quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Só mesmo do ar


É o excesso de vozes e de sentidos que me cala. São os dias de grande intensidade que me esgotam e não os dias grandes, de silêncio maior. Preciso da quietude para que a palavra nasça, se desenrole e me dê prazer. Dizia ontem uma poetisa, no seminário, que para ela a palavra era urgente, se não a fizesse nascer, não conseguia respirar. Eu só preciso mesmo do ar. Deve ser por isso que não sou poeta.

~CC~

sábado, 24 de novembro de 2018

Cinco, são cinco sentidos.



Às vezes ando com uma semana inteira com uma pessoa na cabeça. Amiúde penso que lhe tenho que ligar e também de a ver. A amizade precisa da mesma lenha que a lareira para se manter viva e quente.

É uma coisa que as pessoas fazem já tão pouco. A maior parte encontra-se numa qualquer plataforma digital e satisfaz-se com isso (não as nomeio para escapar à publicidade de que não precisam). Até a família já o usa para dar os parabéns. Compreendo isso quando há um oceano pelo meio ou uma estrada muito, muito comprida. É bom e compreensível nesses casos.

Eu preciso de ouvir a voz das pessoas, a maior parte das vezes as modulações, o tom, a altura, tudo isso me fala tanto quanto o conteúdo das suas palavras. Depois de lhes ouvir a voz também preciso de as ver. Os olhos delas, a forma como os desviam, os cravam em mim, olham a paisagem, sorriem com eles, tudo isso me diz mais do que o conteúdo das suas palavras. A verdade é qualquer coisa que me tem que chegar inteira e por isso as palavras não chegam, a pessoa tem que me chegar com um corpo e um rosto, por mais que goste e gosto muito de palavras. Uma pessoa inteira chega-me pelos cinco sentidos, preciso de todos eles para a amizade e para o amor.

~CC~

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O que conta é a pele que trazemos



Pela primeira vez em muitos anos tenho sido formanda em várias coisas e não formadora, tenho me sentado numa plateia a ouvir os outros falarem em vez de ser eu a falar. Já me fazia falta. Percebo que dar e dar e dar sem receber nos esgota. O nosso saber precisa de alimento e não é apenas um alimento de coisas lidas. Tem que ser um alimento de coisas vividas. E nas coisas que tenho procurado posso ter esse estatuto de igual a todos os outros. Ontem estive numa sessão de sociodrama ao lado de uma aluna minha e não fez qualquer diferença, há espaços em que os estatutos são feitos da pele que trazemos.

Nem a roupa, nem o Curriculum Vitae, nem o tamanho das coxas ou a cor dos olhos, o que importa é a pele que trazemos.

~CC~

sábado, 17 de novembro de 2018

Recado



De novo aquele lugar no horizonte. Não para mim, mas para alguém próximo.

Um lugar até onde as orquídeas podem ser sombrias. São Invernos muito longos os que se passam entre fios e seringas, máquinas de bip bip e aromas a químico. Lá, se não aprendemos a rir, começamos a morrer.

Seria apenas quase isto que eu teria (terei) a recomendar.

~CC~

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

O meu teatro comunitário



Às vezes é preciso que passe muito tempo sobre um acontecimento para percebermos que foi bom. Outras vezes sabemos quase imediatamente. Foi isso que me aconteceu com a oficina que frequentei de teatro comunitário. Foram quatro dias muito intensos e praticamente não houve fim de semana e preciso dele, mesmo quando trabalho não sinto o tempo completamente tomado como senti desta vez.

