terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Desejar



A palavra desejar só tem um s.

Os velhotes costumam nunca se esquecer dele, já nós, mais novos, nem tanto...e quando muito novos até nos parece ridículo desejá-lo.

Mas de todos os meus desejos esse s que dantes era trivial e às vezes até me esquecia dele é agora tão mas tão grande. A consciência plena de que sem ele, sem a palavra que por ele começa, nada mais existe e é possível.

Pois a minha lista para o novo ano é desta vez bem pequena e só tem essa palavra de cinco letras começada por s. Ao contrário da maioria dos desejos pelos quais nós próprios podemos fazer muito em vez de esperar que aconteçam, eu posso fazer alguma coisa, mas não muito. 

Vou tentar esse pouco com muita força.


~CC~









sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Abraçar


Como vos dizer da infância.

Todos os natais da infância foram imensamente felizes. Por estar calor, pelos churrascos com piri-piri, pelas árvores da rua enfeitadas com cores, todas as cores possíveis. E o pai natal ia a África. O menino jesus, esse era mais distante, não nos visitava e missas do galo não combinavam com a roupa leve, nem tão pouco com as cervejas geladas que os adultos bebiam.

Soube pela primeira vez que o Natal podia ser também triste quando o passei pela primeira vez em Portugal. A casa despida, os colchões no chão, uma mesa pequenina de fórmica, os nossos haveres a caber todos num canto, a pobreza, o abismo. E o pai longe, muito longe. Mas foi a tristeza que me ensinou a procurar a alegria. Tudo aconteceu nesse Natal. Resume-se aí a batalha de uma família inteira: uma mãe, quatro filhos. Chegou uma caixa do outro lado do mundo com enfeites natalícios, lindos e maravilhosos enfeites. E mesmo sem árvore, enfeitámos toda a casa, colámos fitas nas paredes e pendurámos bolas onde era possível. Tudo se assemelhava a um carnaval natalício mas foi nesse vermelho dourado que rimos. Se calhar também chorámos. Nunca me esqueci daquele Natal, tenho dele uma cicatriz interior. E quando olho hoje para as cicatrizes que a minha pele tem das últimas cirurgias, vejo como elas não são nada quando comparadas com a outra,

Desde aí que basicamente só tenho procurado e valorizado uma coisa a cada Natal; tentar que os laços não se deslacem, que a cola não descole, que alguns sabores permaneçam, que os abraços aconteçam.

Abracem alguém e sintam que é tudo o que precisam.

A cada um de vós um abraço também.

~CC~







sábado, 16 de dezembro de 2017

Isto sim




Isto sim, é música para crianças (apesar deles terem dito que não a pensaram como tal e se calhar por isso mesmo). Confesso que à excepção do cancioneiro tradicional, tenho uma especial embirração com as canções feitas para crianças, a maior parte trata-as como patetas.

~CC~


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A sociedade dos magros



Oiço-os com frequência: estás tão elegante! Quase sempre sorrio, tranquila nos meus 44 quilos, sem dizer nada. Que tenha passado do M/L ao S e passado a encarar com alguma estranheza o meu próprio corpo não lhes diz respeito. Não sofria muito antes com uns quilinhos a mais, não sofro agora muito com uns quilinhos a menos. O corpo é importante mas é muito mais o que vive lá dentro.

Hoje, contudo, um colega foi longe de mais, afirmou; nunca estiveste tão elegante, olha que há males que vêm por bem! Não pude deixar passar em branco tal disparate. E respondi-lhe que preferia não ter tido a doença e ter os quilinhos a mais. Mas fiquei a pensar neste enaltecimento constante da magreza, tão paradoxal com os milhares de páginas ocupados a falar de comida, os canais dedicados à gastronomia e o índice de peso da parte ocidental da humanidade sempre a crescer. E a pensar no sofrimento, não só dos muito gordos mas mesmo dos mais gordinhos e gordinhas, e sabemos que parte da responsabilidade nem sempre é deles, há pessoas a comer o mesmo com resultados muito diferentes.

