quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A minha aldeia



Dentro de mim há uma aldeia. Galos que nos irritam pela manhã, vizinhas que fazem queijo fresco, pão que dá para uma semana, velhos que demoram uma eternidade do princípio ao fim da rua, torradas feitas na lareira.

Dentro de mim há um mundo verde embalado por mulheres vestidas a preceito para umas modinhas. Dentro de mim há campaniças a romper pela sesta de Domingo.




Podemos afinal ser tudo o que não somos. Uma parte de nós é sempre esse sonho que nos habita. Vem comigo pastorinha.

~CC~

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Trivialidades


Entrei dentro da escola e senti frio, há muito que o aquecimento se avariou e não há dinheiro para o arranjar, as noites geladas arrefecem o edifício e as horas de sol não chegam para o aquecer. Sentia os alunos arrepiados, sentados quietos nas cadeiras, apesar da conversa ter sido boa.
 
Saí da escola às 19h e era já noite no parque de estacionamento que fica praticamente no meio do campo. Senti frio. Depois vi a lua enorme e redonda, muito baixinha, quase podia tocá-la. Pensei que se pudesse representar-me quando me sinto amada, me desenharia igual a ela.
 
~CC~

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Incorrecta a vida


Oiço a toda a hora na boca dos professores essa acusação sussurada: eles são de famílias destruturadas. É uma coisa  que só não me tira do sério porque respeito muito os professores, por ter consciência da enorme dificuldade do exercício da profissão. Fico a pensar nas famílias deles, se todos as têm certas como diz a norma e, se mesmo que assim sejam, se respiram, se são famílias que respiram e fazem respirar. Depois penso o quanto gostaria de dizer-lhes que sou orgulhosamente produto de uma dessas famílias impróprias para a escola mas que já fiz a escola toda (contámos este fim de semana - tenho 28 anos de escola).
 
A matriz normalizadora nem deve ter neles a sua origem mas sim nos meus queridos colegas psicólogos, afinal os maiores peritos da classificação humana, piores só mesmo os psiquiatras.
 
Foi por isso um festim de prazer ver uma família que não é apenas destruturada como eles a chamariam mas também "de risco" e outras coisas mais, ser afinal de uma cruel felicidade, o amor tem formas que escapam a todos os padrões. Se existe amor, quase tudo pode estar certo.
 
 É já ali num cinema perto de si, quando vir anunciado um filme intitulado "Bestas do Sul Selvagem", não hesite, maravilhe-se por a vida ser tão pujante e politicamente incorrecta.

~CC~

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Respirar


Vejo-as, estas flores dentro de mim, são um alento doce quando as coisas se tornam mais difíceis.
~CC~

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Coragem (I)


É linda sim, é linda porque tem esta coragem.


Roubei à Sem se Ver (mas nestes tempos de indignação já deve ser viral)

~CC~

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Mulheres vagueando


Tenho pensado nela.
 
Na mulher dentro do carro a tricotar na última sexta feira, pelas 9 da manhã. A mulher na mesma praceta em que os homens bebem minis à conta do que lhes vai saindo nas raspadinhas. Eles em grupo, ela sozinha. Teria entre os quarenta e os cinquenta anos e deve fazer parte daqueles a quem a retórica dos governos já não trata como desempregados, como se a longa duração do seu desespero os atirasse borda fora.
 
Observei-a disfarçadamente algum tempo enquanto fazia tempo para o meu encontro com o mediador de seguros. Tricotava, parecia um cachecol e era creme, um tom quase igual ao da cara dela, aos cabelos dela, aos olhos dela, uma cor triste.
 
Talvez as mulheres espalhem a solidão de uma forma diferente, elas ocupam-se, elas sentem menos culpa. Imagino que não faz mais nada aquela mulher, sai de casa como se fosse trabalhar, no carro que já fez dez anos e pelo qual reza por ser o que lhe resta. Sai em direcção a uma praceta qualquer, escolhe-as ao acaso, nunca a mesma. Liga o rádio e tira as agulhas, ao menos assim não está em casa, as paredes não se apertam no seu coração. Assim passam as manhãs.
 
~CC~


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Estes inquéritos...


Na sequência do acidente de viação, espero ansiosamente pelo questionário do mediador dos seguros, vão lá já quinze dias. Hoje finalmente fui objecto de inquérito. Ia respondendo pacientemente sobre o meu estado civil, existência e idade dos filhos, habilitações, etc...até que chegou à questão: a senhora tem empregada doméstica?

Percebem qual a relação da questão com o acidente de viação? Eu também não.

~CC~

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Papoilas amores



Vi hoje as primeiras papoilas, é sempre um dia feliz quando as vejo assim a gritar nos campos, tão bravias, tão meninas.

É talvez o único vermelho que me podia entusiasmar dado o enjoo da cor que enche as montras e os mil objectos mais ou menos ridículos expostos. Sei muito bem que todo o amor inclui uma dose razoável de absurdo e se alimenta de muitos sinais que são construídos socialmente. Mas deve haver um equilíbrio qualquer entre a recusa total destes rituais e entrada num território tão artificial como este. Não, não me apetece nada ir jantar a um restaurante com uma velinha pelo meio.

Assinalando a data com a cor bravia do meu sangue doce, se vires por aí uma papoila ou a lua a espreitar, pensa num beijo meu.