Acho que o meu bom é só meu. Não é um bom de quem venera quem o conduziu, de quem enaltece as qualidades do grupo ou endeusa o teatro como um novo altar. A minha solidão não precisa de ser ocupada, gosto dela. Não preciso de mais gente, de ter mais gente na minha vida e por isso não foi por isso que procurei integrar-me neste grupo. Reconheço o cimento, a alegria, o gosto pelo que conseguimos fazer. Reconheço que é bom nos sentirmos uma parte integrante de um grupo, mesmo que momentâneo. Mas não preciso das fotos, de entrar no grupo no FB, de trocar telefones. Uma maré é um vai e vem e depois termina na praia. Se fomos e viemos com ela, temos a memória do seu movimento, o seu registo na pele. O bom deles ficou em mim. Se nos reencontrarmos alguns ou no todo que seja natural, vivido e com cor.

O meu bom é mais a confirmação de um caminho já iniciado, já pressentido, já esboçado. É perceber o que gostaria que fossem os próximos anos da minha vida. É feito do que ainda não foi, do que ficou por saber ainda, o meu bom é um desejo mais adiante. O meu bom é afinal muito simples. É feito de confirmação. De saber mais uma vez que o teatro pode ser esse lugar para podermos contar histórias sobre nós e os nossos lugares. E que ao contar nos tornamos, como por magia, matéria humana de encantar.

~CC~






sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Descendo ou subindo pelo arco-íris (II)



Um novo amor, disse a mulher na beirinha dos cinquenta, a possibilidade de viver mais uma vez o amor.

Estudar o que sempre quis e não pude, disse a mulher que tinha passado poucos anos dos trinta.

Sair deste emprego, encontrar uma coisa que me faça sentido, disse o homem dos quarenta e picos.

Conseguir engravidar e gerar um filho até ao fim, disse a mulher quase nos quarenta.

Não quero nada, a sabedoria está em não querer, disse o homem que já tinha passado dos sessenta.

Tantos potes de ouro, a cada um o seu.

Pensar no meu pote de ouro era fácil, eu só queria vida, mais vida, mais anos de vida. Pensava nisso com certeza e sofreguidão.

Mas depois chegaram receios pelas vidas de outros e pensei melhor. A verdade é que por uma seguramente, duas provavelmente, talvez mesmo três pessoas até daria a minha vida pela delas. Não é um altruísmo tonto, pelo contrário, é até egoísta. Simplesmente a minha vida não faria sentido sem as delas. E assim se aprende a relatividade do que desejamos.

~CC~


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Descendo ou subindo pelo arco-íris



Nestes dias em que vejo o arco-íris, lembro-me sempre do pote de ouro que acreditava estar no fim dele. Toda a minha infância foi repleta de inocência porque chamar-lhe ignorância poderia ser demasiado duro. Quando não temos explicações para as coisas podemos inventá-las e era isso que fazia até a realidade me fazer sair abruptamente de tudo o que até aí conhecera e que na verdade era pouco mais do que o meu quintal. Acreditava, por exemplo, que os gatos, esses seres vadios e trepadores, facilmente escolheriam uma cor para subir e descer lentamente o arco-íris ou poderiam mesmo ficar a dormir numa delas. Mas bem vistas as coisas ainda tenho pensamentos mágicos, não obstante os mergulhos no caldeirão da ciência. Penso que no que poderia ser para mim o pote de ouro. O que seria ele para ti? 

~CC~

domingo, 4 de novembro de 2018

Dia dos mortos



O meu pai escolheu a véspera do dia dos mortos para morrer. A minha tia também. Ele, um homem autodidacta, viajado pelo menos por quatro continentes e residente em três deles, sábio, culto, mau feitio, doido por mulheres, casado três vezes, mais vezes em união de facto ou qualquer coisa semelhante a isso. Ela, uma mulher algarvia, casada uma única vez com o homem amado, insubmissa, mau feitio, com imensa graça na sua má língua do sul. Em comum, a solidão do fim. Consta que ela ainda teve muitas flores, não sei de onde vieram, morava num lar e apenas a filha a visitava. Ele, nem isso, sem flores, nem amigos, nem família, nem mulheres. Apenas e quase as filhas, as três filhas do seu primeiro casamento. Em comum, a profunda solidão do fim.

~CC~