domingo, 21 de dezembro de 2014

É assim..



Fomos buscá-la ao quintal de um amigo à Igrejinha, era uma maravilha, redonda e com cerca de 8 kg. Viajou até Setúbal e depois para Faro. Aí foi cozinhada lentamente e a dois numa tarde de domingo. Carreguei um bocadinho na canela. E aí está, tornada prenda para oferecer. 

Tomem lá um frasquinho e bom Natal.

~CC~


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Para ver o sol nascer



É sempre o mesmo e desde há tantos anos, é sempre o mesmo e cada vez mais intensamente. Nada que possa pedir a ninguém. Algo que dificilmente conseguirei ter, construir. Existe a música para o meu desejo. E agora sei cada vez mais que é isso. Como é uma segunda vida deve ser difícil. Mas eu queria ter simplesmente um lugar de mato verde para semear e para colher.

A casinha caiada de branco tem uma chaminé com a inscrição de 1847. A lareira ficou, é a mesma onde um casal se sentou anos a fio a fazer torradas em chapa quente. As mesmas que faço hoje. Sobrou o forno do pão, ainda o uso às vezes quando sei que vai chegar a família. O céu é grande, cheio de estrelas. Nos caminhos em volta as estevas cresceram até à minha altura e posso perder-me no meio delas. Junto à casa há alguns girassóis, uma mão cheia deles, gosto de ver como se viram em busca do calor, iguais a mim. Hoje é dia de ensopado de borrego na tasca da aldeia e por isso não cozinho, não cozinhamos. Logo bastará uma sopa com os legumes que colhemos com as nossas mãos. Depois disso vamos à escola velha que é agora a nossa escola, é lá que o lugar do cante às Quintas Feiras, os nossos ensaios de teatro são à Terça, às vezes também nos juntamos ao Sábado à tarde. Lamento tanto ter chegado tão tarde, devia ter chegado mais cedo quando esta dor na anca ainda não me incomodava tanto. Deixei de pintar os cabelos no dia em que aqui cheguei, não por me ter tornado velha ou querer sê-lo, mas porque me fundi mais com a terra e o céu. Houve tanta coisa que deixou de me importar. Levanto-me quase sempre muito cedo como antes acontecia, mas antes era porque as horas nunca chegavam e eu sufocava na azáfama, agora é...

Para ver o sol nascer.
~CC~

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Parado assim, em plena via.



O carro estava parado no meio da via, as portas fechadas, ninguém lá dentro. Parou pouco antes do sinal, pelo que era necessário contorná-lo para seguir em frente. A mesma marca de carro, o mesmo modelo que usei tantos anos, só a cor era diferente. Um coração que parou. Uma doença súbita. Ou simplesmente alguém que decidiu fazer um intervalo, foi-se embora porque aquele carro, aquela via, aquela vida já não faziam sentido. Penso em todas estas coisas várias vezes. Vou a conduzir e o meu coração pará, uma artéria rebenta no peito, na cabeça. Penso também em deixar esta vida assim de repente, interrompê-la, como quem sai num intervalo do cinema e já não volta ao filme. Veio a polícia e rodeou o carro de cuidados, avançavam para o analisar como se dentro dele estivessem mil bombas, um terrorista escondido, um corpo morto na bagageira. Um carro roubado talvez, mas que estranha forma de o abandonar assim em plena via.

Não saberei por certo quem era. Espero que o meu coração continue a bater, hoje dói tão estranhamente. 

~CC~

domingo, 14 de dezembro de 2014

Uma mão de vez em quando a tocar na nossa



Não sei se se aprende na escola, acho que não. Também não sei como certos passos nos levam a lugares mais certos do que outros. Sei que desde o primeiro dia que eles disseram: nós aqui somos uma família. Uma família de dentistas, todos fazem lá alguma coisa e até a mãe mais velha passa ali os dias, não a deixam em casa. O dentista pai vai todos os dias almoçar com ela. As filhas gémeas saem aos pulinhos felizes à hora do almoço. As empregadas, as únicas que não são da família, também parecem fazer parte dela. Fico a pensar porque parei ali um dia. Depois recordo melhor, foi em conversa com uma aluna minha que chegou a trabalhar lá, agradeci conversar com as alunas para além dos trabalhos, poder lhes perguntar qualquer coisa de pessoal e elas a mim. A minha filha diz que lá na universidade não sabem o que é isso. Os anfiteatros estão cheios, os professores não sabem os nomes deles, eu já sei os nomes de todos os meus alunos do 1º ano e claro, sei também os nomes dos do 2º e do 3º ano. Esta foi uma das razões porque escolhi o politécnico, essa coisa tão desvalorizada face à universidade.

Fiquei a pensar na palavra família, essa batalha interior sobre o que é ser ou não ser, ter ou não ter. No bom do assunto, no mau do assunto. Família cheira a máfia e a negócio escuro em combinação com negócio. Os Salgados, os Mello, esses. Mas pode também ser aquela coisa desfasada deste capitalismo feroz que tudo invadiu, a mercearia que passava de pais para filhos num bairro em que toda a gente se conhecia. Eu tenho essa tremenda nostalgia de um mundo em paz, não é a dimensão de uma aldeia pequenina, pobre e sem ambições, mas é nostalgia das coisas simples e verdadeiras, da solidez dos afectos. De nem tudo se mover por dinheiro, do profissionalismo não ser asséptico, inodoro, incolor.

