sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Verde esperança





Que desejos tinha eu em criança? Com o meu parco conhecimento do mundo desejava coisas simples. Desejava que o meu tio me trouxesse um chocolate da TAP de todas as vezes que o seu avião chegasse. Que quando o meu pai chegasse a casa me pusesse no colo e me contasse uma história. Que o meu vizinho do lado quisesse sempre brincar comigo. Que a minha mãe deixasse as meninas da escola virem apanhar as mangas ao meu quintal. Que os meus irmãos mais velhos me deixassem andar por perto. Que as minhas amígdalas não voltassem a inchar doentes, quase me impedindo de respirar. Que a minha bola de sabão, soprada na cana do mamoeiro, fosse cada vez maior sem se rebentar. Nunca mais consegui querer estas coisas tão simples. E às vezes gostava. Assim como na canção " leva-me ao jardim, mostra-me numa flor, o verde esperança".  Só isso para 2019, ter sempre alguém que me possa mostrar o verde esperança.

~CC~





sábado, 22 de dezembro de 2018

A outra família



Acho que já passou o tempo em que a nossa família era apenas aquela que tinha connosco laços de sangue. Os outros laços avançam e ganham terreno, ainda bem, pois essas outras famílias são uma opção.

Eu tenho uma família blogosférica. São aqueles que me fazem falta, que visito com frequência, que também passam às vezes nesta rua, quer deixem ou não os seus vestígios, se calhar alguns deles nem nunca passaram por cá. Depois há aqueles que também espreito, com menos frequência, mas dos quais gosto, esses que me perdoem por não lhes deixar já um presente, quem sabe um dia entram no meu coração e ficam por cá a morar. Às vezes basta um post para os colocar na barra dos favoritos. 

Envio-vos assim os meus presentes, sem qualquer ordem de importância ou prioridade:)

Para a Miss Smile um pacote de chá de botões de rosas, pois as histórias dela chegam sempre com perfume.
Para Xilre, " Aos ombros de Gigantes" de Umberto Eco, porque, como o autor, nos faz sempre pensar mais além.
Para a Alexandra, qualquer um de Elena Ferrante, pois não há escritora que fale tão bem das pessoas com pipi.
Para a Testisq uma caixa de filmes do Woody Allen, pois é corrosiva mas também ternurenta como a maior parte dos filmes do autor (sendo que o meu preferido é a Rosa Púrpura do Cairo).
Para a Isabel, o livro Génesis, de Sebastião Salgado, pois escolhe a dedo e muito bem as fotos com que nos traz as suas palavras. Imagino este livro na casa dela, em cima de uma mesa "fora da caixa".
Para a Teresa, escolho bilhetes para a próxima festa do cinema Francês, no local que se encontre mais perto dela, pois acho é cinema que condiz com o ritmo das suas palavras (parece que os seus Atalhos do Campo passaram a ser só para leitores convidados, que pena!)
Para a Ana, o CD Mati, de Selma Uamusse, pois ela faz viagens sem sair do lugar e faz-nos viajar com ela.
Para Impontual, um bilhete para o "Concerto para Dois Pianos", pois não raro as suas palavras chegam com música.
Para a Susana, duas agulhas e umas lãs bonitas, pois assim pode ocupar o tempo nas suas viagens e ainda fazer camisolas quentinhas para usar na aldeia. Se não tiver jeito, está tudo algures na WEB.
Para a Laura, uma viagem à Argentina, para conhecer o melhor o Teatro Comunitário que por lá se faz, acho que se sentiria ainda mais inspirada.
Para o JVT, um concerto do Brel pelo Afonso Dias,  que tem vindo este ano a homenagear o cantor, sobretudo pelos Algarves.
Para o Luís, "Nadar na piscina dos pequenos" de Golgona Anghel, pois os poetas devem se entender uns aos outros e não sei se a conhece.
Para a Deep, vinho do Pico, pois tal como eu, tem a ilha cravada no coração.
Para a Luísa, a primeira mensalidade do JAT (Janela Aberta ao Teatro) para poder experimentar e ficar, caso goste.
Para o Eurico, vinho do Chile, para saborear com uma página de Pablo Neruda.
Para a Cuca, as fábulas do Luís das Novas Cartas de Marear.
Para a Helena uma assinatura para a temporada 2019 dos concertos de música da Gulbenkian, mas atendendo a que cá teria que vir todos os meses, substituir pelo equivalente em Berlim.

Um Bom Natal!

~CC~







quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Roma



Há um bairro a preto e branco no México que se chama Roma.

Fui lá no outro dia, demorei menos de meia hora a lá chegar e a voltar e custou-me a viagem pouco mais de três euros.

Saí de lá com os olhos marejados de lágrimas.

É uma das mais belas homenagens às mulheres e às crianças que alguma vez vi. Se pudesse escolher alguma imagem da solidariedade feminina seria esta, a de duas mulheres culturalmente e socialmente distintas que se apoiam num afecto contido, o ombro de uma e o ombro da outra acolhem à vez a dor da rejeição, da perda, da falta do amor dos homens. Uma e outra mostram-nos os seus olhos mais tristes, os seus sorrisos abertos, a sua luz a nascer no interior da sombra. Os filhos de uma são também os filhos da outra e aqueles meninos têm duas mães, a que os fez nascer e brinca com eles e a que os cuida, protege e canta canções.

O filme retrata os anos setenta no México mas não parece feito neste tempo, é lento, é demorado, tem muito silêncio, música espantosa que foge aos estereótipos sobre a musicalidade do país, pessoas que não costumam aparecer nos filmes. Tem uma mulher tão pequenina mas tão pequenina que é tão, mas tão grande.

E é feito por um homem, a mostrar que apesar dos homens do filme, há também homens bons e sensíveis, homens que naquele altura eram os meninos do bairro de Roma, ainda bem que aquele menino cresceu e fez este filme. 

Não deixem de ir a Roma, esta Roma.

~CC~







segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Dezembro (2)



Só há dois meses no ano em que tenho pena de não poder beber.

Em Agosto um gin tónico ao fim da tarde.

Em Dezembro um vinho quente com bagas de romã e um pau de canela.

No resto dos meses, passo bem, obrigada.

~CC~

sábado, 15 de dezembro de 2018

Dezembro



Dezembro estava a fugir-me entre as mãos, tão, mas tão rápido que mal distinguia os dias das noites.

A melhor coisa foi que naquele dia decidi que ia parar. Tu marcaste a massagem e combinámos ir as duas ao fim da tarde. O hotel ficava numa rua de Lisboa onde nunca tinha passado, uma rua coberta a amarelo de folhas de árvore, metade de cada uma delas ainda tinha folhas e a a outra metade já se tinha despido, uma rua linda de um lugar ainda sem turismo. Olhando cada bocadinho de árvore, pensava em como, ao contrário de nós,  as árvores se despem para enfrentar o frio.

O hotel era num palecete antigo, com jardins desenhados em múltiplas espécies e uma piscina no exterior e outra quente no interior, tudo coberto de uma patine antiga. Não fiz, contudo, o circuito de águas. Entrámos directamente para a tisana de laranja a que se seguiu a escolha dos óleos que seriam aplicados na massagem. Um deles tinha um cheiro doce e suave e ambas o escolhemos. Na sala a meia luz, de cortinas corridas e música suave, tive o meu primeiro susto: era demasiado fechado para eu poder ficar. Mas controlei-me e fiquei. Nunca tinha experimentado. Foi uma das melhores meias horas da minha vida, é um prazer diferente de todos os outros e este ainda não tinha sentido. Parece que o nosso corpo tem ossos e músculos e articulações que não conhecemos, mas tem sobretudo pele e a pele comporta um mundo de sensações.

Depois veio o repouso, o chá e os bombons de maracujá. Senti vergonha da minha felicidade, de me sentir tão estupidamente repousada e feliz. Num mundo que nos confronta com tanta coisa negativa compreendo a minha vergonha como parte da minha responsabilidade por nele viver, é como se não tivéssemos o direito de nos sentir assim, mas ao mesmo tempo penso que não posso mudar nada se não estiver bem, se não souber ser feliz com o que a vida me dá. Dezembro dá-me sempre esta sensação de um mundo dividido em dois, de uma humanidade a mostrar-se no que ela tem de melhor e pior.

E quando saí tinha começado a chover, as luzes iluminavam a água, as ruas estavam brilhantes e bonitas e já não tive tantas dúvidas, precisamos de felicidade para nos sentirmos fortes para mudar seja o que for.

~CC~




domingo, 9 de dezembro de 2018

Terapia



Vai a um mercado de rua ou, se não o tiveres, a outro, ou mesmo a uma mercearia.

Procura as maçãs casanova* e compra um quilo. Corta- as em quatro metades, com tempo, tira a casca se te apetecer, se não passa apenas por água. Saboreia uma a cada fim de tarde de Inverno. Depois conta-me do sabor.

~CC~

* Das únicas coisas que conseguia comer e sentir o sabor enquanto fazia quimioterapia, nunca mais deixei de as comprar.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Como um lagarto



Sou fácil de contentar. Um dia destes de sol de inverno e fico feliz. Mesmo que tenha que ir trabalhar. Qualquer intervalinho é um tónus de vitamina D, viro a cara para o sol e estendo-me interiormente como um lagarto.

