para onde foram, por isso fiquei a pensar demoradamente no título que o Afonso Cruz deu ao seu último livro "Para onde vão os guarda chuvas" e em comprá-lo para obter a resposta sobre os meus. 

Este ano, particularmente chuvoso, talvez tenha comprado um seis ou sete guarda-chuvas, prefiro pensar em sete que é um número mais bonito. Cheguei a este inicio de Verão só com um, não comprado porque tem uma marca qualquer de cosméticos e não sei como chegou até mim, ao contrário dos comprados, não se perdeu.

Acontece que na cidade temos os nossos cafés, os nossos restaurantes, lugares a que vamos muitas vezes, são a extensão da casa pequenina em que moramos. Reparei assim que os meus chapéus de chuva repousavam perdidos nos recipientes que à entrada costumam guardá-los para nos impedir de pingar o chão todo. Pensei: aquele vermelho das flores pretas é igual ao meu que já não tenho; aquele creme com riscas é igualizinho ao meu e só o usei umas duas vezes, está novo, só pode ser o meu. Já recuperei dois, mas continuarei a pesquisa, ainda que a mesma se tivesse iniciado de modo casual.

Pensei que agora que não preciso deles é que iniciam o seu regresso às minhas mãos, mas espreitando o dia de hoje...parece que irei usar guarda chuva em pleno Verão, sejam por isso bem vindos.

~CC~


terça-feira, 15 de julho de 2014

O espelho infinito



Fui sempre a mana gordinha das irmãs magras. Mas tive uma sorte tremenda, quando era adolescente ainda se apreciava meninas com ancas e rabo redondo. Cresci assim mais ou menos apreciada, nada de espantar, nada de envergonhar. Não me faltaram namorados, embora me tenha agarrado a um dos 16 aos 24 anos.

As minhas preocupações tomaram outros rumos para além do meu corpo, embora nunca lhe tivesse sido alheia. Mente quem diz que não gostaria de ser mais bonita, mais magra, mais isto ou mais aquilo. Mente quem diz que não se incomoda por se saber menos em forma, menos bonita, mais velha, mais desgastada, mais triste. Poderia dizer tudo isto no masculino, embora bem saiba que às mulheres pesa mais. Mas uma coisa é não nos enganarmos com o espelho, outra é rastejarmos em prol de quem nunca seremos, prisioneiras de dietas, reféns de gabinetes de estética, clientes de gurus disto e daquilo que nos prometem outros espelhos. 

Amei-me sempre mais ou menos, com aquele mais de às vezes me sentir bonita, outras feia, umas vezes gorda e outras mais magra, amei-me na aceitação da minha imperfeição, não naquele comodismo tonto de dizer "sou mesmo assim" mas naquele de fazer o possível por me manter aceitável para mim própria, marcando os meus limites, as minhas fronteiras, essas que não serão iguais às de outra pessoa qualquer. Se não sinto inveja das mais lindas, das mais novas, pena de não poder usar calções curtinhos nem mini saias, muito menos calças descaídas a mostrar a barriga que sempre tive, desde miúda? Claro que sim. E depois? A vida comporta insatisfação, o seu quinhão de sofrimento, dias de arrepio, dores de cabeça. A vida não é uma festa, esperamos que também não seja um longo velório.

Mas o espelho também é infinito e tem veredas, curvas, espaços em branco, tudo o que não é apenas objectivo mas que vive na subjectividade que comporta o olhar de cada um que nos olha, nos vê.

~CC~





segunda-feira, 14 de julho de 2014

Excluir, excluir...



A inscrição para a 2ª fase dos exames do ensino secundário custa 6 euros para quem não teve nota negativa, um recurso custa 25 euros cada um, estamos, claro, a falar da escola pública. Dois exames na 2ª fase, dois recursos perfazem o total de 62 euros, sejamos sinceros, muitos pais não têm este dinheiro extra. A exclusão por motivos económicos na escola pública é das coisas que mais me incomoda. Há apoio social para isto? Duvido...

