segunda-feira, 28 de abril de 2014

O leitor de dicionários



Hoje descobri. Foi uma passagem ténue num artigo sobre Gabriel Garcia Marquez. Dizia ele que o seu avó, com quem viveu praticamente toda a infância, era um leitor de dicionários. Acendeu-se uma luz sobre a estante paterna e sobre ele debruçado sobre os seus dicionários, preferencialmente ilustrados. Calhamaços imensos sem qualquer leitura que ele lia afincadamente como se fossem romances. Brilhou ali algures esse amor da minha infância e a extrema admiração que tinha por ele, um amor que morreu tão cedo e que só se iluminou um bocadinho quando ele estava prestes a deixar-nos.

Penso no único dicionário que tenho dele, encafuado na garagem, um dicionário por certo viajante entre Portugal, Angola e o Brasil, acompanhando aqueles seus dedos amarelos de fumo, os olhos já tão enevoados e o coração cada vez mais de passarinho. E não o teria guardado porque na voragem de deitar fora todo o lixo que ele acumulou anos e anos, não tinha já forças para seleccionar nada, para ter qualquer critério. È que dele vinham as melhores e as piores coisas e se as piores nos outros nos são toleráveis, nos nossos pais são terrivelmente dolorosas.

Mas sei que mora na minha infância um leitor de dicionários que um dia me leu histórias e me fez feliz, desse bocadinho de luz se expandiram todas as células que me fazem amar as letras.

~CC~


sábado, 26 de abril de 2014

Vermelho na écharpe verde água



Passei estes dois dias num congresso dito internacional mas na verdade ibero-americano-brasileiro, só se falou castelhano, português e português com açúcar. Uma viagem ao turismo e ao desenvolvimento local, coisas que interessam a uma pessoa como eu, que tem o defeito de se interessar por quase tudo.

 Parece estranho que alguém resolva festejar 40 anos do 25 de Abril desta maneira, tanto eles que o marcaram para esta data, como eu, que me deixei ir na conversa, mas na verdade a festa só esteve no horizonte. 

O mais singular foi o espaço do congresso, uma quinta ribatejana, traços claros de uma aristocracia rural que vive em torno do cavalo lusitano, muito mais do que um simples cartão turístico, de facto a vida para quem neles monta e para quem deles cuida, o usufruto e o cuidado como traços distintivos de classe social. Dantes eu chamava-lhes as tias rurais mas depois deste congresso percebi melhor a profundidade do fenómeno, o culto do touro e do cavalo como mais distintivo de classe do que ter um ferrari ou frequentar os restaurantes do Guincho. São outros modos de se dizer quem se é. Tudo parece ser mais sério e sentido do que em Cascais, considerando Cascais o expoente das tias (estou longe de saber se o é realmente).

Nas ruas nem sombra de festa, ninguém com um cravo posto na lapela, nem um palco na rua, apenas a quietude do feriado, os restaurantes fechados, o café central cheio. Na quinta, alguém que conheço resolveu colocar cravos no arranjo floral perante a indiferença da organização, a mesma pessoa que me deu um para colocar na minha écharpe verde água, ficou muito bem e andei assim todo o dia. Faltou-se sempre alguma coisa, finalmente à noite fui ver uns miúdos a fazer teatro e a peça evocava remotamente o fascismo, fazia-o bem, misturando alguma modernidade e o quotidiano dos adolescentes. Mesmo assim soube a pouco, mas se calhar em qualquer lado me ia saber a pouco, porque nos falta algo para que esta festa se possa sentir com a alegria desejada. E este "algo" não é fácil de dizer o que é.

~CC~




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Quando vale a pena...



Um bando de miúdos de (quase) rua, abrangidos por um programa que visa criar-lhes alguma esperança. Foram esses mesmos miúdos, os suspensos da escola, os que aterrorizam colegas e professores, os que são incapazes de estar quietos, que escutaram o velhote antifascista, calaram-se nas lágrimas da senhora que o acompanhava, levantaram o dedo para fazer as perguntas que surgiram muito além do guião que levavam. Quiseram saber o que é que ser antifascista e o que é resistir hoje. A política veio poisar ali no meio dos miúdos de 13 anos, vulgarmente apenas interessados em Telemóveis. E eles questionaram também: diz para estudarmos mas depois temos que sair do país...(os miúdos de 13 anos já dizem isto).

