domingo, 30 de março de 2014

No palco


O palco. As pessoas que estão dentro dele naquele faz de conta maravilhoso. Como é possível que estejam ali para nós, de carne, osso e pele. Não estão escondidas atrás do écra, estão ali por nós, connosco. Não podemos deixar o teatro morrer, esta generosidade morrer.

Andei a ver teatro.

Uma encenação clássica num teatro pequenino de província, o palco distante, actores contidos, não ousando mas cumprindo. Não é ainda o meu teatro.

Uma encenação modernista, de performance, no teatro grande da capital algarvia, ainda que na sala pequena, o palco próximo, actores sem medo, entregues ao seu delírio com a arte de representar. Não é ainda o meu teatro.

Fui ao cinema.

E admito, vi duas grandes actrizes no quente mês de Agosto.

Queria ter gostado mais do teatro, mas gostei mais do cinema, senti coisas no cinema e no teatro senti pouco.

A última vez que chorei num teatro foi com dança-teatro, o Vale da Madalena Vitorino, no teatro da Trindade. Vi depois muitas vezes, na segunda ainda me emocionei muito, depois comecei a reparar nas coisas pequenas que a emoção não me tinha deixado ver. Continuou sempre bom.

O teatro é esse lugar onde a emoção tem que acontecer. Aconteceu-me muitas vezes. Como não podia? A primeira vez que alguém me fez sentir gente a sério foi numa sala de drama. A primeira vez que acreditei em mim, a primeira vez em que vi que os meus defeitos podiam ser superados, não eram barreiras intransponíveis. O teatro é um voo para dentro e para fora de nós, temos que ir ao teatro, mesmo que seja para gostar apenas um bocadinho, como me aconteceu neste fim de semana.

É preciso ver muito, ver de tudo, haja tempo, algum dinheiro.

~CC~






quarta-feira, 26 de março de 2014

Laranja doce, laranja amarga



Um dos filmes mais impressionantes que vi foi laranja mecânica. Fiquei assombrada pela maldade gratuita, quando nem se veste de ideologia para poder existir.

Hoje vi cinco miúdos a divertirem-se maltratando um gato vadio, nem sequer eram muito novos, tinham a perfeita consciência do que faziam, mas não saberiam explicá-lo, diriam um porque sim se os olhássemos nos olhos. O gato lá se conseguiu esconder debaixo de um carro, mesmo assim tentavam atirar-lhe pedras para o fazer sair do esconderijo. Não me venham dizer que essa maldade é uma coisa natural, não é verdade que passe por todos como uma sombra. Estas coisas tiram-me sempre a esperança, são amargas.

Pelo contrário, os velhotes que vi hoje no café deram-me vontade de envelhecer assim. Bebiam o café da manhã em conjunto, riam, contavam histórias, brincavam. Velhos com algum dinheiro que não precisam de um centro de dia para encontrar a sua tertúlia. Elas arranjadas, bonitas, eles arranjados, bonitos. Apenas me interroguei sobre a hora matinal, 9h30m da manhã e já ali. Hoje, cansada de acordar dias e dias às sete da manhã, dava tudo para as 9h estar ainda a dormitar (sim, porque a essa hora já não consigo dormir). Mas envelhecer é também isso, acordar cada vez mais cedo. Estes velhotes dão-me esperança de um dia acordar com todo o dia para mim, é uma antevisão doce, eu sei.

~CC~

segunda-feira, 24 de março de 2014

Um lugar




Certos lugares tornam-se especiais como certas pessoas, nem damos conta de que está a acontecer. São amores que se constroem lentos, mercê de sucessivos acasos. Quando nos apercebemos já sabemos como é aquela cor de céu, aquele cheiro, o frio já não dói tanto e a paisagem de pedras foi-se tornando bonita., passámos a ter mais pessoas de quem gostar. Quando era muito jovem gostava de dizer que o coração não acabava, todos cabiam naquele infinito, hoje não me parece tão verdade porque certos lugares, certas pessoas, são de fácil adopção, mas outros parecem-me estranhos e difíceis. 

Aquele lugar ficará ainda como o primeiro em que aprendi a distinguir um espargueiro de uma erva daninha e a apanhar os espargos selvagens que me deliciam tanto num risotto como uma sopa ou simplesmente fritos com alhinhos. Intenso o prazer de uma manhã fria a colher folhas de louro, tomilho, espargos, poejo. Só me faltaste tu para misturar com aqueles cheiros o sabor de um beijo. Ficas tão longe de mim, se te sinto feliz quase não me importo, mas de outras vezes sinto que estarias mais feliz aqui, a apanhar comigo espargos.

Quanto melhor é o fim de semana, mais difícil é aterrar na Segunda Feira. 

~CC~

sexta-feira, 21 de março de 2014

PP



Chegou fria e chuvosa, não fora o passarinho que teimava ainda ali na varanda, num pio suave, pequenino. 

Não esteve presente em algumas partes do dia, nem a Primavera, nem a poesia. 