~CC~

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Procura uma árvore


Quando te sentires só procura a companhia de uma árvore assim. Abriga-te debaixo dela e sente o modo como os pássaros fizeram dela uma casa. Verás que pode ser também o teu abrigo. Se procurares bem sentirás o coração dela a pulsar, coloca uma mão no seu tronco e outra no teu coração. Nessa conexão verás que o mundo vai muito para lá dos seres humanos.
Quando estiveres com amigos, se tiveres um filho ou uma filha, sejam eles pequenos ou grandes, leva-os até debaixo de uma árvore assim e ri com eles, ou cantem, ou comam alguma coisa ou façam tudo isso. Conheci um dia uma árvore como esta onde uma aldeia, depois uma vila inteira celebrava a sua festa. O carvalho assistiu aos meninos a crescer, viu várias gerações a tornarem-se homens e mulheres, aposto que encobriu primeiros beijos. Este Sobreiro estava tão perto de mim, infelizmente só se tornou visível quando decidiram divulgar a sua beleza ao mundo. Mas agora voltarei mais vezes para conversar baixinho com ele, confiar-lhe sorrisos e lágrimas.
~CC~

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Só mesmo do ar


É o excesso de vozes e de sentidos que me cala. São os dias de grande intensidade que me esgotam e não os dias grandes, de silêncio maior. Preciso da quietude para que a palavra nasça, se desenrole e me dê prazer. Dizia ontem uma poetisa, no seminário, que para ela a palavra era urgente, se não a fizesse nascer, não conseguia respirar. Eu só preciso mesmo do ar. Deve ser por isso que não sou poeta.

~CC~

sábado, 24 de novembro de 2018

Cinco, são cinco sentidos.



Às vezes ando com uma semana inteira com uma pessoa na cabeça. Amiúde penso que lhe tenho que ligar e também de a ver. A amizade precisa da mesma lenha que a lareira para se manter viva e quente.

É uma coisa que as pessoas fazem já tão pouco. A maior parte encontra-se numa qualquer plataforma digital e satisfaz-se com isso (não as nomeio para escapar à publicidade de que não precisam). Até a família já o usa para dar os parabéns. Compreendo isso quando há um oceano pelo meio ou uma estrada muito, muito comprida. É bom e compreensível nesses casos.

Eu preciso de ouvir a voz das pessoas, a maior parte das vezes as modulações, o tom, a altura, tudo isso me fala tanto quanto o conteúdo das suas palavras. Depois de lhes ouvir a voz também preciso de as ver. Os olhos delas, a forma como os desviam, os cravam em mim, olham a paisagem, sorriem com eles, tudo isso me diz mais do que o conteúdo das suas palavras. A verdade é qualquer coisa que me tem que chegar inteira e por isso as palavras não chegam, a pessoa tem que me chegar com um corpo e um rosto, por mais que goste e gosto muito de palavras. Uma pessoa inteira chega-me pelos cinco sentidos, preciso de todos eles para a amizade e para o amor.

~CC~

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O que conta é a pele que trazemos



Pela primeira vez em muitos anos tenho sido formanda em várias coisas e não formadora, tenho me sentado numa plateia a ouvir os outros falarem em vez de ser eu a falar. Já me fazia falta. Percebo que dar e dar e dar sem receber nos esgota. O nosso saber precisa de alimento e não é apenas um alimento de coisas lidas. Tem que ser um alimento de coisas vividas. E nas coisas que tenho procurado posso ter esse estatuto de igual a todos os outros. Ontem estive numa sessão de sociodrama ao lado de uma aluna minha e não fez qualquer diferença, há espaços em que os estatutos são feitos da pele que trazemos.

Nem a roupa, nem o Curriculum Vitae, nem o tamanho das coxas ou a cor dos olhos, o que importa é a pele que trazemos.

~CC~

sábado, 17 de novembro de 2018

Recado



De novo aquele lugar no horizonte. Não para mim, mas para alguém próximo.

Um lugar até onde as orquídeas podem ser sombrias. São Invernos muito longos os que se passam entre fios e seringas, máquinas de bip bip e aromas a químico. Lá, se não aprendemos a rir, começamos a morrer.

Seria apenas quase isto que eu teria (terei) a recomendar.

~CC~

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

O meu teatro comunitário



Às vezes é preciso que passe muito tempo sobre um acontecimento para percebermos que foi bom. Outras vezes sabemos quase imediatamente. Foi isso que me aconteceu com a oficina que frequentei de teatro comunitário. Foram quatro dias muito intensos e praticamente não houve fim de semana e preciso dele, mesmo quando trabalho não sinto o tempo completamente tomado como senti desta vez.

Acho que o meu bom é só meu. Não é um bom de quem venera quem o conduziu, de quem enaltece as qualidades do grupo ou endeusa o teatro como um novo altar. A minha solidão não precisa de ser ocupada, gosto dela. Não preciso de mais gente, de ter mais gente na minha vida e por isso não foi por isso que procurei integrar-me neste grupo. Reconheço o cimento, a alegria, o gosto pelo que conseguimos fazer. Reconheço que é bom nos sentirmos uma parte integrante de um grupo, mesmo que momentâneo. Mas não preciso das fotos, de entrar no grupo no FB, de trocar telefones. Uma maré é um vai e vem e depois termina na praia. Se fomos e viemos com ela, temos a memória do seu movimento, o seu registo na pele. O bom deles ficou em mim. Se nos reencontrarmos alguns ou no todo que seja natural, vivido e com cor.

O meu bom é mais a confirmação de um caminho já iniciado, já pressentido, já esboçado. É perceber o que gostaria que fossem os próximos anos da minha vida. É feito do que ainda não foi, do que ficou por saber ainda, o meu bom é um desejo mais adiante. O meu bom é afinal muito simples. É feito de confirmação. De saber mais uma vez que o teatro pode ser esse lugar para podermos contar histórias sobre nós e os nossos lugares. E que ao contar nos tornamos, como por magia, matéria humana de encantar.

~CC~






sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Descendo ou subindo pelo arco-íris (II)



Um novo amor, disse a mulher na beirinha dos cinquenta, a possibilidade de viver mais uma vez o amor.

Estudar o que sempre quis e não pude, disse a mulher que tinha passado poucos anos dos trinta.

Sair deste emprego, encontrar uma coisa que me faça sentido, disse o homem dos quarenta e picos.

Conseguir engravidar e gerar um filho até ao fim, disse a mulher quase nos quarenta.

Não quero nada, a sabedoria está em não querer, disse o homem que já tinha passado dos sessenta.

Tantos potes de ouro, a cada um o seu.

Pensar no meu pote de ouro era fácil, eu só queria vida, mais vida, mais anos de vida. Pensava nisso com certeza e sofreguidão.

Mas depois chegaram receios pelas vidas de outros e pensei melhor. A verdade é que por uma seguramente, duas provavelmente, talvez mesmo três pessoas até daria a minha vida pela delas. Não é um altruísmo tonto, pelo contrário, é até egoísta. Simplesmente a minha vida não faria sentido sem as delas. E assim se aprende a relatividade do que desejamos.

~CC~


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Descendo ou subindo pelo arco-íris



Nestes dias em que vejo o arco-íris, lembro-me sempre do pote de ouro que acreditava estar no fim dele. Toda a minha infância foi repleta de inocência porque chamar-lhe ignorância poderia ser demasiado duro. Quando não temos explicações para as coisas podemos inventá-las e era isso que fazia até a realidade me fazer sair abruptamente de tudo o que até aí conhecera e que na verdade era pouco mais do que o meu quintal. Acreditava, por exemplo, que os gatos, esses seres vadios e trepadores, facilmente escolheriam uma cor para subir e descer lentamente o arco-íris ou poderiam mesmo ficar a dormir numa delas. Mas bem vistas as coisas ainda tenho pensamentos mágicos, não obstante os mergulhos no caldeirão da ciência. Penso que no que poderia ser para mim o pote de ouro. O que seria ele para ti? 

~CC~

domingo, 4 de novembro de 2018

Dia dos mortos



O meu pai escolheu a véspera do dia dos mortos para morrer. A minha tia também. Ele, um homem autodidacta, viajado pelo menos por quatro continentes e residente em três deles, sábio, culto, mau feitio, doido por mulheres, casado três vezes, mais vezes em união de facto ou qualquer coisa semelhante a isso. Ela, uma mulher algarvia, casada uma única vez com o homem amado, insubmissa, mau feitio, com imensa graça na sua má língua do sul. Em comum, a solidão do fim. Consta que ela ainda teve muitas flores, não sei de onde vieram, morava num lar e apenas a filha a visitava. Ele, nem isso, sem flores, nem amigos, nem família, nem mulheres. Apenas e quase as filhas, as três filhas do seu primeiro casamento. Em comum, a profunda solidão do fim.

~CC~

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Anoitece no Outono



Com o frio chegou também o silêncio. Enrolo-me nele como numa manta, gosto dele. Encho a cozinha com o cheiro a maçã assada. Mais logo aquecerei a sopa intensamente verde, intensamente laranja ou avermelhada, gosto delas com cor.

Esqueço a dor no braço direito, a enfermeira disse que não podia doer, logo não dói. 