Impressionaram-se com o sofrimento que foi uma família inteira presa, espantados por uma criança de dois anos poder ficar numa prisão e aí crescer. Aí a voz do velhote embargou-se de emoção porque diz que aquele filho ficou para sempre marcado, contido, não diz mais.

Às vezes vale a pena ser a orientadora destes estágios, vale a pena falar, ser escutada. Trouxe dois cravos de papel para casa, muitas pessoas levaram outros que eles lhes ofereceram na rua. Mas querem saber: houve gente que os recusou, mesmo numa cidade dita vermelha como esta.

~CC~

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Este país não é para velhos (também não é para novos mas isso é outra conversa)



Mais uma manhã na loja do cidadão. Para determinados balcões a fila é de horas, talvez o tempo de espera mais ridículo seja o para receber o cartão do cidadão, esperar horas para simplesmente nos darem um cartão. A princípio corrijo trabalhos de alunos mas pouco a pouco a concentração esvai-se. O motivo maior são os velhotes perdidos, eles não sabem escolher a senha adequada e muito menos percebem a mecânica dos números no écran. Ainda por cima deixaram de dizer os números em voz alta, há apenas uns apitos absolutamente irritantes com uma cadência infernal, uma vez que são indicativos de todos os serviços. Fui ajudando os velhotes em irritação crescente, não com eles, mas com a inadequação do sistema aos mais velhos, com a nula preocupação com eles, com o desprezo a que são votados todos aqueles que não nasceram nativos digitais. Mas não ficou por aí. 

Um dos velhotes perguntou-me como é que dali ia para o centro de emprego, queixando-se que era do Poceirão e nada percebia da cidade. Expliquei-lhe que podia ir a pé, era perto. Mas ele não queria ir hoje, disse-me que tinha que ir todos os dias a partir do mês de Maio, por causa do curso. Que diabo pensei eu, curso....dizia ele que era um curso de enfermagem e eu lá lhe expliquei que não podia ser bem isso. Consegui entender que era um curso de primeiros socorros. Ora garanto-vos que este mesmo vellhote não conseguiu tirar a senha, nem perceber como funcionava o sistema de chamada, foi-se colocar ao lado do senhor que atendia, embora lhe faltassem mais de vinte números para ser atendido. Como poderia ele socorrer alguém? É assim o nosso país, obriga-se um assalariado rural de mais de 60 anos a fazer um curso de primeiros socorros na cidade mais próxima que dista pelo menos uns 15km da terra dele. E que curso? Algo que não lhe diz absolutamente nada.

Pobres velhos. Os mais novos não estão melhor, apesar de tanta formação de empreendorismo. Há umas semanas atrás encontrei uma ex.aluna minha, já ia no terceiro curso de empreendorismo, emprego é que nada.

~CC~






sexta-feira, 18 de abril de 2014

Também eu




Também eu cresci com os livros de Gabriel Garcia Marquês. Li em transe no final da adolescência os cem anos de solidão e perdi-me totalmente entre a genealogia das suas personagens de assombro, inteiramente presa dos odores que os corpos soltavam e dos bichos que transgrediam todas as formas conhecidas, creio ter sonhado muitas vezes com as formigas gigantes que vinham comer as crianças pequenas, tremendamente parecidas com as da minha própria infância. Anos depois, tantos anos depois, em Moçambique, olhando para um formigueiro maior do que eu, donde saiam formigas gigantes, tive a certeza de que tudo em cem anos de solidão era verdadeiro. Cresci até doer com todos os outros e nunca mais deixei de acreditar que todos os amores deviam ser gigantescos como no amor nos tempos de cólera, quis ser amada toda a vida, por toda a vida, como aquele homem faz com aquela mulher. Os corpos já velhos na busca de um prazer que é aquele das peles amarelas pelo tempo e é o da juventude no fulgor que não tiveram. Voltei a cem anos de solidão já adulta e não o li com menos espanto, capaz agora de usar outra racionalidade e ler nas entrelinhas.

