sábado, 29 de dezembro de 2012

Poemário de ano novo


Eis os meus desejos para 2013 vertidos num poemário a preceito, em versão condensada de 12 para 3 (não perder a esperança na transformação do mundo, nas coisas inesperadas, na poesia vertida no quotidiano da vida).

I

Ahora todo está claro

Cuando el presidente, cualquier presidente
se preocupa tanto
por los derechos humanos

parece evidente que en ese caso
derecho no significa facultad
o atributo
o libre albedrío
sino diestro
o antizurdo
o flanco opuesto al corazón
lado derecho en fin

en consecuencia
no sería hora
de que iniciáramos
una amplia campaña internacional
por los izquierdos humanos?

Mario Benedetti (Brilhante e irónico, uma maravilha o Mário, descoberto há apenas uns seis anos)


II

HAPPY END

O meu amor e eu

nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente
 
Antonio Carlos de Brito (Cacaso) (este poeta foi uma descoberta muito recente, encontrado no blogue Afetivagem, ali nas ruas afins).

III

Entrei no café com um rio na algibeira

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

  José Gomes Ferreira (este foi o meu primeiro poeta, um livrinho azul encontrado nos caixotes que vieram de Angola, tinha eu dez anos)
Para todos os que passam por aqui, bom 2013!

~CC~





sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Roteiro de regresso



Uma lua a nascer inteira e redonda na vinda do Sul. E pássaros, imensos, em bandos migratórios. Não é mais o meu Sul mas sinto ainda o modo como um dia de sol de Inverno pode ser belo. E sonho-me ainda um dia nesse Alentejo, desejo guardado tantos anos.
 
As meninas conseguem derrotar a minha tristeza sempre que ela teima em tocar-me. Depois dos jogos do STOP, das matrículas, do Quem é Quem, proponho uma brincadeira mais séria. Peço-lhes que digam o que querem alcançar no próximo ano, assim um jogo para facilitar a expressão dos nossos desejos na hora das passas.
 
A mais nova é a primeira a entrar no jogo, dizendo rapidamente: eu quero uma consola! (bom ela disse outro nome qualquer imperceptível para mim, mas depois traduziu-o). Eu reagi dizendo que não era bem isso, que não estava a falar em coisas materiais. Coisas que não são materiais?! Espantou-se ela. E depois de um momento de silêncio, questionou-me: assim como a água?
 
~CC~

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Depois da festa

 
Há uma criança durante estes dias deambulando pela casa grande onde a lareira está acesa. Vai passando primeiro com os seus velhos carrinhos pelos nossos colos, às vezes sobe um pouco mais e atreve-se até aos nossos cabelos. Gritamos: ai estás a aleijar-me. No dia seguinte ele já tem brinquedos novos e as meninas mais velhas passam muito tempo com os legos minúsculos a tentar torná-los bonecos. Há dois dinossauros, ele diz-me que um é o dinossauro voador que mergulha na água para tirar os peixes. O outro...o outro, ele hesita...e depois diz-me que é o dinossauro andador. Classifica estes dias com uma ternura tão grande, diz: estes são dias bons! Isto sem que ninguém lhe tenha perguntado nada. Penso no que ele recordará de tudo isto quando for grande, agora tem apenas cinco anos, cinco mal feitos... pois nasceu três meses antes do tempo. Olho para ele e penso que se ele é o milagre da vida, também eu terei coragem de voltar a gostar da vida e a achá-la um milagre.
 
Dos meus natais não recordo um único brinquedo, apenas sons, cheiros, paladares.
 
Deste Natal ainda o quadro que me foi destinado: reflexos de Cibele. Guardei as lágrimas para dentro, lindo em tudo, sobretudo no modo como foi oferecido.
 
~CC~

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Saudades do futuro



Vou dizer-te um segredo agora que estás onde não me ouves.
 
Se voltasses para me contares uma história, colocando-me nos teus joelhos, na sombra do quintal, perdoava todas as ausências que se seguiram à tua presença na minha infância.
 
Agora posso dizer-te sem ter entre nós tantas mágoas. Queria o teu abraço quando me levavas pela rua, esse mesmo de que tinha tanta vergonha quando eu era a filha e tu meu pai. Não sei se é por ser Natal, não sei se é por ser um Natal mais triste do que o habitual, mas tenho mais saudades de ti do que alguma vez tive. Por último, tão débil, esquecido do homem poderoso que sempre quiseste ser, tinhas a mesma voz doce com que vinhas contar-me histórias, esquecido do homem poderoso que na altura acreditavas ser. Sei que tenho pouco a agradecer-te, na altura não se sabia viver entre duas famílias diferentes, nem criar filhos de mulheres diferentes, muito menos com um Atlântico pelo meio. Havia, no entanto, alguma coisa, não lhe sei dizer o nome, mas sei que me fazia sentir especial e que isso me ajudou em todas as lutas.
 