Tenho saudades. Essas sim, sem dor. São só a nostalgia do teu barulho, do teu desalinho. 

Desarrumo devagarinho alguns sonhos. Faço-o muito mais quando anoitece no Outono.

~CC~

domingo, 28 de outubro de 2018

Pela virada


Pela virada no país irmão!

~CC~

E um dia depois sabemos que não se conseguiu!

Talvez por isto...obrigada pela história.

~CC~


sábado, 27 de outubro de 2018

As pessoas assimétricas.


De ano a ano lá tenho que ir à Medicina no Trabalho. Não sei se os outros também vão com a mesma regularidade, parece que sim. Passaram mais de dez anos sem nunca nos chamarem. O médico do ano passado era um velhote surdo, não ouviu praticamente nada do que lhe disse, o que até foi bom. O deste ano era um jovem brasileiro e fez-me perguntas inusitadas para esta consulta de rotina. Mas até lhe achei piada, sobretudo quando disse que já tinha pedido para substituírem todas as cadeiras onde habitualmente nos sentamos pois não eram adequadas, ainda acrescentou que o Siza não perceba nada de mobiliário (sim, a minha escola foi concebida pelo Siza Vieira).

Mas o que gostei mais de saber foi que sou uma pessoa assimétrica. O meu olho direito vê abaixo da média (mesmo com óculos) e o meu ouvido esquerdo não ouve os sons graves, apenas os agudos. Por pouco disse ao médico que isso apenas acrescentava mais algo ao que já sabia sobre mim. Ao calçar sapatos e, sobretudo ao experimentá-los na sapataria, um fica sempre apertado enquanto o outro está bem. Tenho cicatrizes apenas do lado direito e umas ao centro, o lado esquerdo está direitinho. 

Dava-me jeito haver descontos para pessoas assimétricas porque como podem compreender não é fácil viver assim. Mas lá me vou arranjando, viro o ouvido direito para o som quando quero ouvir melhor os graves e uso o olho direito para ver melhor. Também chinelo um pouco com um dos sapatos mas o outro pé ajuda e hei-de encontrar um fato de banho (triquini) com uma abertura para o meu lado esquerdo para poder mostrar um bocadinho de pele sem cicatrizes. Pensei fundar o clube das pessoas assimétricas, querem pertencer?

Mas percam a vossa esperança se se julgam simétricos, por dentro parece que nada o é.

~CC~





quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Sacudo sombras



É dia de voltar.

Devia estar feliz, vou finalmente retirar o cateter da quimioterapia. Coloquei-o há mais de dois anos, foi a primeira de uma série de intervenções, ainda num hospital geral, fiquei num quarto muito pequeno com uma velhota com demência que a todo o momento me pedia para a levar para casa, ameaçava fugir. O bloco era também muito pequeno e ouvi os médicos a discutir antes de adormecer.

Desta vez será no meu sítio do costume, nada de assustador, em princípio uma pequena cirurgia.

Mas é assim que reparo nas marcas que não são as que tenho no corpo. É a rejeição do lugar, da bata, dos chinelos, das luzes, do bloco, da espera, do jejum das seis horas. Tento moderar o sentimento, o receio, extrair da memória dias infelizes, relembrar o quanto o optimismo foi o meu farol, pedir-lhe que não me abandone. Poderei usar decotes, ser menos cuidadosa com a escolha dos fatos de banho. Sacudo sombras.

~CC~


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Foi a isto que chegámos



Na mesa só havia carnes grelhadas e peixe grelhado. Mas como o restaurante era do tipo popular, brilhavam no centro duas travessas de batatas fritas. Ninguém lhes tocou. Depois levaram os pratos e houve aquele interregno até às sobremesas. E a senhora deixou ficar as travessas com as batatas fritas. E foi naquele momento entre uma coisa e outra, distraídos, que uma ali, outra acolá, nas pinças dos dedos, as batatas foram desaparecendo. Até que a senhora mais magra da mesa (não, não era eu, já não) comentou horrorizada: mas vocês comem batatas fritas!!!! E foi um limpar de dedos nos guardanapos, que tinha sido só uma, quanto muito duas, e que tão poucas nem podiam fazer mal, que nunca comiam, passavam "meses" sem. E eu ainda vejo a expressão de horror nos olhos dela, nem quero imaginar como seria se fossem  antes passarinhos fritos. Foi a isto que chegámos.

~CC~

domingo, 21 de outubro de 2018

Não vás depressa demais



Sabes que quando atravesso o Alentejo pelo Outono não posso ir muito depressa, mesmo que queira muito chegar a casa. Se a Primavera traz o deslumbramento da terra, o Outono traz-me o mais belo céu. As nuvens adquirem todas as tonalidades entre o branco e o negro e ainda se mancham por vezes de rosa. Ora se fecham totalmente à luz, ora se deixam trespassar por ela, criando jogos sublimes de opacidade e transparência. E as texturas variam entre o denso e o esfarrapado, em mil desenhos de configurações múltiplas, ali uma estrela, ali um urso, um quase rosto.  Vincet (Van Gohg) teria amado esta planície. Não vás, nunca vás demasiado depressa quando os lugares são belos. Faz o mesmo com as pessoas, demora-te nas que te encantam.

~CC~


quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Um segundo de angústia



São apenas aqueles segundos de um momento de festa. Os disparates que se dizem. A dificuldade que sempre tive em lidar com aquele tipo de chacota e picardia. Mas eles divertem-se. Sei que nada daquilo é a sério, é só uma forma de matar o tempo quando todos juntos sentados a uma mesa. Nada me é particularmente dirigido, nem me é dirigido aliás. A doença protegeu-me de muitas destas coisas, beneficio do respeito que se deve aos sobreviventes. Mas por uns momentos sinto um vazio e pergunto-me pelos anos, pelo tempo que ainda ficarei por ali e se o quero. Percebo que só em parte tenho o mesmo passado que os outros embora tenha estado no mesmo lugar que eles, uma parte de mim sempre esteve noutro lugar. Sei que o meu modo de viver bem sempre foi cortar com o excesso de imersão nos sítios, ligando-me a vários e não apenas a um. Mas agora que abandonei uma parte da minha vida profissional por não querer mais nem poder gerir mais do que um trabalho ao mesmo tempo, pergunto-me se aguentarei. Mas depois calo a minha pergunta, a angústia é um ruído mau para o corpo. E tenho de aprender a dizer umas parvoíces, todos dizem que faz bem e eu sempre fui uma pessoa demasiado séria. E além disso, vem aí a festa do cinema francês.

~CC~


domingo, 14 de outubro de 2018

Este estuário




Um estuário não é mar nem é rio, é um lugar híbrido que mistura doce e salgado, inaugurando assim um conjunto de outras hipóteses para a vida selvagem, essa que tantas vezes vive escondida dos nossos olhares. Este meu estuário é um enlace tranquilo do rio Sado com o oceano Atlântico, é tão belo que golfinhos o escolheram habitar. 

Querem agora que se torne maior e mais fundo para deixar entrar navios de grande porte, mais cargueiros, contentores pesados, sirenes a sério. Nada que não se consiga fazer atendendo ao retorno económico para o Porto. Há uns estudos ambientais a realizar, nada que não se consiga fazer aprovar. Há umas vozes de associações ambientalistas que irão protestar, meia dúzia que será fácil de calar. Meia dúzia a falar do perigo de perdermos a beleza destas praias de água cristalina e fria e de areia transparente, das alterações no habitat dos golfinhos, das lamas que serão depositadas em área de pesca artesanal, do volume pesado destes navios a navegar no estuário. Uma luta que parece pequena num mundo doente e a precisar de lutas maiores. Mas ainda assim uma luta digna, uma luta a que me junto. Este estuário é também o meu mundo, a minha casa.



~CC~

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Um escritor na minha biblioteca



Richard Zimler estava ali, a meia dúzia de metros de mim. Mais, estava sentado na biblioteca da minha escola a conversar sobre livros, sobre o penúltimo dos seus livros. Este homem escreveu um dos livros da minha vida, "À procura de Sana".

Pergunto-me porque gostamos de os conhecer, de estar perto deles, que nos assinem os livros. Logo nessa arte, a mais privada que há. Pergunto-me sobre o que nos acrescenta aquela hora que estarão ali, disponíveis para as nossas questões.

Zimler é ele próprio, vê-se que tem o seu grau de timidez incorporado na aparição pública. Sorri, agradece-nos a presença e gosta de falar dos seus livros. Da manufactura da obra, de como ela nasce e se constrói. É no entanto comedido, não faz de cada resposta uma palestra e não insulta quem pergunta, mesmo que a pergunta não seja perfeita. E não se martiriza, não fala da dureza do ofício, mas também não o engrandece como a melhor das artes. É um homem a falar do seu trabalho, como eu ou tu poderíamos falar do nosso. E é bom, é uma hora bem passada.

Porque o queremos conhecer? Da mesma forma que queremos conhecer alguém que nos interessa, que nos marca, que nos desperta, que nos abre horizontes. E no final fica-me a pergunta. E ele, será que também tem curiosidade em conhecer os seus leitores? O que levará de cada um de nós?

Certo é que o meu dia ficou melhor por ter um escritor na minha biblioteca.