Também eu sinto e digo também eu por ler e ver por toda a parte o desgosto desta morte, afinal ele podia bem ter encontrado uma erva mágica capaz de lhe dar eternidade, continuando a trazer-nos coronéis mansos e viúvas alegres e a voz do povo, sempre tão dorida, sempre tão capaz de cantar.

Ficam os livros, estas palavras que podemos ler e reler sempre, que outras e outras gerações podem vir a amar como nós amámos, amamos.

~CC~




sexta-feira, 11 de abril de 2014

A palavra (saudade)



Concentro-me nas vantagens. O sofá só para mim. O jantar como me apetece (arroz de cogumelos com bacon e coentros). Quase uma semana sem ir às compras (o que tenho no armário e congelador só para mim chega-me). A Televisão tem mais do que apenas o canal foxlife. Não há chávenas espalhadas por todo o lado, nem malas paradas no móvel de entrada, casacos jogados por cadeiras. Não toca a toda a hora o sinal de mensagens, não há conferências diárias com as amigas em alta voz, telefonemas prolongados com o namorado. A casa está tranquila. Tudo está tranquilo. Pensado bem tranquilo demais, quase vazio. A voz dela ao Telemóvel parece alegre, segura, duvido que tenha saudades. As saudades são uma coisa de mães, nem têm nada de racional, é como se nos faltasse mesmo o cheiro da cria. Cabe-lhes sacudir-nos para não nos tornarmos demasiado piegas. Depois chegará um abraço fugidio. 

~CC~

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Surreal



Há uns meses atrás o meu centro de saúde escreveu-me a dizer que se não os contactasse iriam banir-me da sua vasta lista de clientes, uma das muitas clientes anotadas como "sem médico", ou seja, sem médico de família atribuído. A razão era simples, há mais de três anos que não ia a uma consulta. Portanto atenção a todas as pessoas saudáveis, arranjem qualquer coisa de que se possam queixar.

Resolvi contactar o dito para lhes rogar que me deixassem continuar a ser fiel ao serviço nacional de saúde. Foi fácil, a senhora atrás do balcão era uma balzaquiana simpática que me chamou de "querida" (não, não era brasileira) e comentou que eu não parecia ter a idade que o cartão do cidadão lhe mostrava (começou bem). Depois de reinscrita devidamente, disse ao que vinha. Queria um atestado médico para renovar a carta de condução. Ela torceu o nariz assim que finalizei a frase e retorquiu que não podia ser. Ainda pensei que devia ser como com aqueles seguros de saúde que só funcionam ao final de muitos anos de adesão. Mas não, simplesmente os médicos tinham decidido que não passavam aquele tipo de atestados. Ainda matutei no porquê mas ela já só me respondeu para eu ir ao médico privado ou a uma escola de condução que lá passavam e era muito rápido (vá querida, vá, desampare a loja). Estão a ver, vamos a um centro de saúde que nos escreve a dizer que não o frequentamos e quando lá vamos dizem-nos para ir ao sistema privado de saúde.

País surreal este!

~CC~

terça-feira, 8 de abril de 2014

Cidade-Bairro



Entro no restaurante da senhora de bigode que assa o peixe e cumprimentam-nos, ela conhece-nos e a empregada também, pergunto-lhe se correu bem a viagem à terra e exprimo gosto por a ver de volta.Vou ao cinema e à saída dizem-nos até à próxima. Passo pela loja dos telemóveis e o miúdo que atende pergunta-me se estou bem. No self-service vegetariano há prendinhas para os clientes no aniversário e recebo uma. Amanhã tenho uma reunião lanche almoço no moinho de maré, conheci a gestora há menos de um ano mas já podemos reunir assim, em clima informal na paisagem de estuário. Há qualquer coisa aqui, alguns lugares são capazes de nos fazer isto e outros não. 