Vais pedir pelo Natal uma comidinha boa com muito picante, com aquele modo trocista de quem sempre fez apenas o que lhe apeteceu. E  vou lembrar-me daquele momento em que fugindo a todas as recomendações do hospital te dei um pão com alguma manteiga cortado aos pedacinhos e de como sorriste, agradecido. Obrigada pelas histórias, pensando bem, se calhar foram elas.
 
~CC~
 
 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Gente que chora (2)



As aulas são hoje espaços onde nos encontramos muito pouco com os nossos estudantes, são sobretudo lugares quase nulos do ponto de vista da transformação dos jovens em adultos. Eu gosto mais dos processos de tutoria, que iniciei muito antes de Bolonha os ter inscrito nas nossas obrigações docentes. Só que as tutorias são hoje espaços de risco emocional. Ontem, um jovem de 20 anos, quase homem feito, até porque já é autónomo, mostrou-me várias vezes os olhos cobertos de lágrimas. Os pais já morreram e vive com a irmã. Endividou-se para pagar o curso. Vive com 300 euros por mês, cerca de 250 vão para as despesas da casa, sobram-lhe 50 para tudo o resto. As colegas organizaram uma venda de bolos e salgados para arranjar dinheiro para um projecto que andamos a fazer na comunidade. Ele não podia trazer nada, contudo, transformou papel velho em carteirinhas e montou uma banca para ensinar as pessoas a construí-las. Ele é resiliência em estado puro. Ele é o tempo que respiramos - negro e vermelho.
 
~CC~

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Gente que chora



Muito cedo, hoje na mesa do bar, uma colega de que gosto muito:
 
- Este fim de semana fartei-me de chorar...pergunta-me porquê e não te sei dizer exactamente.
- E ficaste melhor?
- Olha que sim, chorar faz mesmo bem.
 
As pessoas choram cravadas destes tempos sombrios que afectam tudo aquilo em que acreditavámos. Ela chorava pelo rumo incerto que vivemos ali na instituição em que trabalhamos, sob ameaça permanente. As conversas estão cheias de ansiedade e procuramos no olhar do outro um brilho de luz que nos possa acalmar, mas do outro só chega a mesma inquietação que nós sentimos.
 
Eu também tenho chorado bastante ultimamente. Mas tenho uma vantagem sobre aqueles que têm vivido agarrados a um lugar, a um trabalho, a uma família, eu vivi sempre sob o signo da perda eminente. Tenho medo é certo, mas o medo fez sempre parte da minha vida. Tenho também esperança, vontade de lutar, de procurar soluções. As minhas lágrimas são limpas por mim própria, num minuto elas estão a cair, no outro já limpei o rosto e estou a fazer uma receita nova.
 
~CC~

A primeira vez


Eu tive um blogue de nome Ardósia Azul que nasceu sob o signo da felicidade. A felicidade é alguma coisa que associamos a tempos, datas, pessoas e, no meu caso, a dias de sol ameno. Sabemos que fomos felizes não por não termos sido infelizes mas porque sabíamos que ela prevalecia como sentimento dominante. Porém, essa felicidade foi-se extinguindo como um animal ferido, ganharam os momentos infelizes.
 
Agora tenho um blogue que nasce sob o signo da tristeza. As feridas lambem-se até sararem e um dia olhamos para a pele e já só está uma ligeira marca. Essa nunca passa, mas integra a nossa identidade.
 
Este blogue nasce a combinar com os dias sombrios que rompem o quotidiano das pessoas. É um blogue deste tempo difícil para todos, mas é também de resistência, considerando que a luz e o riso são hoje, como qualquer prazer, uma forma de resistir.
 
Toda a obra da minha infância foi a de ver se conseguia beber alguma da alegria que sobrava nos ares da terra quente em que nasci, creio que estou agora a fazer o mesmo. Às vezes fico parada a sentir o cheiro das coisas, emociono-me com um arco-iris, rio-me dos pés gelados da minha filha adolescente enfiados nos meus, abraço alguém de quem gosto. Sinais de que vou recuperando de um amor fracassado, se é que o amor fracassa, se calhar quando fracassa já não é amor.

A morada é essa: Rua da Índia, 76, Luanda, Angola. Porquê? Porque todos os fins contêm um início.

Entrem por aí, na minha casa a porta nunca se fechava à chave.
 
~CC~