~CC~







quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Freud e eu



Freud sabia muita coisa, ou pressentiu-a, já que hoje, tudo sujeito a prova científica, teria que suar as estopinhas para lhe aprovarem qualquer artigo sem umas estatísticas a preceito.

Sonho com um acidente em que o camião amolga toda a parte direita do meu carro porque uma mulher polícia me mandou desviar do curso que eu queria seguir, eu hesitei e ele não viu. Conseguir explicar o que se passou e que não tive culpa é quase impossível pois a mulher polícia desapareceu do seu posto. Acordo e continuo a discutir, a debater, a combater. E digo a mim própria que já estou acordada que não passou de um sonho e que não vale a pena continuar. Mas continuo. O camionista faz dois de mim e diz que não tem culpa. Ninguém pára, ninguém quer saber.  Ele preenche os papéis verdes e faz desenhos a explicar o acidente, quer que eu assuma a culpa. E eu digo que não mas não tenho papéis, nem canetas, nem nenhuma forma de desenhar. Já tirámos as viaturas do meio da via pública e por isso não posso chamar a polícia, constato que ingenuamente pensei que ele admitiria a culpa.

Nem preciso do Freud para saber o quanto isto traduz tantas coisas da minha vida. Só isto de ser uma mulher a polícia e dela se ter esfumado me preocupa, não tenho chaves de interpretação.

~CC~




segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Meu irmão



Eu enfiava os pés na areia enquanto sentia o vento a crescer na praia vermelha e o meu olhar se prendia no teleférico que cruzava os céus mas sobretudo nos morros que ladeavam aquela pequena enseada, onde as casas e casinhas de muitas cores e feitios se empoleiravam num engenho de natureza e humanidade. As favelas eram os lugares onde a vista do mar e do rio se desfrutava mais, estavam mais perto de Deus e sabemos como o Deus brasileiro é diferente do europeu, é um Deus que dança e ri.

Nesse tempo parecia que as favelas se iam transformar num imenso lugar turístico, a classe média emergente subia para lá comer nos botecos, perdendo pouco a pouco o medo e havia alemães e ingleses pasmados com os bailes de funky em nos terraços cimentados por cima das barracas cambaleantes. Falava-se em pacificação e não era apenas a miragem que hoje parece, havia esperança.

Esse Brasil que eu vi atrair os europeus e tantos portugueses jovens não era o país para onde fugiram os retornados que não aceitaram a descolonização (a esses, adivinho-lhes o voto). Esse país que eu vi em plena ascensão, no tempo em que o real subia na cotação dos mercados, organizava competições desportivas e mandava estudantes para a velha Europa para realizar mestrados e doutoramentos numa ânsia de qualificação da população, esse pais existiu, brilhou como uma estrela que nos iluminava e nos transmitia uma crença desmesurada nos nossos irmãos. Recordo como admirava o facto de haver um dia semanal de acesso gratuito ou de muito baixo preço à cultura, fosse uma ópera ou um museu. 

Por isso não entristeço apenas, há uma parte de mim que está consternada, chocada, perdida. Sim, eu sei, já havia a Polónia, a Áustria, a Hungria...e os EUA...mas este país fala a minha, a tua, a nossa língua, é nosso irmão. Sinto-me como se sentem os irmãos quando um deles nos vira as costas e segue sem olhar sequer para trás, é um amor a morrer.

Três semanas, apenas três semanas para poder recuperar o meu coração partido. Ou para ele se quebrar.

~CC~







terça-feira, 2 de outubro de 2018

O que falta?!



Tem sido um estranho início de ano lectivo, pois os meus anos têm esses dois andamentos, o civil e o lectivo. Sinto que parte de mim anda algures, nem sei bem onde. Terá ficado em África? Terá ficado ainda deitado na areia junto ao mar? Sim, acho que não completei totalmente o ciclo de férias. Ou soube a pouco. Acontece-nos o quê quando sentimos que as férias nos sabem a pouco? 

Não descobri exactamente em que reside a minha estranheza. Vou acumulando factores. Está demasiado calor. A noite chega mais cedo. A escola está irreconhecível por causa das obras e não há lugares para estacionar, uma das coisas melhores que tinha era haver sempre lugar. Os alunos gastaram uma semana nas malditas praxes. Também eles não me parecem estar bem de volta, ainda flutuam algures. Há demasiado luz e por causa dela fecham as janelas todas e passamos os dias na escuridão. Sinto-nos um bocado deslaçados, mesmo os que eram próximos. O comboio está em andamento mas nós não o estamos a acompanhar. 

Acordo sem saber muito bem onde estou, que dia é e o que tenho para fazer, tenho que perguntar-me isso logo cedo. Só falta perguntar quem sou eu. Fazem falta as transições, a mudança de estação, a primeira chuva.

É estranho que possa ser eu a pedir uma primeira chuva, logo eu uma criatura que adora o sol. Mas reconheço-lhe o papel iniciático, a marca da água. 

~CC~








sábado, 29 de setembro de 2018

Ela(s)



Era a história dela. Não, não era unicamente a dela.

Ela era bem casada. Tudo no lugar. Os dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A casa luminosa num dos melhores lugares da cidade. A carreira dele, brilhante. A dela, menos brilhante mas auspiciosa. As viagens amiúde. As férias sempre em bons lugares, primeiro da Europa e depois arriscando novos continentes. Ele trazia sempre um perfume ou uma jóia do seu agrado, sabia escolher. As famílias próximas sem grandes intimidades, uma linguagem partilhada de média/alta burguesia. Pequenos luxos sem ostentação nem novo riquismo.

Havia apenas aquele pequeno pormenor. De vez em quando ele tinha outras, pequenas paixonites. Ela via no tal brilho no olhar, no esmero para com o corpo, nas reuniões que sem aviso se tinham prolongado. Durava semanas, no máximo uns meses. Da primeira vez sofreu, das outras achou que já não sofria. Até um dia se olhar de frente no espelho do futuro. Quase a meio da vida e era aquilo, ia sempre ser assim. Criou distância do corpo dele, arrefeceu o dela. O que sobrava? A vida boa, certa, a segurança.

O que fazemos aqui, perguntou-lhe. Ele sorriu meio sem graça. Fez o que quase todos os homens fazem. Anulou a importância de tudo, realçou o amor que tinha por ela, trouxe flores. Não chegou a chorar, não podia simular tanta dor.

E ela fez as malas e saiu. 

~CC~







quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Miragem



Como é que podemos não nos conhecer?

É certo que passaram 25 anos e que eu para ela não seria mais do que uma professorinha em início de carreira, ainda à procura de uma identidade.  Só mais uma que ela orientou com a sua voz pousada, os gestos muito lentos, um sorriso sempre presente. Eu toda uma revolução que ela ajudava a conter, aproveitando, contudo, o que isso tinha de melhor.

Esqueço tantos nomes e lembrei-me imediatamente do dela.

Estava mais forte, mais velha, mas a serenidade era igual. Igual a elegância com que lia, com que punha e tirava os óculos, igual o modo como se virava para dentro. Era ela. Ou não era?

Não era porque não podia andar de comboio, sair nos foros de Amora, estar ainda assim tão bem, depois de 25 anos passados, ser ainda tão loura, ter os mesmos olhos de cor indistinta.

O meu medo de lhe perguntar, de cair no ridículo, do que lhe poderia dizer depois de tantos anos. Eu ali ao lado, calada, hesitante, em viagem no tempo.

A Lisboa em que nos encontrámos já não existe mais, eu nem dou já aulas a meninos e meninas, nem quero mudar o mundo todo, contento-me com uns quantos pequenos nadas. Eu devo ter a idade que ela tinha quando nos encontrámos.

Quando sai ainda lhe lanço um olhar mas ela desvia os olhos dos meus. Deixo-a ir, não sei se ainda terá aquela voz doce. Nunca tive mestres, nunca segui ninguém, mas admirei algumas pessoas. Esta senhora foi uma delas. Ou alguém parecido com ela.

~CC~

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O lugar



No meio da semana, antes de uma comunicação num seminário, improvável ir, mas foi um apelo. Na primeira metade nada lhe achei de muito especial. Foi preciso esperar pela segunda parte para lhe encontrar a beleza. Cada personagem singular e a seu modo à procura de si ou de um lugar para poder voltar a si e a ser feliz. Um bocadinho feliz. Nunca terei uma casa destas junto ao mar mas às vezes precisava tanto dela. Mas tenho irmãos, já não é mau, posso voltar a eles.

 ~CC~


segunda-feira, 24 de setembro de 2018

22



Passavam cinco minutos da meia noite a sala levantou-se em ovação.

Brilhante a encenação e a representação. 

Uma das melhores actrizes portuguesas num dos seus melhores papéis.

Tive a certeza que era o melhor local, naquele ano, para entrar naquele novo dia, naquele novo ano.

Há anos em que não há festas, nem bolo, nem velas, nem brindes. São anos reservados a uma festa que se faz só no interior, na reserva dos momentos, são anos virados para dentro para contrariar os que são virados para fora. Da explosão do ano ímpar à contenção do ano par. Do que será depois nos dias seguintes e seguintes pouco sei. Segredo a mim mesmo alguns desejos, disse hoje alto dois deles, quando tinha levado dias a pensá-los. E só quando os disse alto tive consciência de que são mesmo o que mais quero.