~CC~

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Abcedário caótico - T de Tristeza




Conheço-a tão bem, vem sem que a espere e inunda tudo com o seu manto espesso de impossibilidade. Aparece a dizer não onde antes havia só sim e a espalhar negro onde tudo parecia luz. A tristeza, esse lugar nenhum que vem assolar-me. Hei-de aprender a resistir à sua sedução maldita.
 
~CC~

A rádio



Era a caixinha nas tardes no meu quintal em Angola. A caixinha das vozes, um soar de sons mágicos que aliviava a solidão da minha infância. Não percebia quase nada do que diziam, era bailarina em todas as músicas.

Ainda hoje me faz sonhar algumas vezes.

~CC~

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Belo e difícil como o mar


Há uma alegria intensa quando entramos no território de um lugar amado e dele bebemos até nos embriagarmos de azul. O conforto de conhecermos alguém e de alguém nos conhecer elimina a artificialidade que tantas vezes está presente quando nos queremos apresentar a alguém, dispensam-se frases feitas e poses de espelho, somos quem somos. Ao contrário do que tantas vezes pensei posso gostar da mesma pele que toca a minha com a dose de eternidade com que gosto de caril, de manga, de sol. Não preciso do novo, preciso que o que é velho se renove. Não preciso de outro, preciso de que sejas outro e que eu, sendo a mesma, seja já outra. Ter um passado pode pesar ou ser um legado, um património de lugares vividos.
 
Este território amado que habito é, no entanto, tão belo e assutador como o mar. Gosto tanto de um banho salgado mas receio cada onda que se eleva mais com receio de que me puxe para baixo, que me tire o ar, me sufoque. E olho para aquela água salgada em que me banho e sinto-lhe outra densidade, talvez mesmo outra riqueza, mas receio que a ausência da pureza, da limpidez do mergulho inicial, me transtorne os dias a ponto de fugir do mar, de viver em terra seca, de me impedir de ser. Sopra ao meu ouvido a voz da maturidade e não sei se sou capaz de a ouvir e crescer assim, afinal toda a vida fui fiel a uma poética adolescente, parte integrante de uma moral que amo e não quero perder. Como fazer a síntese de dois mundos em mim?
 
~CC~

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Homens vagueando



O ócio devia ser a experiência de saber realmente o que fazer do tempo. Um saber feito sabor de cada coisa encontrada, vivida.
 
Estes homens que vi esta manhã, dois com cerca de cinquenta anos, alguns mais os esperando no café ao lado, são o contrário disso. Pelas 10h na papelaria de um centro comercial escuro e sombrio, compravam raspadinhas em série. Por cada euro ganho a mais do que gasto, bebiam uma cerveja. Nisto gastam as suas manhãs sem emprego e esvaziam a sua vida de qualquer sentido. Riam-se muito e estamos habituados a ver no riso um sinal de felicidade mas o riso deles era escuro e pastoso, um sinal de decadência de vidas que não consigo sequer pensar como eram antes.
 
Nas ruas desta minha cidade há muitos homens assim vagueando, saíndo de casa para palmilhar as avenidas, como último recurso para esgotar uma energia que se ficar presa se tornará uma bomba. Não choram como as mulheres, não ficam em casa a tratar da roupa, não imaginam ementas de um euro. Os estudos dizem-no: o desemprego masculino é duas vezes mais dramático do que o feminino. É verdade que isso pode ser sinónimo de uma sociedade onde os papéis ligados ao género são ainda o que são. Sabermos isso não resolve a vida destes homens presos à raspadinha e à cerveja. Este país que nos entristece é o destes homens demasiado novos para serem já gastos e velhos.
 
~CC~


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Do medo



Na Insustentável leveza do ser do Milan Kundera há durante todo o tempo um casal em desiquíbrio permanente, quando finalmente eles parecem alcançar a paz e sentimos que vão ser felizes, estão dentro de um jipe e na estrada, no momento seguinte já não estão neste mundo.

Eu ainda cá estou.

Não há contudo melhor forma de explicar o terror do que quando ele invade como uma nódoa um sorriso que tinha vindo a crescer mais e mais em mim.

Aconteceu-me.

Em plena estrada nacional a caminho do meu Sado, feliz como há muito não me sentia. O coração cheio daqueles miúdos que eu tinha conhecido naquela tarde, meninos e meninas ainda, mas já com tanta vontade de mudar as coisas, de ajudar, de fazer mais pelos outros. Dispostos a ser tutores dos mais novos, dos mais problemáticos, dos mais difíceis. Eu e o educador social ali com eles de corpo inteiro, ele meu parceiro e eu parceira dele.

Vinha a caminho de casa depois de uma semana intensa de trabalho e de conversas muito boas olhos nos olhos, essa história de quando os olhos finalmente aceitam olhar-se.

A noite estava escura e o trânsito intenso, permitindo usar apenas os médios. Um bicho grande e branco atravessou o meu caminho sem que o travão a fundo pudesse evitar o embate. Dispenso-vos da descrição de um momento negro. Estou aqui, o bicho não existe mais, o carro não sei se voltará a andar ou a ser o que era. Agora varro o medo dentro de mim e esta sensação de que as estrelas de vez em quando se conjugam para me tentar levar deste mundo.

Inesquecíveis todos os que estiveram comigo nesta ocasião e foram muitos. As certezas das coisas nascem nestes momentos de aflição profunda.

Aconteceu-me e foi a segunda vez que foi grave.

Mas quero viver, quero muito viver.

~CC~