O meu corpo está magro mas não está bonito e disso tenho plena consciência, foi com esforço, talvez muito mais esforço que este ano me enfiei num fato de banho para ir à praia. Aliás não sei se os corpos magros são, só por isso, belos. Também não são necessariamente saudáveis os corpos magros, sei agora o quão difícil é estar sentada muito tempo, como dói esbarrar nas coisas, como custa pegar num saco mais pesado. Sinto os meus ossos à flor da pele, sobretudo os das costelas e das clavículas e gostava, como antes, de os sentir mais resguardados por uma camada protectora. Que sabendo a razão pela qual eu perdi peso as pessoas possam elogiar-me como se eu tivesse feito uma dieta maravilhosa é espantoso. Algumas moderam-se e dizem simplesmente que estou bem assim, que não me preocupe, que tenho bom aspecto, é uma nuance que faz toda a diferença.

~CC~



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Não perder o rumo


Aqueles olhares cúmplices e amigos que se vão tendo no interstício já célere dos dias, uma voz que chega, um sms de cuidado, são esses que se por um lado reconhecem a minha condição de fragilidade, também me dão ânimo para prosseguir. Esta semana uma dor desconhecida veio atrapalhar um bocadinho a vida, dantes não ligaria, agora qualquer dor se assemelha a um possível regresso do bicho mau. Foi passando, ainda espreita às vezes.

Espero não me esquecer que posso parar a meio da semana, simplesmente desligar e ir jantar e ver um filme com uma amiga, como fiz ontem. São coisas assim que não posso voltar a perder.

E a capacidade de furar o esquema da rotina para marcar um passeio, seja longe ou perto.

Fiz pequenas mudanças na minha vida, desenhando mais e outras prioridades e luto para não perder esse rumo.

~CC~

domingo, 10 de dezembro de 2017

Em acumulação


Escrevo a lista antes de ir às compras para não me esquecer de nada. E não esqueço. O pior é o que trago a mais. 

Coisas que acumulo: coentros, hortelã, tomate, espinafres se for ao mercado de rua. Se for ao supermercado: sacos do lixo, pasta de dentes, iogurtes. Se for à loja biológica: chá de perpétua roxa, manteiga de amendoim, bolachas de aveia. 

Quando vou guardar as coisas e percebo que as tenho em duplicado, fico aparvalhada. Depois rio-me e penso: estas coisas fazem-me mesmo muita falta.

Tenho que escrever uma lista ao inverso: o que não é preciso comprar.

~CC~

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Num gigantesco e agora global reality show


O homem vive num gigantesco e agora global reality show. Quando nenhuma luz, nenhuma controvérsia, nenhum conflito o atira para a ribalta, ele definha, deprime, inquieta-se. E assim que o mundo se agita à sua volta ele rejubila, cintila, ri. Trata-se de alguém contaminado pela patologia da fama à superfície, da conquistada na espuma dos dias, no vazio das lantejoulas, na miséria da alma, desses que são alguém por terem um foco sobre eles a incidir mas que não são absolutamente nada quando a luz se apaga. É por isso preciso que a luz esteja acesa em permanência, quando não, há que atear incêndios, provocar tempestades, imaginar guerras, diabolizar povos. Costumamos rir destes loucos (e/ou condená-los) quando eles estão em países pequenos e sem poder, mas o que fazer agora que a loucura está instalada no (talvez) país mais poderoso do mundo?

 ~CC~


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Cinco mil e um



Este concelho tem só cinco mil habitantes, disse ele, que vive ali perto desde sempre. Estamos no Alentejo central, interior. Há vinte anos asseguro-vos, vi estas ruas cheias. Por aqui há um incêndio sem fogo há muito tempo, as altas temperaturas lambem a terra e deixam crescer pouco verde, apenas os sobreiros resistem a (quase) tudo, as pessoas foram desaparecendo pouco a pouco. Como é que tanta beleza pode ser deixada assim ao abandono? Andamos pelas ruas da vila e metade das casas estão fechadas, muitas delas à venda, outras nem isso pois são vítimas de batalhas intermináveis entre herdeiros. É como se a cada esquina estivesse uma coisa única prestes a ser abandonada: uma prática artesanal milenar, um bolo ou um salgado que só ali se fazem e há muitos séculos, uma roupa que se adaptava ao clima, um modo de falar. O teatro está em reconstrução e fixo-me nele, candidataria-me a ser a cinco mil e um, caso pudesse tomar conta dele.

~CC~