~CC~




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

As vizinhas



Dizem que eles e elas gostam de espaços abertos, verdes, são reservados, falam baixo. Dizem que nos acham PIGS.

Não são assim as minhas vizinhas alemãs, chegam pontualmente todos os anos nesta altura e ficam um mês a um mês e meio.

Tenho sérios problemas de convívio com as tardes que elas passam numa varanda minúscula, a beber, a fumar e a falar aos gritos. Riem muito, antes e depois do álcool. De quando em quando uma ensaia palavras de português e diz: estrada da Palmela, com a pronúncia que podem imaginar. As outras batem palmas e riem mais e mais. Não posso dizer que é o sol e a praia que lhes provoca este comportamento pois elas não saem praticamente da varanda. Está certo que da varanda se veêm dos dois castelos e a tal estrada de Palmela, mesmo assim é um horizonte bem limitado para passar férias. Ou talvez eu simplesmente não as compreenda, como imaginamos que eles não nos compreendem a nós.

~CC~


domingo, 16 de setembro de 2018

Reconciliação




Obrigada
Nada por isso.

Como é mano, estamos juntos?
Estamos juntos!

A primeira expressão usavam-na connosco, com um tom cortês, quase cerimonioso. A segunda correspondia a um sorriso mais aberto, usavam-na entre eles. Apetecia-me dizer aquilo assim também, daquela forma cantada, tão bonita. Também queria estar naquele estamos juntos. E estive um bocadinho, dia a dia mais. 

Estou de volta mas ainda estou a voltar. O tempo é mesmo relativo, foi tão pouco e pareceu tanto. Deve ser porque cruzar o equador muda tudo, os horizontes, o hemisfério que mais usamos, as palavras que sendo as mesmas têm outros sentidos. 

Um dia metade do grupo de formandos trouxe roupa amarela vestida, não tinham combinado, mas acertaram na minha cor favorita embora não a use. Fotografei-os assim de amarelo e a sorrir. Fotografei mais coisas, coisas que ficaram a doer cá dentro como as memórias da guerra civil que lhes levou pais, irmãos e irmãs mais velhos.

O muro que nos guardava era também um muro que nos agredia, alto, de arame farpado, o guarda à porta, a necessidade de avisar cada saída, de avaliar se seria ou não segura. Nós não sabemos como é.  Para não lhe chamar prisão, chamava-lhe um internato. 

Talvez não tenha sido apenas para vencer o medo, talvez uma parte de mim necessitasse de reconciliação. De os ouvir chamar-me pelo meu verdadeiro nome e sentir-me outra vez a menina que fazia bolas de sabão com as canas do mamão.

~CC~



segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Outra razão



Hoje descobri que não vim apenas para vencer o medo. Vim também para acrescentar-me. Jamais poderia conhecer em Portugal vidas com estas histórias. Comovi-me, com a contenção necessária à situação, as lágrimas que deitamos podem ser para dentro.

~CC~




PS. Tenho muito pouca rede e muito pouco tempo....ainda assim se alguém vos ler de Angola, saibam que provavelmente fui eu,

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Esta luta contra o medo



Foi em 2007 ou talvez em 2008, o boletim internacional de vacinas situa-o em 2007, eu é que pensava ter sido depois. Lembro-me de sentir muito o teu amor, dele estar muito presente, de me acompanhar. Ainda não nos tínhamos separado nenhuma vez, nem por vontade, nem por obrigação.

Voltava a Angola, lugar em que nasci, pela primeira vez. A emoção era enorme, vejo agora como era intensa. Nunca esquecerei a primeira imagem da terra vermelha, com o vento a levantá-la e o pó a cobrir-nos. Sim, era a terra onde nascera. Foi também nessa viagem e por causa dela que deixei de lhe chamar a minha terra. Mas isso seria certamente outra história para contar. Ia em trabalho por cerca de 15 dias. No último dia, antes da volta, adoeci gravemente e fiquei lá internada por quase uma semana. Poupo os detalhes de quem viu nessa altura a morte a rondar. Foi a primeira vez que passei os anos numa cama de hospital. Era Setembro, agora também é Setembro.

Dentro de poucos dias irei novamente em trabalho a Angola. Depois dessa vez enfrentei novamente duas situações de muito perigo, um acidente de viação e a doença, esse maldito bicho chamado cancro, nome que a minha filha me diz que devo evitar por não ser científico (displasia é o nome correcto, as coisas que aprendemos). Deixou marcas, não apenas as cicatrizes mas uma dieta para sempre, o perigo de me engasgar e vomitar. E o fantasma eterno do seu regresso.

Por tudo isto toda a gente me diz para não ir a Angola. A família abana a cabeça e profere o termo loucura. Os meus médicos são mais cautelosos e encorajam-me, dizem que devo procurar uma vida normal. Dantes esta era a minha vida normal, não é coisa que tenha iniciado agora, teria que ser algo que eu abandonaria. 

Se tenho medo? Sim, muito medo. E é por causa dele que vou. Não se pode deixar que seja o medo a ganhar a batalha. Vou para lhe fazer frente. Vou pela mesma razão que peguei no carro e voltei a conduzir a seguir ao acidente de viação. Vou porque se o medo me vencer, isso será também um modo de morrer, lentamente e em vida.

~CC~






segunda-feira, 3 de setembro de 2018

domingo, 2 de setembro de 2018

Bicho humano



Uma parte da tristeza do regresso ao trabalho foi atenuada pelo "Amor é" bem alto na rádio, enquanto se juntavam mais e mais carros na autoestrada de volta. Todo o programa (creio que a passar em repetição) foi em torno do livro "O romântico incurável", escrito por um psicólogo que relata os casos de desejo, frustação, amor e raiva que ao longo dos anos conheceu e procurou tratar através da terapia. 

Nunca tinha ouvido falar do livro nem do autor mas fiquei com vontade de ler. O Júlio Machado Vaz envelhece bem, continua a ser bom ouvi-lo, mesmo que o que diga nos seja afinal familiar, o que sabíamos já. Gosto dessa sapiência que não se arroga de sabedoria e se mistura com o senso comum. 

Achei piada ao modo como discutiram o ciúme. É tão comummente sacralizado como a quinta essência do amor ou, pelo contrário, odiado como um mal humano do qual devemos ter vergonha. Provavelmente a verdade anda ali pelo meio, se amamos uma pessoa é bem possível que não a achemos apenas digna do nosso amor mas também do amor de outros, que queiram o que nós temos, se é que ter é qualquer coisa que se possa dizer de alguém. E que a nossa insegurança surja, será que não aparecerá então esse alguém mais merecedor, mais belo, melhor, alguém por quem o nosso amor se interessará mais do que por nós? O ciúme nem precisa de um objecto concreto, é só conjectura, incerteza, dúvida. Excessivo mata-nos e mata o outro, é cinza. Já da sua ausência total ninguém fala? Existirá? Será mesmo verdadeiro o poliamor? Júlio conta-nos como no pós 25 de Abril se tentou decretar à esquerda o fim do ciúme, esse sentimento burguês de posse. E como falharam. 

Todos os sentimentos humanos me interessam em particular. É aliás o que mais me interessa, o bicho humano tem qualquer coisa de feio mas sem dúvida muito de belo também.

~CC~



quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O olhar dos outros



Às vezes a praia fica no meio de um caminho.

E o apelo do mar torna-se grave e bem fundo, sobretudo por causa da sua cor no Verão, e de podermos senti-lo na pele. 

Só depois percebi que estava num sítio da moda e num restaurante badalado e com preços altos, bastante altos para o que costumo praticar, mas há sempre alternativas, e havia. Mas era sobretudo um local onde não se vai sozinha, como eu ia. Creio que não foi por isso que me puseram ao lado um casalinho muito jovem mas para rentabilizar o espaço. Ela era uma autêntica modelo, alta, magra, loira e vestida como quem vai para uma sessão de fotografia, com a devida roupa de praia. Ele, modelado pelo ginásio, devidamente tatuado, parecia o seu agente, guarda costas e amante, ou mesmo uma mistura dos três. Queriam informações e por isso perguntaram se falava Inglês. É bom quando não encontramos nativos da língua e eles não o eram, pensei que seriam da Europa de Leste. Ia-lhes compondo a história, ela uma jovem à procura de ser uma estrela na moda, ele arrastado por essa Europa fora, saudoso dos fins de tarde regados a cerveja com os amigos. Houve sessão de fotografias, claro. Sem vergonha nenhuma e em diversas poses. Vi, com desagrado, como o empregado lhes tentou vender sempre o mais caro, do vinho à comida.

Fomos falando de quando em quando. A história foi-se desconstruindo, o que imaginamos do outro. Ou o que eles nos querem contar. Afinal eram polacos. Estavam deslumbrados com a praia do Meco. Perguntaram-me se era turista. Não, portuguesa, a morar a 20 km dali. Foi então que despertaram a minha simpatia. Que não era possível morar assim tão perto daquela maravilha, sentia-lhes a boa inveja, o olhar perdido no mar, o sorriso, a tristeza do regresso. Se não me sentia feliz, tinha que ficar e de facto fiquei. Pois se morava a 20km dali. O que vemos no olhar dos outros, temos que reparar bem, quem sabe nos traz o que desejamos.