Gostaria imenso de saber se pagam aos professores para examinar os exames de recurso, certo é que o ministério recebe. Isto será uma forma de desencorajar o que o ministro tanto aprecia? O esforço por querer fazer mais, a necessidade de justiça que acompanha tantas vezes o querer ver outro olhar sobre uma prova?

Valham-nos os professores bons, acho que deviam ganhar mais, deviam ter recompensas pelo seu extraordinário esforço (há muitos países que o fazem). Falo de uma professora de Físico-Química da escola Secundária da minha filha, assim que saíram os resultados dos exames, ela disponibilizou todas as manhãs da sua semana para dar aulas extra até à data ao exame. Nem sequer é professora dela, aceita qualquer aluno do liceu que apareça. Os outros não estão lá ou se estão, não estão a fazer o mesmo. Quem os reconhece? Os alunos certamente e os pais também, todos os alunos dela obtiveram as notas mais positivas da escola. Tenho dúvidas quanto aos colegas, já fui muito criticada por trabalhar de mais e nunca criticada por trabalhar de menos. A minha filha diz que está a perceber coisas que em três anos nunca percebeu, não serão certamente só estes dias a colmatar falhas tão antigas, mas é meritório o esforço de quem faz e de quem lá vai.

~CC~

Adenda: Para quem tem acompanhado...A Matématica teve 18,7, foi bom...mas continua a sonhar com o 20. Fisíco-Química, com 13,5 valores deita por terra (por ora) o sonho de entrar em Medicina. Mas há mais épocas, mais sonhos, mais vida. Cá estamos, lado a lado.


domingo, 13 de julho de 2014

A morte adiada


Os velhos não vivem, adiam a morte entre duas doenças, as pernas que já não obedecem, os olhos que foram deixando de ver, o ouvido que ficou a ouvir tudo mais longe. Adiar a morte é uma coisa triste, adiam-na entre as memórias do que já foram, o lamento profundo da solidão que os habita, a inutilidade de sentirem que a vida, a que têm, de pouco já vale. Tanto esforço para isto. Tanta droga inventada, tanta máquina de suporte de vida, fisioterapia, centros de dia. Hoje ajudei mais uma velhota a carregar no botão para abrir o comboio, outra a saber onde era a estação onde devia sair, a escolher o papel certo para dar ao revisor. Apenas uma viagem de comboio e tantos velhos desamparados, viajando sozinhos, cheios de medo de passarem a estação, descerem do comboio, abrirem a porta. O revisor diz que há um sistema de apoio que tem que ser accionado com alguma antecedência para estes apoios. Duvido de tal coisa. As estações ao Domingo estão quase totalmente encerradas e as bilheteiras que abrem, fazem-no por curtos períodos. Ainda me lembro de viajar na carris e haver sempre um revisor, sempre alguém para além do motorista. Agora é raro. 

As aldeias, as vilas, as cidades estão cheias de velhos sós, muitas vezes doentes. Estamos longe de avaliar, de perceber a dimensão real do problema. Se a ajuda chegasse mais cedo, talvez não se tornassem tão amargurados, tão difíceis. À distância a que vivo da minha mãe, tento dizer-lhe que não pode viver na sombra do que já foi, de que a velhice lhe roubou coisas e que tem que as aceitar, que deve viver pensado em quem é e no que pode ter. Não é fácil. 

~CC~

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Dias tão lentos, dias tão velozes



Ontem o Domingo foi tão grande e com tantas estações do ano. De manhã a chuva dificultou os teus trabalhos no jardim da nossa amiga que nos deixa deambular pelo Alentejo. Caminhei pela chuva de verão com alguma tristeza de ver que não iria à praia. À tarde já estava sol e consegui deitar-me na areia e serenar, totalmente em paz com o mundo. Ouvir as ondas do mar, olhar os desenhos das falésias, ter-te assim a meu lado, faz com que o mundo me pareça um lugar melhor. 

