sábado, 28 de maio de 2016

Mulheres velhas



No lar elas sorriem, mesmo com as bocas praticamente sem dentes. São sempre mais mulheres e elas participam mais em tudo. Uma ida a um lar e temos o Portugal pré 25 de Abril à nossa frente, é dor absoluta. Mesmo assim, passados tantos anos, só agora se anuncia a entrada dos dentistas no serviço nacional de saúde. 

Vive-se mais e mais ao abandono, muito perto da miséria.

Ontem no café-restaurante, a senhora atravessou o período de almoços com o seu galão e torrada que já devia ter consumido há muitas horas atrás, é à hora do almoço que chega mais gente com quem conversar e um pouco dessa atenção era o outro alimento do qual necessitava para mais um dia de vida. Estava indignada com os escândalos de abusos na casa do gaiato, instituição para a qual tinha contribuído anos a fio. Tanto como a minha mãe com o financiamento do Estado aos colégios privados que peca por ter durado tempo demais. São velhas mas estão lúcidas e sabem conversar. E estão demasiado sós. 

~CC~

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Alargar a sala minúscula



Uma conjugação improvável dos astros conseguiu fazer com que coubessem oito na minha sala minúscula a comer, a rir, a esparvoar. É isso a família, existirá até quando o conseguirmos fazer, sem ligar ao copo que em nada combina com o toalhete e com os talheres. É claro que o ruído fez tremer os vidros e a minha pele, tão habituada ao silêncio deste espaço, às noites só comigo (e isto não é solidão), ao telefonema que me faz dormir ou me tira do sono. 

E a companhia dela, mais invulgar agora aqui, (re)constrói o meu próprio lugar no mundo. Parece que com ela faz mais sentido ser daqui, muito embora ela já tenha saído, é como se estivesse aqui a marcar-lhe o lugar para poder voltar e dizer que esta é a sua terra.

Até as salas minúsculas se podem alargar.

~CC~

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Homem-Natureza




Hoje, eu e mais 55 pessoas, entre os 15 e os 89, tornámos limoeiros árvores com flores de múltiplas cores e feitios. Cheios de trapilho, crochet, tecidos, eles já não eram apenas a natureza mas falavam connosco numa língua quase humana, surpreendidos pela companhia, pelo afago, pela transformação. Durante uns dias serão árvores encantadas e com nomes deslumbrados.

Faltou-nos, contudo, o contrário, enchermos o nosso cabelo de folhas e abrimos os nossos braços para deixarmos cair limões. Foi bonito mas desequilibrado, como sempre os humanos ganharam.

~CC~


sexta-feira, 13 de maio de 2016

terça-feira, 10 de maio de 2016

Serei ainda eu e já uma outra



Depois de tantos anos sei finalmente o que é a preguiça. Enrolou-se em mim todo o dia. Vi 8 trabalhos num dia, uma média surpreendemente baixa, atendendo a que cada um tem duas páginas. Vi-os lutando contra mim, culpando a chuva, talvez mesmo uma virose a rondar, dadas as dores musculares.

Contudo, os meus cinquenta, agora com uma ponta de preguiça, ainda são assustadores para os meus alunos de 20 anos, sinto-me grande parte das vezes com o dobro da energia deles. Costumo espicá-los, perguntando-lhes se têm melhor coisa para fazer do que viver.

Talvez com o tempo chegue à normalidade, apreciando dormir, ver televisão, ficar as manhãs pelo sofá, ter um dia sem nada para fazer. Serei essa coisa de ser ainda eu e já uma outra. Se calhar estou a caminho.

~CC~

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Granizo


Não tenho só amor e respeito pela natureza, tenho medo dela.

Como não ter?! Hoje a temperatura desceu 6 graus em 10 minutos e caiu um granizo intenso que parecia capaz de me amolgar o tejadilho do carro. Certas ruas ficaram inundadas numa hora e dei voltas e voltas para conseguir transitar de um lado para outro da cidade. Tocaram as sirenes num céu chumbo. 

Não me senti apenas pequena mas uma partícula ínfima, capaz de se afogar numa poça de água. O que é que o homem controla? Uma pequena parte do universo, tão pequena como a que controla em si mesmo.

Gelou-me o granizo, tive dificuldade em dar continuidade ao dia.

~CC~

domingo, 8 de maio de 2016

Um velho escultor


O que fazemos é lutar contra o tempo, contra o pó que ele traz e se insinua nas coisas e nos corpos. 

O desgaste das coisas entranha-se tanto nos objectos como nos equipamentos, depois de 10 anos tudo parece precisar de ser trocado nesta casa. A máquina de lavar avariou várias vezes. O chão que aparentava ser uma coisa moderna, mostra ruir nas suas várias ligações entre as partes da casa, o alumínio do lava loiças está a escurecer a olhos vistos e a loiça da casa de banho adquiriu um tom amarelado que nem a lixívia, se usada todos os dias, parece capaz de tirar (acresce que odeio o cheiro). A luta contra o tempo a degradar a casa exigiria uma batalha diária que sou incapaz de travar. Debato-me assim entre a impotência e a luta, ora num lado, ora no outro.

Isto é também o que acontece nos nossos corpos por dentro e por fora. Uma nódoa negra não custa nada a fazer e demora a curar. Uma dor no ombro prolonga-se por dias. Já os cabelos brancos, esses não se querem esconder e disseminam-se como se fossem cogumelos em dia de chuva. O que fazemos com o tempo? Deixamos que invada as coisas e os corpos com dobras, rugas, amarelo e branco ou lutamos para perdurar o brilho e o cheiro do que é novo?

É mesmo um velho escultor.

~CC~





quarta-feira, 4 de maio de 2016

0 momento diário de beleza




Todos os dias deviam incluir uma parte como a de ontem: saí do trabalho e fui ver o mar e com ele um pôr do sol de cortar a respiração. Embora o que é belo não me canse, talvez não precisasse de mar e de sol todos os dias mas de um momento de beleza sim.

Às vezes o momento de beleza até acontece dentro do trabalho e já volto preenchida. No outro dia uma sessão de expressão dramática com um grupo de sem abrigo emocionou-me como nenhum filme o fez nos últimos tempos. Por duas razões: pessoas adultas com uma capacidade de entrega fora de série e um aluno que sempre tinha sido frágil a crescer como um gigante.

Dias piores são aqueles em que esse momento não ocorre e o quotidiano não se ultrapassa a si próprio. Também os tenho como toda a gente. Mas gosto de viver também porque os momentos de beleza têm sido muitos e extraordinários. Cabe-nos também encontrá-los.

~CC~