~CC~





segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Domingo de Verão



Tarde tão longa deste Verão.

Guardei a hora do crepúsculo
para a praça da minha cidade.

Para ver o céu riscado pelas andorinhas
e as correrias dos meninos atrás dos pombos
ganhas sempre pelos pombos

o homem da barba
manipula uma marioneta
que toca o piano em miniatura
as crianças pasmam em volta

eu pasmo pela inglesa
que come crepes com gelado
acompanhados por um jarro de sangria

pela bicicleta verde
que anda em círculo

pelos mendigos na escada da igreja
como estátuas paradas pelo calor

e abriu-se a porta
e saem muitas mulheres
e olha tantos vestidos de domingo
ainda há vestidos de domingo

estão a acender-se devagar as luzes
e fico comovida
pelo encontro

esse maravilhoso encontro do dia com a noite.


~CC~

domingo, 19 de agosto de 2018

Vizinhos



O que mais gosto nos nossos vizinhos?

A forma como não deixaram que a Europa os uniformizasse, a manutenção da sua identidade. Em muitas, muitas coisas.

As lojas, os cafés e os restaurantes fecham todos para a siesta. As lojas fecham entre as 14h e as 17h, os restaurantes às 15h e só abrem às 20h. Ao Domingo não se abre portas. No último 15 de Agosto, aqui na minha cidade, nem se saberia ser feriado, a maior parte das lojas da baixa estava aberta. Já no último Domingo em Espanha, nada, literalmente nada estava aberto, as ruas da cidadezinha estavam absolutamente desertas e antes das 19h parecia que não vivia lá ninguém, à meia noite pulsava de vida, gente de todas as idades nas ruas e nas praças, muitas crianças (qual cama, qual quê...). As mulheres mais velhas pintam-se e vestem-se bem, falam sem parar, respiram alegria. Os miúdos pequenos parecem mais livres, não vi nenhum com um tablet à frente para não fazer birras. Contei pelos dedos as lojas de comida de cadeias célebres, sobretudo de fast food, menos, muito menos que nas nossas. Se eles têm as tapas...Falam um inglês imperceptível para nós, várias vezes pronunciaram palavras em Inglês sem que compreendesse, usam a sua própria pronúncia para falar outras línguas. Tudo é dobrado, sei que criticam muito esta opção deles, mas é sem dúvida mais democrática. 

Há muito, muito turismo interno, há espanhóis a visitar museus e monumentos, há aliás sobretudo espanhóis, há espanhóis a viver as coisas deles, sente-se que elas são feitas para consumo interno, não para externo. Diria que parecem estar-se nas tintas para uma certa ideia de ser Europa, a Europa do centro, a que nos normalizou a partir de Bruxelas. Em Portugal quando mais perto se está dessa Europa, melhor se é. E agora há os nórdicos para imitar. Nós temos essa tendência para imitar alguém quando queremos ser bons. Ou agora somos bons porque a Madonna vive cá. Perto estaremos novamente de ter só ementas em Inglês no Algarve. Não aprendemos o suficiente com os erros.

Gosto dos nossos vizinhos, de lá é bom vento e bom casamento. Sempre podiam era ter abolido aquela coisa da monarquia...nisso fomos mais fundo, melhor.

~CC~



quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Torradinha com tomate fresco



Somos cheios de contradições, detestamos ver as nossas cidades cheias de turistas mas também gostamos de ir, de conhecer outras cidades. Há por certo um equilíbrio em tudo isto mas ainda não sabemos bem qual é. 

Eu amo acordar numa cidade desconhecida, sair para a rua directa ao seu centro. Posso ver museus, monumentos e exposições mas é o vibrar das ruas que me apaixona, ouvir as pessoas falar, entrar nos cafés, nos mercados, nas mercearias, passear nos jardins, sentar-me nos bancos das pracetas, entrar nas lojas que não pertencem a cadeias já conhecidas. Andar e andar e andar, até as pernas não poderem mais.

Uma das coisas que mais gosto também é provar do que as pessoas comem e como elas o fazem, do mesmo modo e se possível à mesma hora. Às vezes são as coisas mais simples as que trazemos para sempre.

Deste Verão eu trouxe o pão torrado com fatias de tomate e azeite e sal por cima que me serviram em Córdova num daqueles dias em que parecia que toda a península ibérica se ia rapidamente tornar num deserto. Era uma tasquinha do mais simples que há, na qual paguei 1.80 euros por aquela maravilhosa torrada e um copinho de sumo de laranja bem fresquinho. Agora fazemos em casa, variando o que antes comíamos ao pequeno almoço. Lembro-me que fizemos o mesmo com o cuscuz de Cabo Verde que é um bolo comido ao pequeno almoço. E cada vez que o fazemos, revisito a memória daquele local onde estivemos e é que como se ficasse outra vez feliz.

Por isso não me convidem para locais incaracterísticos que são iguais em todo o mundo, onde se faz sempre o mesmo (vulgo mergulhar numa piscina), se come o mesmo e as pessoas são iguaizinhas umas às outras. Não que ande à procura do que é exótico e também se vende como tal, quero simplesmente diluir-me entre as pessoas que fazem as suas vidas naquele lugar para o poder absorver como é.

~CC~


terça-feira, 14 de agosto de 2018

Sorriso de Agosto



Uma sala mais simpática do que a do bloco operatório. Um pouquinho menos gelada e mais larga. O centro clínico mais vazio (ai, as vezes que fui corrigida por lhe chamar hospital).

Estamos ali no meio de agosto, eles e eu. Não estamos na praia, não estamos nas Ilhas Gregas, nem em Bali. Fazemos o que nos compete, o que tem que ser feito, não lamentamos, não nos lamentamos. Recordamos há quanto tempo foi a operação e o que se lhe seguiu, o mau desfecho, as dificuldades, a luta e depois as pequenas vitórias, falamos nelas como qualquer coisa feita em comum.

Apesar de estar há um dia sem comer e com o intestino bem limpo como eles exigem, apesar do receio que sempre tenho relativamente aos resultados do exame, estou estranhamente calma, resignada, compreendendo que o futuro tem que passar por aqui se quiser ter futuro. Como tudo foi diferente no exame de Agosto de há três anos atrás, estava extremamente ansiosa e acho que só eu não estranhei o resultado, antecipava-o, sabia-me doente.

Sei tudo o que tenho que fazer, o modo como me devo deitar, colocar a perna e o braço, quase posso adivinhar o tempo que demorarei a adormecer e que sonharei, sonho sempre quando sedada e acordo a lembrar-me que estava a sonhar para depois tudo esquecer rapidamente. A única coisa que não sei é o que dirá o médico desta vez quando vier ter comigo ao recobro. Ele é rápido, incisivo, e desta vez sorri. E eu posso sorrir também.

~CC~


segunda-feira, 30 de julho de 2018

Oxigénio




Respirar é mais do que sorver ar.

É quando conseguimos que o oxigénio tenha um alto grau reparador, nos limpe até ao fundo.

Por isso há que parar, deixar tudo para trás como se não houvesse amanhã. Não importa para onde se vá, pode ser no interior da nossa casa, embora mais difícil.

Para mim uma cidade diferente, um acordar no campo, a primeira vez que vejo o mar naquela praia, uma noite de lua, tudo isso é feito desse oxigénio reparador.

Sou daquelas que deixa o computador em casa, um dia lá mais adiante, mediante algumas circunstâncias favoráveis, deixarei também o telemóvel.

~CC~

sábado, 28 de julho de 2018

O outro, sempre esse mistério


Foi por causa deste post dela que me lembrei de ti.

Não foste a primeira lembrança que essa pertenceu ao rapaz sobre o qual teci o meu comentário. Foste a segunda.

A tua mão suada que pingava literalmente um amor que não tinha para te dar. Não sei se fui generosa deixando-a ficar na minha durante todo o passeio pela serra de Sintra. Queria tirá-la, queria dizer-te que não a sentia, mas não conseguia. Não guardei nenhum dos poemas que me escreveste e, contudo, deves ter sido dos únicos ou mesmo o único a fazê-lo. Eras o nosso patinho feio, a tua inclusão no grupo era feita com pinças, metade tinha pena, outra metade era indiferente. Penso agora que pouco sabia de ti, apesar de estares tão ligado a mim. 

Para onde é que a vida te terá levado?

Pouco depois desse episódio de Sintra, desapareceste quase de um dia para o outro. Não te procurei por não te querer fazer sofrer? Ou terei ficado aliviada?

Nunca mais me cruzei contigo e nem consigo lembrar-me do teu rosto, mas tenho a clara sensação da tua mão suada presa à minha e da tristeza que senti. O outro, sempre esse mistério.

~CC~

terça-feira, 24 de julho de 2018

Quando o passado bate à porta



O passado pode ter qualquer coisa de futuro. O passado às vezes bate à porta.

Foi isso que senti naquela noite, na sociedade recreativa, a ouvir jazz. Tinha sido ali que 60 anos antes a minha mãe tinha dançado no salão de baile e concorrido ao concurso da mais bela da terra. Saí com o cartão de sócia quente na carteira. No corredor a exposição era sobre os refugiados e na plateia quase tantos estrangeiros como portugueses.

