quarta-feira, 29 de março de 2017

Sapatos amarelos



Foi um sonho estranho mas feliz. Talvez o primeiro dos sonhos felizes em muito tempo mas na verdade poucos sonhos tenho recordado. No hospital praticamente não dormia e essa vigília foi importante, eu e os enfermeiros sabíamos que toda a atenção era necessária para que o corpo não me abandonasse. Uma das noites tinha uma enfermeira a espremer os drenos de hora a hora (chama-se mugir). Pela manhã agradeci-lhe emocionada e ela mostrou-me os olhos rasos de lágrimas.

O sonho feliz, um absurdo sinal de luz. Procurava por todo o lado uns sapatos amarelos para combinar com a Primavera que chegava. Calçava inúmeros sapatos amarelos em várias sapatarias, enquanto tu me seguias entre o atónito e o cordato, como se compreendesses o valor daqueles sapatos amarelos. E ria-me bastante, nenhuns deles eram exactamente como eu queria. E começou também a chover, não obstante estar calor, muito calor. Como é que depois de tudo isto sonho com uns sapatos amarelos, uma coisa tão tonta, tão fútil? Não sei mas sei que é bom, é muito bom.

~CC~

segunda-feira, 27 de março de 2017

A voz do teatro



Era tão jovem. E nunca mais houve uma voz como a dele. Profunda, calma, firme. A maior parte das vezes dizia sempre o mesmo: temos que ter a coragem. E a coragem era estar naquela sala e entregar-se, não nos escondermos, tirarmos qualquer coisa de dentro para por cá fora. Era o teatro. Não houve outro lugar no qual tivesse crescido tanto como nas oficinas de expressão dramática que frequentei entre os 16 e os 18 anos. Não houve também outro adulto com mais influência sobre mim do que o João Mota, que teve a generosidade de acolher aquele bando de adolescentes no seu regaço como quem acolhe um bando de pardais sem ninho. Nunca mais deixei de amar profundamente o teatro.

Pedes-me agora que pense na frase que ele dizia também como incentivo, alento para a minha vida., para este presente.Ter a coragem. Tenho-a gasto tanto, tenho-a usado tanto, creio que a fonte não é inesgotável. Chega-me às vezes a fraqueza agora, não se traduz em choro, não se traduz em mágoa, é só incerteza, dúvida, algum vazio, fico ali parada naquela curva do horizonte a pensar em quem sou, em quem serei, em como será ficar, em como será partir. Não quero fazer despedidas, não quero pensar em ir, mas às vezes sem saber como já lá estou, e tenho que me esforçar para voltar atraz, pensar que há uma nova casa da partida. A voz dele, não sei se a voz dele me pode ajudar, mas foi em tempos a voz mais bela que conheci, mais poderosa. Era o teatro, a sua força e magia em pleno.

~CC~

terça-feira, 21 de março de 2017

Do que sobra


Sobra pouco da vida que eu já fui. Por ora sobra pouco. Não posso, não consigo evitar essa tristeza, não obstante me ter salvo, salvo por pouco, por um triz, como aconteceu outras vezes. Mas desta vez vem com muito mais cicatrizes.

Nesse pouco que sobra de mim cabe inteiro ainda esse gosto por essa forma de dizer a vida que se chama poesia.

~CC~

domingo, 12 de março de 2017

Vivas, sempre prontas a ser felizes


O silêncio deve ter dito quase tudo sobre como foi difícil lutar pela vida, depois de 15 dias nos cuidados intensivos (muito escreverei sobre isso mas hoje não), ainda me encontro no internamento. A previsão inicial era de 7 dias de pós operatório. Mas mãos que escrevem são sem dúvida mãos já com outra esperança. E hoje fazem-no não tanto para falar de mim mas sim de uma das razões mais fundamentais para eu estar ainda aqui: ver a minha filha fazer 21 anos. Poder apreciar cada dia que a vida imprime no seu olhar, acrescenta dentro dela, expandindo tudo o que antes era semente. Só essa felicidade tão intensa seria capaz de anular sombras e mais sombras que foram caminhando sobre mim enquanto eu tão teimosamente as soprava. Cheguei aqui, eu e ela vivas, inteiras e solidárias, tão prontas para sermos felizes.

Os parabéns. O abraço mais longo de sempre, vindo de lá do fundo, da sobrevivência.

~CC~