A poesia fugiu-me em pleno comboio. A miúda de dezassete anos, desde os doze na casa pia, a quem tiraram o filho assim que nasceu, querem forçá-la a dá-lo para adopção. Vi uma história assim num filme mas era em Itália, a meio do século passado. Mas é assim hoje e em Portugal? Negra, praticamente analfabeta, desde cedo abandonada, mas desesperada pela filha que "o Estado lhe tirou". Como recuperá-la dizia ao senhor da frente, invocando ter trabalho, era um pedido de ajuda atabalhoado, entontecido, entontecedor, mesmo que seja apenas um lado da história. Os desprotegidos geram desprotegidos numa cadeia sem fim.

A poesia dita em voz alta num centro comercial lisboeta, quem diria que sabiam passar mais do que música ruidosa...e descontos sobre os livros de poesia da livraria. O comércio abraçou os dias comemorativos, mas a poesia, essa parecia-lhe escapar-lhes. 

Poesia só encontrei-a nos olhos dos meus alunos quando eles se tentavam esquecer de tudo o que lhes tinham ensinado para ver arte contemporânea no museu do CAM, não é fácil gostar de praxes e entender o peso do paraíso. Não é fácil ter crescido à procura das palavras certas que os outros esperam ouvir e depois nos dizerem que não há palavras certas. O desconcerto do mundo passava como uma luz nos rostos deles. 

A beleza do mundo presa entre o sim e o não na escultura preta, feita tragédia clássica nas fotografias da fada má, os artistas baralham tempos e símbolos e rasgam-nos horizontes. O jardim, um dos espaços de poesia da minha vida. O concerto dos Trovante ali, há tantos anos. A tua boca carnuda, os teus caracóis. Não me fujas, poesia.

~CC~





quinta-feira, 20 de março de 2014

Arquitectura Social



Os arquitectos imersos na vida das comunidades, que bom!


É na garagem sul do CCB (Lisboa).

http://www.publico.pt/cultura/noticia/arquitectos-portugueses-no-estrangeiro-tem-tanto-mar-quanto-arquitectura-social-1628952#/2.

Estão lá as vozes (e o trabalho) dos moços que tiveram a coragem de desafiar o Relvas quando foi ao Brasil.

~CC~



segunda-feira, 17 de março de 2014

Viagens



O teu cheiro, o meu cheiro, aquele cheiro a mar.

Gravados no olhar os bandos de pássaros atravessando o crepúsculo.

Os corpos maduros têm outras tonturas.

Já foi, podia continuar a sê-lo.

É a meio do caminho que as águas se chamam fontes e são muitas em números redondos.

Mil e uma noites, mil e um ladrões, ali babá.

As furnas escondem os ovos prontos a eclodir quando aquecer.

As pedras são tão redondinhas, esqueci-me de trazer a que me ofereceste, uma pedra tão boa para caber na minha mão, às vezes servir-me de coração, amanhã precisava dela para o sangue não bombear aquela tristeza do costume nos lugares de azedume.

Maresia doce. Beijinhos para a semana. Não vão durar, a meio da semana acabam sempre.

As giestas já espreitam pelas estradas, fico parada a olhar cada casinha branca que provavelmente nunca terei.

Eu, maresia tonta.

~CC~

sábado, 15 de março de 2014

As mulheres



São as mulheres as principais produtoras dos estereótipos masculinos, o colete de forças com que se lida com o género. Diziam umas miúdas novas a propósito de um rapaz: esse é uma princesa, não conta. Note-se que não diziam que o rapaz era homossexual (não era), diziam que ele fugia ao padrão que na cabeça delas era o de um homem. Acontece que conheço o rapaz que de facto está longe de ser bruto, de dizer palavrões e de achar que só as meninas cozinham. Na minha cabeça ele é um homem e nada lhe falta para tal. 

~CC~

quarta-feira, 12 de março de 2014

Dezoito



Ela faz hoje dezoito anos. Não é apenas a pele que me dá um alento doce de felicidade, aquele sangue que não é por ser também nosso sangue mas é todo um tempo de vida comum, códigos construídos entre olhares, zangas, muita cumplicidade.

A sua maioridade é acompanhada pelo orgulho que tenho em que saiba pensar por sí própria.

Gosto tanto dela.

~CC~

terça-feira, 11 de março de 2014

As primeiras




As primeiras papoilas lembram-me sempre beijos. Beijos, todos os que dei e os que ficaram por dar e aqueles que me apetecem dar. O sol deixa-me infantilmente bem disposta, como se tudo se dissipasse sob este manto de luz.

As papoilas afastam-me das minha zangas com os colegas manipuladores, os alunos no facebook em plena aula, os ressabiados da vida que me buzinam aos ouvidos. Que se lixe a troika mas também tudo o resto que incomoda, chateia e nos tira o sangue e rouba a vida. 

Eu própria me torno uma papoila. 

Vermelha, silvestre, fugaz, capaz de dizer não me apetece e apetece-me, assim só porque sim.