Nada sabiam eles e elas sobre este futuro 60 anos depois.

Eu também não consigo adivinhar o que será este lugar daqui a 60 anos.

Conseguiria, contudo, passar os próximos seis a vir aqui todos os sábados ouvir música, não obstante ser moça de poucas rotinas, às vezes apetece-me ter um lugar onde ir sempre. Lembro então a leitaria no Rossio em Lisboa onde, jovens que éramos, durante três anos nos encontrávamos sempre, sem telemóvel para combinar, sem telefonemas prévios, sem saber quem encontraríamos, era ali o ponto de encontro e alguém havia de aparecer. Sou pouco dada à saudade das coisas. Mas de vez em quando infiltra-se no presente alguma coisa de um outro tempo e fica ali a durar um tempo, até que o meu pensamento parta em busca de futuro. O presente, esse nem sempre o consigo pensar e sentir, é tão rápido.

~CC~




domingo, 15 de julho de 2018

Desconforto


É estranho que ser bem tratada num serviço público me tenha causado tal desconforto. E note-se, não sou das que acham que todos os serviços públicos são maus, bem pelo contrário. Tal mal estar só é explicado pela diferença de tratamento que usufrui face aos outros cidadãos. É verdade que eles procuravam um serviço que não era o mesmo que o meu, que o meu estava antecipadamente marcado e por isso pude entrar à frente da enorme fila que às 8h30m da manhã já esperava por tirar a senha. 

Mas esses motivos não foram suficientes para me eliminar o desconforto associado ao tom de voz usado para comigo e para com os outros, nem ao tratamento por senhora professora, nem às mil desculpas usadas para não conseguir tirar as minhas impressões digitais a não ser à 9º vez no uso da máquina. Não era esse tratamento que estava errado, reflecti depois, mas o que era dado aos outros. Vivemos num país ainda tão parolo, em que os direitos humanos se resumem a posters que se colocam nas paredes e tão, mas tão convencido do contrário, que é humanista, tolerante e tal.

Todo o dia fiquei com o estômago às voltas (ah, é verdade que não o tenho mas vale a metáfora) com o aviso colocado na parede: os acompanhantes devem ficar na sala de espera. Ora se o acompanhante for um bebé, como é? E mesmo uma criança com 5/6 anos?

~CC~

terça-feira, 10 de julho de 2018

Mesmo em doses pequenas



Registei o segundo banho de mar, bem gelado, a só permitir entrar e sair quase no mesmo minuto. Mas com ele tive a certeza do poder regenerador da água salgada, do bem que se infiltra pele dentro e me chega às células que determinam a satisfação, o bem estar e a alegria. Li, deitada na areia, três contos peregrinos do Gabriel Garcia Marques, maravilhada com a sua mestria no uso da palavra, do humor e da cultura dos lugares do mundo. Há muito que não lia só por prazer.

Registei ainda o modo como a família se reuniu quase toda, atravessando cinco deles o atlântico até aqui. Comemos, bebemos, rimos, conversámos, dormitámos. E tive a certeza que aqueles momentos eram também dopamina pura, uma injecção transmissora de alegria ao sistema nervoso central, com a vantagem se aí se depositar como uma pequena reserva, talvez a usar em dias mais sombrios.

Eu e ela provámos à vez fatos de banho, invertendo a ordem, ora era ela a provar e eu a trazer, ora o inverso. E é dessas coisas tão pequenas que nasce a cumplicidade e agora que ela se foi por durante mais uns dias ou semanas, nascerá também a saudade. A saudade é vida pura, faz o sangue circular para se entristecer e depois para se extasiar.

E a paragem de apenas alguns momentos no ritmo intenso mostrou-me mais uma vez o quanto estou a desperdiçar o tempo a trabalhar. À procura de caminhos para poder abrandar, como quem procura saber qual o fusível que pode desligar e ainda assim manter a luz acesa.

A alegria pode vir assim, mesmo em doses pequenas, é a ela que me agarro.

~CC~






terça-feira, 3 de julho de 2018

Arrepio



Estendi-lhe uma face para a cumprimentar com um beijinho e depois a outra, foi aí, nesse pequenino momento de inclinação para o segundo que percebi que ela estranhou e quase rejeitou pois só me ia dar um beijinho. E foi também nesse curto momento que me arrepiei pois tomei consciência que eu tinha nascido num berço e ela noutro e que entre nós havia um oceano. Nessa coisa tão simples, intrometeu-se a distância, o gelo, algum desprezo. 


~CC~

domingo, 1 de julho de 2018

Das perguntas (a mim)



Era uma miúda com uns oito anos, belos olhos redondos pretos, tom de pele de canela e cabelos longos, muito escuros. Ia pela mão de um adulto, talvez o pai, homem entre os 30 e os 40 anos. Passei ao lado deles e pude ouvir claramente a pergunta dela:

- Quando é que eu posso usar a jillaba?

Levei comigo a pergunta dela por todo o resto do caminho que fiz. Como é que uma criança a viver em Portugal, com um cabelo tão espantosamente bonito, pode um dia querer cobri-lo? Como é que querer crescer pode ser um desejo em vez de gozar espantosamente a liberdade da infância? Lembrei-me então das miúdas pequenas com as unhas pintadas, do seu desejo de pintar unhas das mãos e dos pés. Pensei em qual das coisas me chocava mais, se uma coisa que estava dentro das referências culturais ocidentais ou uma que não estava.

E cheguei à conclusão de que uma e outra me provocavam grande desconforto.

~CC~

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Que é feito dela?



Bem sei que o cansaço se acumula mais do que a poeira em cima dos móveis. E que quando ele se deposita assim em nós, só o conseguimos sacudir deixando entrar a letargia, a renúncia, o abandono. Estou quase a chegar a esse limite.

É um dizer não que se vai pronunciado devagarinho até tomar força e se entregar a mergulhos de mar, tardes que se prolongam até se enrolarem nas noites, livros que se começam na incerteza de chegarem ao fim tantos são os passeios a chamar-nos. Que bom é sair apenas para ir comer um gelado. Até os blogues ficam em pousio.

Será esse cansaço dela? Sim, comecei este post a pensar nela, em como gosto dela e em como me faz falta. Penso que está bem e está de férias. Penso que está mal e por isso se distancia e se cala. Pergunto-me, pergunto-lhe. E isto tudo respeitando o seu silêncio.


~CC~

terça-feira, 26 de junho de 2018

Verão



Andar descalça outra vez, descalça, descalça, descalça.

(essa memória de toda uma infância)

~CC~

domingo, 24 de junho de 2018

É só um bocadinho



Estava, via-se, fora do seu caminho habitual. Descera um pouco mais à cidade e entrara naquele café habitado por gente das artes e das letras. Curiosamente o café não tinha só mesas e cadeiras mas também um sofá. E ele entrou e sentou-se ali a usufruir do silêncio daquele tempo depois do almoço em que não há quase ninguém e há uma penumbra fresca e silenciosa. Nós trabalhamos ou tentamos, cada uma numa mesa com o seu computador, bebendo também aquela calma, tão contrastante com o bulício da manhã.

Encostou-se no sofá e dormiu um bocadinho. Quando acordou ligou à mulher: ainda demoro mais uma meia hora, dormi um bocadinho e agora preciso de acordar, estou naquele café de que te falei, onde te disse que gostava de entrar um dia. Do outro lado o ralhete e ele a tentar acalmá-la: ninguém viu que eu dormi, foi só um bocadinho, não fiz figura triste nenhuma, não comeces já a ralhar.

Eu vi mas não digo nada a ninguém, muito menos à mulher dele.

~CC~

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Coisas mínimas



Hoje, pela manhã, um arco-íris inteiro na minha janela. Todas as cores direitinhas como quando somos meninos e os desenhamos.

Só fiquei sem saber em qual dos lados eu deveria ir procurar o pote, não um pote de ouro, só de vida.

~CC~

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Cafés com história




A comer um folhado de Loulé, a ouvir poemas do Fernando Pessoa, a adormecer o meu cansaço sonhando ver por ali o António Aleixo, quase o senti. Foi na casa do meu avô, um pescador com a quarta classe, de Olhão, que li pela primeira vez um poema dele. O meu avô tinha três livros, os três eram de poesia e dois eram do António Aleixo. 

~CC~

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Duas malditas lágrimas furtivas



Eu não sei. Não sei de foi o dobrar dos cinquenta. Não sei se foi da doença. Não sei se são eles que são melhores do que eram antes. Do facto de ter ficado doente estavam eles no 2º ano e da minha ausência e do meu regresso estar associado ao percurso deles. Se é desta chuva miudinha que não larga.

Duas malditas lágrimas furtivas.

Um esforço para conter mais. E parte passa não só por eles como pessoas, mas pelo trabalho que realizaram nos seus estágios.

Achar que vou ter saudades deles, da maior parte deles.

Que diabo, nada é como era antes. Não me emocionava assim, não me entregava assim. Sabia tão bem tecer as fronteiras. É claro que sempre houve alunos que ficaram, alguns que continuaram a escrever e a ligar mesmo depois de terem saído. Uma minoria de qualidade, de primeira.