E acordar segunda noutro lugar é muito bom, mesmo que venha a correr para trabalhar, ansiosa porque tenho trabalho de tarde e à noite. Acordei no Alentejo hoje e terminei a noite no Barreiro, acordei no silêncio e terminei a noite ruidosamente, entre 50 jovens dos 15 aos 18 anos. Pediram-nos que fizéssemos uma noite de quebra gelo mas sabíamos que há muito o gelo estaria quebrado e programámos antes desafio, incentivo à criatividade. Os jovens são sempre surpreendidos por estas propostas, primeiro ainda tentam esparvoar mas depois rendem-se e mostram as suas enormes capacidades, a criatividade é como um novelo, parece ser pequeno mas depois de desatado há fio e mais fio. Contudo, raramente é desatado, a escola prefere enchê-los de coisas como se fossem recipientes.

Eu era claramente a pessoa mais velha da sala mas senti-me confortável, bem com a minha pele. 

~CC~

terça-feira, 1 de julho de 2014

Essa coisa do amor



Às vezes quero ficar sem o meu amor, às vezes o meu amor quer ficar sem mim. Eu e o meu amor já ficámos um sem o outro. Pensámos que era bom, pensamos sempre que será bom, mas depois não é nada. O vazio um do outro é tão grande que não resistimos a procurar-nos. Não é pela solidão, é pelo vazio do outro.

Damos muito trabalho um ao outro. Eu só quero andar na rua, viajar, ir à praia. Crio redes e laços por aí e estou sempre a ir aqui e acolá fazer formações, comunicações, workhops e coisas dessas. O meu amor às vezes vai ver-me, outras tira fotos e de outras fica em casa. A minha sede de viver cansa o meu amor. O meu amor gosta de casa, de ler, de tocar viola, de passar muito tempo no computador, de plantar umas coisas no seu quintal pequenino, o meu amor inventa viveiros de pimentas e pimentinhas. O meu amor é desses que tem muitos amigos no FB e fala com eles e eles chegam de todo o lado, até da sua meninice. Eu não tenho amigos nenhuns virtuais, nem FB nem estou nada interessada no meu passado, estou sempre a voltar-me para o futuro. Eu dou muito trabalho ao meu amor porque ando sempre de um lado para o outro e ele fica cansado de vir atrás de mim e às vezes não vem e só quer ficar quieto. A minha cabeça está cheia de todos os lugares onde não fui e se criasse asas ninguém me apanhava, riscava o céu todo com o meu voo. O meu amor não tem essa vontade de viajar nem de ver lugares e pede-me que fique ao lado dele ao Domingo a ver um filme ou a dormitar e eu tento ser feliz nessa felicidade dele. O meu amor zanga-se às vezes muito e eu só me zango raramente mas a zanga dele passa muito depressa e a minha é funda, grande e demora a passar.

E entre as nossas diferenças tão grandes que obrigam o outro a sair de si mesmo, comemos comida picante, vamos ao teatro, passeamos na cidade à noite, vamos comer petiscos, contamos um ao outro as dificuldades que a vida nos põe pela frente e as coisas boas que descobrimos. O meu amor às vezes é calado e eu sou faladora, eu às vezes sou calada e o meu amor é falador. E são mais as vezes que somos as duas coisas, ouvindo o outro, falando ao outro.

Eu acho que o meu amor às vezes quer ficar sem mim e pensa que eu quero ficar sem ele. Nós já ficámos um sem o outro e eu só pensava nele e ele também pensava em mim. O vazio um do outro criou uma saudade imensa do nosso abraço coladinho. Eu às vezes penso que não gosto dele e que ele não gosta de mim. E depois ele vem de tão longe só para passar uma noite comigo no meio do Alentejo e eu  percebo o seu esforço e vejo que ele é mesmo o meu amor.

~CC~