~CC~


sábado, 8 de março de 2014

Novas liturgias



Já não há manifestações para gritar. Já não há slogans de manifesto, de luta. Que se durma sobre as violações, a violência doméstica e os ordenados mais baixos do que os dos homens. Este é o século das mulheres no hemisfério Norte, não falemos do Sul por favor. 

Os homens compram umas florinhas às suas mulheres. Fazem-se espectáculos ordeiros para as quais as mulheres levam as roupas mais finas e pintura retocada. Para evidenciar que todas as classes se juntam nesta nova liturgia, as juntas de freguesia fretaram camionetas e convidaram algumas mulheres do povo. Passou por mim a empregada doméstica da minha mãe, ia vestida a rigor e com o cabelo arranjado, atrás levava a filha, uma menina de três anos. Sorria maravilhada porque já tinha bilhetes e tinham sido baratos. Pensei porque é que o marido não ia com ela, pensamento tonto, claro. Lá dentro, no auditório cheio que nem um ovo, a mulher sairá homenageada, não sei bem que mulher. A minha mãe queria ir e eu levei-a mas esbarrámos na bilheteira esgotada, o que ainda me surpreendeu de modo estúpido foi a escassez dos homens. Mais logo algumas irão ocupar umas mesas nos restaurantes e beber à maneira, quem sabe vão a um bar de strip. Estamos a anos luz da igualdade de direitos entre homens e mulheres, basta ver estes anúncios, bem recentes, deste país à beira mal plantado.



Por favor, não me ofereça uma rosa.

~CC~

quinta-feira, 6 de março de 2014

Pelo menos...


O mundo grande enlouquece a uma velocidade vertiginosa entre os pró russos e os pró ocidentais, reavivando feridas antigas. E o mundo pequeno também se tolda com notícias incompreensíveis de projectos que nem se deixam nascer, depois de tantos dias a imaginá-los, a minha cabeça que dantes tinha clareza sobre os rumos que o ensino superior deveria assumir, é agora um pedaço entontecido com as meias licenciaturas, a indesejável comunicação entre o politécnico e o superior e outras grandes missões do nosso ministro. Não resisto a pensar que a palavra de ordem por trás de tudo é sempre a de fechar, eliminar, acabar. Sobrará uma curta faixa, cada vez mais curta face ao avanço do mar, qualquer coisa a que será difícil chamar país.

Pelo menos voltaram os pássaros. Acordei com um pequenino debruçado na janela do quarto e oiço-os agora ali no quintal, esgravatando minhocas e rodando talvez as nêsperas que começam a amadurecer.

Os pássaros voltaram, é menos uma coisa que me falta para estar bem.

~CC~

quarta-feira, 5 de março de 2014

Carta(s)


Ele escrevia cartas de amor a pessoas que não as conseguiam escrever (Her, o filme). Eis uma profissão que eu não me importaria de ter, desde que as pessoas olhassem para mim como uma espécie de tradutor do que o coração delas não torna palavras e soubessem ambas da verdade.

Escrevi muitas cartas ao meu amor ao longo dos anos, privadas e públicas. A nossa história começa assim a quatro mãos, em torno de uma pequena alfarroba, que chamámos de farrobinha. Depois as palavras tornaram-se cada vez mais só minhas e chorei muito sobre o modo como as dele foram desaparecendo. Sou pouco dada a entender que a paixão se torne amor e depois amizade, numa transição linear e inevitável que algumas pessoas aceitam e outras combatem ferozmente. Mas também sou pouco dada a forçar coisas, seguir receitas de aquecer o amor, cartilhas românticas mais ou menos vendidas como infalíveis, do tipo férias ou fins de semana a dois em locais paradisíacos. A cada momento somos diferentes, vamos precisando de coisas diferentes e as manifestações de amor vestem-se de múltiplas roupagens que é preciso desvendar. Às vezes há paixão, outras amor e noutras é a amizade que vinga.

Mas eu gosto das palavras. Vejo-o nestes dias de aniversário como o menino irrequieto que assustava rãs e pássaros, como o homem que lacrimeja ao meu lado no cinema, como o velho que me dará uma mão enrugada para se apoiar em mim quando atravessarmos a estrada. De tantos anos, tantas lágrimas, muitos sorrisos, tenho a mesma vontade de sempre de partilhar o crepúsculo, dar-lhe um beijo, enroscar-me para dormir, sorrir-lhe pela manhã. A mesma vontade de abraços colados com todo o corpo. A alegria por amanhã ser o dia dele, o respeito pela forma como quase nunca o festeja.

Olho para ele com a ternura imensa de quem me ajudou nas crises de falta de ar, angústias doutorais e crises laborais, procurando devolver-lhe também esse alento para ultrapassar momentos menos bons. Quero beber-lhe a alegria quando toca e canta com os amigos, bebe um bom vinho, cozinha uma nova iguaria, lê um poema, escreve um novo texto.

Parte do meu amor por ele é companhia, tempos partilhados, meninas que cresceram entre nós, corpos que se sabem encontrar, partes comuns de sonhos, muito passado, ainda muito futuro.

Parabéns meu amor.

~CC~