Nada como agora. Estou aqui a recuperar da emoção de quarta e quinta, atontada.

A ver vamos se regresso ao formato que aquele moço mais atrevido caracterizou.
O meu pai professora viu-a e perguntou: mas é daquela professora pequenina e magrinha que vocês todos têm medo? Ele diz que respondeu que não era medo, era respeito.

Respeito é bom e custa, oh se custa a conquistar. Mas se calhar também pode combinar com as duas lágrimas furtivas. É claro que ainda lhes chamo duas malditas lágrimas furtivas.

~CC~








terça-feira, 5 de junho de 2018

Rir juntos


Quantas histórias ficaram a ecoar dentro de mim, não obstante o mergulho no intenso trabalho que me esperava.

Uma das melhores foi contada pelos brasileiros, povo tão irmão. 

Diziam eles que o Saramago numa sessão de apresentação de um dos seus livros no Brasil, foi interrompido por alguém na plateia pedindo: por favor, pode falar mais devagar, não estamos entendendo você por causa do seu sotaque. E o Saramago respondeu-lhe: então nós inventámos a língua e eu é que tenho sotaque?

Podermos rir juntos disto anula todo um possível drama entre colonizadores e colonizados. E não seria assim em todos os países pelos quais andámos armados em donos.


~CC~

sábado, 2 de junho de 2018

Com asas



Foi a primeira vez que fui interrompida na moderação de uma mesa redonda por punhos erguidos, gritando "Lula livre".  Mais tarde, "Catalunha Independente". Só faltou um português começar a cantar a Grândola. A verdade é que a cantamos depois todos juntos em pleno jardim. E juro que era um congresso académico puro e duro. Mas as pessoas andam inquietas, preocupadas, indignadas. Não sei se uma direita mais e mais conservadora dará azo a uma esquerda mais radical, mais revoltada.

A mim a revolta não me dá para grandes gritos, mais para silêncios e lágrimas. Aconteceu-me na mesa final dedicada aos direitos humanos.

Mas não foi um tempo triste, apesar destes traços indignados, imperou a alegria de uma comunicação em múltiplas línguas: catalão, galego, castelhano, basco, português do Brasil, português de Portugal. E a alegria de estar com aquele pequeno grupo que trilhou um percurso académico em conjunto sem perder elos de companheirismo e amizade.

E ir, ser capaz outra vez de ir, dos aviões, da exposição pública, de comer com os outros em sítios públicos e quase o mesmo que eles. De andar e andar numa cidade desconhecida, de aguentar o cansaço.

As asas, acho que já não as quero deixar.

~CC~




terça-feira, 29 de maio de 2018

Eutánasia




IRLANDA -  1

PORTUGAL - 0


Espero que em breve voltemos a jogo e que ambos ganhemos.


~CC~

domingo, 27 de maio de 2018

Casa



O cansaço desfez-se naquela noite de música em que tudo se misturou magicamente, os velhotes do coro alentejano com os miúdos da percussão, a mulher do acordeão que com uma energia contagiante colou todos num abraço, afinal qualquer um deles tinha sido seu vizinho. Acabámos na rua a cantar e estavas a meu lado. A felicidade voltou a espreitar várias vezes no dia seguinte. Gosto tanto quando me acompanhas. A vista do rio é magnífica naquele canto da cidade onde só raramente se pode ir, naquele dia abriram portas e nós lá estivemos, mais uma vez a música.

Casa era o mote do festival de música da cidade de Setúbal este ano.

Casa é o que tenho procurado sempre. Talvez esteja aqui. Talvez esteja nos lugares em que sou feliz. Talvez viva dentro de um beijo. Se calhar não tem tecto, nem paredes.

Prestes a viajar, a primeira vez de avião, depois deste período de doença. Prestes assim a deixar a casa. Com medo, a testar o medo, a lutar contra o medo. Quando estou perto pergunto-me sempre se precisava, é a voz do medo a falar alto, a querer-me quieta. Sei que, contudo, vencê-lo, também me pode deixar feliz.

O bom de ir é aquele desejo de conhecer, a curiosidade, e depois é ainda melhor regressar a casa.

~CC~





terça-feira, 22 de maio de 2018

domingo, 20 de maio de 2018

Fazer-me rir


Por breves momentos estive perto do cristianismo. Por um tempo um pouco mais longo presa de uma teia qualquer de misticismo, daquelas que podem ter  muitos nomes e viajam entre o Siddhartha e o Fernão Capelo Gaivota. Só me sobrou o gosto pelo yoga e o espanto pela beleza da terra. Depois tornei-me racionalista e descrente de quase tudo. Fez-me bem ao sentido crítico, apurou-o. Por fim cheguei ao princípio, ou seja ao humanismo, ainda que considerando o ser humano apenas essa partícula ínfima do infinito, o que se não destrói o humanismo lhe acrescenta algum relativismo. Faz-me bem ter esperança na humanidade, não obstante alguns péssimos exemplos dos dias de hoje.

Isto tudo era só para dizer que não sei de onde me vem a capacidade de perdoar. Não aquela coisa boazinha do perdão instantâneo, da lavagem imediata da mágoa, muito menos o dar a outra face. As coisas demoram tempo. Mas acontecem ao ponto de poder ter saudade de alguém que não foi completamente bom para mim (isto se houver alguém completamente bom). Hoje tive um sonho com alguém assim. E no sonho sentia saudade de algo que aquela pessoa que agora nem sequer chamo amigo fazia muito bem. Como se do tempo tivesse apenas sobrado aquela particularidade lavada de qualquer mágoa. Fazer-me rir, era isso. Saudades de alguém por essa pessoa me fazer rir. Tinha graça, às vezes basta isso para fazer com que alguém se torne especial.  

~CC~

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Contabilidade


Uma hora de comboio para Lisboa, fim de tarde, carruagem cheia.

Duas pessoas liam livros em suporte papel.

Duas pessoas conversavam.

Três pessoas dormitavam.

Todos os outros usavam o telemóvel. Liam coisas ou enviavam mensagens, três telefonavam, alguns nada faziam, tinham-no apenas na mão.

Eu não sei como se pode passar de comboio a ponte sobre o Tejo sem olhar o rio, olhá-lo muito, beber toda aquela beleza. 

Pergunto-me, contudo, se também quereria beber dessa beleza se a visse todos os dias. E sinto-me privilegiada por não ter que ir a um lugar todos os dias. Ainda assim há coisas que gosto de repetir e esta passagem sobre o rio é uma delas.

É tão bom não fazer nada durante uma hora.

~CC~










terça-feira, 15 de maio de 2018

Nostalgia tonta




Saí muito cedo e para um lado diferente daquele para o qual costumo ir na cidade. E encontrei uma fila inusitada que me obrigou a procurar uma justificação para tal. E percebi: era o caminho do liceu (sim, toda a gente ainda o chama assim). Eram os pais que iam levar os filhos. E de repente a minha vida regressou ao tempo em que também eu fazia o mesmo contigo. A nostalgia tomou conta de mim, o que costuma ser raro, nunca vivo no passado e raramente me emociono com ele. Talvez esteja mesmo a envelhecer. Revi-te ali ao meu lado, ensonada, contrariada por teres de te levantar cedo, com qualquer coisa esquecida em casa ou no banco de trás. Nem posso chamar saudade ao que senti, foi mais uma dor fininha de saber que há certas coisas que não voltarão jamais a ser o que foram, que a tua companhia vai ser sempre como é agora, um tempo entre muitos tempos da tua vida. Por certo não voltaremos a viver juntas. E lembrei-me da minha mãe, da agitação que era a vida dela com tantos filhos e netos e de como tudo isso se foi e agora está tão sozinha. Compreendi-a melhor e percebi que só essa compreensão vivida do sentimento do outro pode gerar afecto.

Depois estendi o braço para me retirarem sangue para as análises. E pensei que talvez pudesse deitar uma lágrima como se fosse por aquela dor e não pela outra tão tonta que sentia.

~CC~

domingo, 13 de maio de 2018

Uma aranha por favor



Estava atrás dela na fila, uma senhora respeitável, certamente com mais um dez anos que eu:

- Quero uma aranha, uma joaninha, um trevo e a pérola negra.

Primeiro pensei que ela se tinha equivocado com a loja já que ali não se vendiam animais mas jornais e revistas, depois estranhei as outras categorias que não batiam certo com as primeiras, até perceber do que se tratava, afinal eram nomes de raspadinhas. Tamanha imaginação de quem inventa estas coisas, refinada memória de quem as pratica ou de quem raspadinha atrás de raspadinha se vai viciando.

Olhei para o lixo, estava quase cheio de papéis raspados, por certo a clientela era muita.

Perguntei à senhora da loja se vendia muito. Respondeu que sim, que quanto mais idosas eram as senhoras, mais gostavam daquilo. Fiquei a pensar tantas coisas. Ainda me lembro como uma senhora que conheci numa das aldeias escondidas deste país me dizia: ao fim da tarde menina, um copinho de licor caseiro e lá se vai a solidão. Serão também as raspadinhas um elixir do mesmo género? Ou será mesmo pela possibilidade (remota) do prémio?

O que vive escondido nas aranhas da sorte? 

~CC~