Não sei se a minha filha aprende isso nas aulas de ética. Não sei se são assim por serem uma família. Certo é que o pai mais velho me dava a mão de vez em quando: está tudo bem, está bem? E ela dizia-me como se eu fosse uma criança: está tudo a correr bem, está tudo conforme o previsto. No fim deu-me um beijo na testa, ainda eu estava agarrada à cadeira, depois de quatro horas de intervenção. Não sei se tudo correrá bem agora mas o pavor que eu tinha já lá vai (sempre acordada, não é como quando nos colocam a dormir e só acordamos depois). O meu amor na sala de espera, a manhã toda. E de vez em quando alguém passava por lá para lhe dar notícias. Também esse cuidado, saber que ele entraria se fosse preciso, que elas o chamariam. É preciso dizer que da primeira vez que lá fui entrei em pânico e tive que me levantar várias vezes da cadeira, que o coração me saltava do peito, que estava em plena crise de claustrofobia, coisa que conheço muito bem. Como é que passa? Meus senhores, digam lá nos cursos de medicina, ensinem-nos, passa quando nos dão segurança e conforto. Para perceberem a vitória, pensem que eu sou uma pessoa que mal se senta numa cadeira de cabeleireiro e que não se deita numa maca para qualquer trabalho de cuidados femininos, vulgo depilação, sobrancelhas ou qualquer outra coisa do género, a simples ideia de alguém debruçado sobre mim, acrescentada do facto de ter de permanecer imóvel, gera-me pânico. Há que viver com certos buracos negros que nos habitam  e há gente que ajuda muito. 

~CC~




terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Simplesmente o medo



As coisas de todos os dias, o valor dessas coisas. Comer pão, nozes, uma maçã. Beijar, o sabor do beijo. Poder ir a um restaurante. Falar com pessoas, estar em público, sorrir. O medo de uma pequena coisa nos fazer perder tudo isso. A tensão que sobe e pode estoirar. O coração que se pode cansar de repente. O ar, sempre esse ar que me pode faltar. O pânico que pode tão facilmente vencer a racionalidade (sim, já tive essa prova).

Quando se aproxima uma intervenção cirúrgica, mesmo que pequena, aparentemente simples, tudo balança. Algo pode sempre correr mal, aqueles medicamentos que tomamos e que podem interagir de forma sinistra, as contra-indicações que parecem pendurar-se em nós como fantasmas. Os pensamentos estapafúrdios: quero os meus papéis todos queimados; se calhar estou a comer isto pela última vez, como fica desarrumado o meu gabinete. 

Nós e o nosso medo, esse bicho papão. Acresce em mim essa dificuldade de me entregar nas mãos de quem quer que seja, o toque, qualquer ele, a sentir como uma intrusão, os 20cm da bolha protectora tornados de aço ou o meu corpo feito de vidro. É difícil explicar pela racionalidade comum, há coisas que são de facto cicatrizes das quais nem nós conhecemos inteiramente os contornos, como se a nossa compreensão de nós próprios esbarrasse em fronteiras invisíveis. Depois a coragem, dessa só sabe quem sente o medo.

~CC~

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O medo dos outros



A dificuldade que temos em lidar com aqueles que são diferentes de nós, os que levam outra vida, o que querem outras coisas. Dois episódios levaram-me até esta estupefacção.

Há umas semanas atrás um arrumador de carros oferecia uma senha de uma hora a uma senhora que estava a estacionar o carro. Ela nem por nada a queria, avançava directa à maquina para tirar o seu próprio ticket, ele insistia que não queria nada para ele, que era um desperdício. Ela nem olhava para ele, dizia que não com a cabeça, olhos no chão, parecia ter medo. A cena passava-se de dia e num lugar muito frequentado, não num parque de estacionamento recôndito. O derradeiro argumento dele: Mas a senhora quer dar dinheiro ao governo? Acha que merecem? E ela nada, nem uma palavra. Para mim que falo, negoceio e barafusto com os arrumadores, a cena deixou-me atónita, ela parecia assustada com um ser humano que estava a oferecer-lhe uma coisa, podia não ser uma pessoa das mais convencionais mas era uma pessoa.

Há dois dias tive também uma mãe muito abalada no meu gabinete e estamos a falar da mãe de uma aluna maior de idade e a frequentar o ensino superior. Chorava o desinteresse da filha pelo mundo, as manhãs que ficava a dormir, o curso por acabar. Perguntei à filha onde se sentia ela bem, quando é que não se sentia desconfortável, em que circunstâncias se sentia feliz. Ela sorriu onde antes chorava e disse: no Verão, no Algarve, a ajudar na discoteca do meu tio. Não era a resposta desejável e a mãe condenou-a imediatamente mas era aquilo que eu queria ouvir: a verdade. Tentei sem êxito canalizar este interesse da jovem para o campo profissional com o pânico cada vez maior da mãe que abanava a cabeça, aturdida com a professora que lhe calhara que em vez de levar a filha de volta a bom caminho, ainda parecia desencaminhá-la mais. Certo é que a jovem disse que iria fazer o que a mãe quisesse.  E eu pensei para mim que iria demorar mais uns bons anos a encontrar-se.

Alinhadinhos e conformados, será este o nosso maior destino?!

~CC~