Nunca fui de lugar nenhum, nunca tive aldeia, uma terra. Sentir-me de algum lugar é uma coisa nova para mim e sinto por isso um gosto que grande parte das pessoas não deve sentir, nem perceber. E ao mesmo tempo que sinto a paz que este lugar me deu nestes últimos anos, atormento-me com a possibilidade de tudo se poder desmoronar de um momento para o outro. Olho para a minha escola e sinto que ela pode ter o destino das estações de comboio que vemos por aí mortas na paisagem. Sim, as escolas também podem fechar, morrer. Deixar este bairro-cidade será mais difícil do que foi deixar outros onde simplesmente morei. Lutaria por tudo isto com alma mas esta luta não existirá sem colectivo e o colectivo tarda.


~CC~

domingo, 6 de abril de 2014

sábado, 5 de abril de 2014

A palavra (amor)



Há dois dias fui especialmente àquele supermercado que tem a marca branca dos cereais que eles gostam, os únicos que comem com verdadeiro gosto. Só fui lá para os comprar, comprei a marca de um e comprei a marca do outro. Comprei uma para mim que nunca tinha provado, na verdade eu gosto mesmo é de pão, um bom pão alentejano, algarvio ou de centeio. Levei anos a fio a comprar o único sumo que ela bebia, até que um dia me disse que não comprasse mais, tinha enjoado. Tenho uma máquina de cápsulas mas cá em casa há café do que ele gosta para fazer na cafeteira. Para ela há chocolate de leite e não chocolate preto. Mimá-los com estas coisas é fácil, são os nadas quase tudo do amor.

~CC~

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Adeus ao Jorge



Muitos poderão escrever sobre o Jorge homem e sobre o Jorge escritor, eu apenas o conheci na blogosfera, o seu cheiro dos livros (http://nemsemprealapis.blogspot.pt) era obra pública de um amor desmedido às letras, não só reconhecia a obra literária dos outros como traduzia com rigor e precisão. Por causa dele comecei a espreitar os nomes dos tradutores, esses homens e mulheres sombra mas que são fundamentais à obra de um escritor. E os seus textos de prosa poética são lindíssimos, nunca teve, contudo, o reconhecimento merecido, não sei se era por isso que emergia alguma amargura e crítica ácida ao meio literário português. Não sei se tinha toda a razão mas parte tinha com toda a certeza. Os netos gémeos eram um orgulho para ele, mostrava-os ao seu colo, mostrando um ser humano doce e especial.

Apareceu um dia a comentar na minha Ardósia Azul e gostei logo dele, os comentários eram sempre únicos, delicados, às vezes desafiadores, mas sempre inteligentes. Perdi-o quando comecei a escrever na Rua da Índia mas um dia descobriu-me.  Tenho pena de nunca termos combinado um café na praça do Príncipe Real, um dos seus lugares de eleição, tão bonito, tão boémio. Atravessei a praça tantas vezes ainda adolescente, de certo que o Jorge já lá tomava café e fumava um cigarro.

Tinha como eu um grande amor ao sul, ao sul real e ao sul simbólico no que ele tem de azul revolucionário. 

Um abraço Jorge.

~CC~

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Buraco negro




Uma coisa que nos falta, falta-nos naquela hora, naquele momento.

É consciência da nossa solidão no mundo. Pode passar mas ficamos a saber como é e parece que nada poderá voltar a ser como antes. Fica só a falta no lugar de tudo e o seu poder de absorver toda a luz.

É como saber o que é o pânico, não se esquece mais.

A solidão, o pânico, deve ser assim o pavor dos astronautas diante de um buraco negro.

~CC~


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Bichos e homens



Todo este rio à minha frente. Não vejo os golfinhos, mas consigo imaginá-los no estuário.

Quando nos candidatamos a alguma coisa é um teste à rejeição, a perder, a constatar com clareza que outros são mais preferidos, mais apreciados ou talvez mais amados. Nunca fui de me candidatar a nada, penso que o receio da rejeição esteve sempre implícito. Nunca me deixei de sentir a estranha, aquela que vem de fora, aquela que receiam por catalogarem como uma intensa formiga.

Se me soubessem aqui tão cigarra a olhar o rio, a cantar, a desejar a Primavera toda.

Foi ali mesmo no estuário que os golfinhos mais novos mataram a cria mais recente, são assim os bichos, os homens são bem mais subtis.

Acho que já aguento a rejeição, cresci, fortaleci-me, tenho rugas fininhas no canto dos olhos.

~CC~