sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Apenas isso



Parte I - Chorei

Hoje chorei pela primeira vez umas lágrimas à toa, fruto do cansaço que senti por ter ido a um centro comercial. As pessoas andavam num frenesim patético em torno de roupa, adereços, comida, era como se as visse num filme, não conseguia sentir nada, só queria sair dali. Tenho que evitar lugares perigosos para a minha sanidade mental.

Parte II - Desejar

Ando às voltas com isto dos desejos.

Eu sei muito bem o que quero, eu quero apenas desejar. Eu desejava sempre muito, os meus desejos eram um fulgor, eram claros, eram inocentes. Quero apenas que volte a mim o acto de desejar plenamente, sem nada que corrompa esse clarão puro de luz e esperança. Desejar sem deixar entrar o pessimismo, a renúncia, a descrença. Quero que o meu corpo trema, o meu coração palpite, o espírito viaje. Não tenho desejos, só quero desejar.

~CC~



quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A diferença está nas pessoas


Concluo, com algum desagrado, que a diferença essencial no modo como os serviços funcionam, quaisquer que eles sejam, está nas pessoas. Digo isto com alguma amargura pois a função essencial de que me ocupo há 30 anos é formar pessoas. Com mais desalento ainda porque o doutoramento que tirei é na área das políticas e das organizações, ou seja, não é tanto a nível micro, mais macro, os olhares sobre o sistema. E porquê o desagrado, amargura, desalento?

Neste tempo em sou acompanhada na mesma instituição médica, contactei três médicos, todos homens. Apesar de estarem irmanados nas suas orientações, reunirem em equipa médica, possuírem orgulho em relação ao local em que trabalham, são completamente diferentes. 

Ao mais fraco chamo-lhe o boss por ser o chefe do serviço, supostamente o melhor, mais capaz. Até pode ser, mas não na comunicação nem na clínica. As consultas demoram no máximo 5 minutos e ele acaba-nos as frases, do tipo "ando aqui a virar frangos há muito, por isso sei o que vai dizer". Zero de empatia. Ao melhor e também ao mais novo chamo-lhe doutorzinho, parece quase da idade da minha filha e faz clínica a sério, ouve-nos, observa-nos, comunica. Infelizmente só me atendeu enquanto o chefe andava por fora, em congressos, comunicações e afins. Por mim teria feito a troca para sempre mas não tive essa sorte. O terceiro é cirugião e como sabem eles não são seres bem deste mundo. Por isso perdoo as vezes em que baixou os olhos cada vez que me encarou e o esforço que faz para encontrar palavras que não sejam excessivamente técnicas, até dói. Mas embora seja de poucas palavras, deu-me a mão e apertou-a ligeiramente quando eu entrei para o bloco operatório, para cirugião esse gesto já é muito. E quando chegou para me ver depois da primeira operação, começou logo a tirar adesivos, a apalpar-me a barriga, com um à vontade que me deixou tranquila. Tem um outro modo de construir empatia.

Estes três médicos andaram na mesma escola de formação e sabemos que as instituições são coisas que mudam pouco, os dois primeiros devem até ter idades próximas. Também fazem parte da mesma organização. Logo, onde reside tamanha diferença? Isto meus caros não me preocupa apenas pela minha situação particular. Isto preocupa todos aqueles que andam à procura de como as coisas podem mudar. De como podemos influenciar a mudança. De qualquer modo há muito que vou dizendo que não há formação sem transformação e essa, essa é que é difícil. Se a diferença está nas pessoas, como se mudam as pessoas?

~CC~


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

23-26 Dezembro



Percebo quem odeia esta festa, quem a tolera, quem a adora.

Nunca gostei muito de festas, muito menos as que somos obrigados a festejar, sem hipótese de saída, encurralados pela sociedade em êxtase. Odiei todos os telejornais a acabarem com capítulos sobre comida de Natal, decorações de Natal, famosos ou nem tanto a contarem as suas memórias de infância...um excesso, um delírio, uma inutilidade de minutos que poderiam ser gastos com coisas tão preciosas.

Acresce que esta festa implica o que em qualquer manual de psicologia vem descrito como a matéria mais combustível que há: a família. Não acabam mais as famílias que por obrigação se têm que juntar, muitas vezes sem nenhuma vontade de o fazer. Poderia escrever-se um livro inteiro de histórias sobre os pequeninos ódios familiares, os que não matam, mas minam como uma dor contínua.

Mas só me incluí no grupo de quase odiar esta festa até ao dia 23 de Dezembro. Depois cheguei a uma aldeia na serra, comecei por ver uma das árvores de Natal mais bonitas de sempre, feita por um jovem oleiro que com uma pedra de mó, um tronco repleto de musgo e uma dúzia de ovelhas em miniatura (feitas de barro e lã natural), mostrou como a simplicidade e a natureza são bonitas. Literalmente acampámos entre 23 e 26 de Dezembro, numa composição familiar variável mas com algumas permanências fundamentais. Por isso o meu Natal só acabou hoje. Todos foram iguais a si próprios e é esse o encanto de sermos nós, ninguém disfarça quem é. Sabemos tão bem os defeitos uns dos outros que são mesmo eles a parte que nos faz mais falta.

Obrigada Ernesto pela forma como fazes parte desta família, pela forma como tudo, literalmente tudo fizeste para nos acolher. Não esteve mesmo frio, apesar de ser na Serra.

~CC~




terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Abraços como combustível de luta



O que quero para mim neste Natal?

Simplesmente manter a normalidade. Isso significa que a matriarca fará o pudim de laranja, ainda que com ajuda, é que os seus 88 anos permitem, há muito que as filhozes fininhas da sua especialidade tinham passado para a minha área de intervenção. Este ano, a minha falta de força no braço direito não as permitirá fazer. Não lhes sentirei assim tanto a ausência porque a vida se faz tanto do que permanece como daquilo que se vai e eu introduzi pelo menos um novo doce que se tornou querido de todos.

Isso quer dizer que nos tentaremos manter juntos, pelo menos um núcleo duro, constituído pelas pessoas com as quais passo o Natal desde a minha infância, as duas manas, a minha mãe. Os que vieram depois, os nossos filhos. Também alguns dos pais dessas crianças, algumas já adultas. Senti imediatamente e inicialmente que a minha doença seria um motor de desagregação deste núcleo duro, era na casa do meu amor que o Natal se passava nos últimos anos e tinha conseguido o milagre de juntar a cada ano mais gente, não perder ninguém. Mas não era capaz de fazer o mesmo, de os receber no mesmo sítio e da mesma maneira. E então nós que somos do Sul iremos rumar mais a norte, a uma aldeia que quase ninguém conhece, a uma casa que pertence tão só ao pai da minha filha. E não quero usar palavras técnicas como famílias recompostas, novas ou o que quer que seja. Isto é só uma família, uma forma de se ser família, não se consolida por laços de sangue mas por abraços que se precisam para enfrentar a turbulência em mar alto. Esta família anda como o mundo, intensamente assolada por tempestades e maleitas (não apenas eu), pelo que todas as provas de sobrevivência dos afectos são o ingrediente principal da mesa, da festa. É isso que espero. Abraços como combustível de luta.

~CC~


PS. Desejo assim a todos vós que recebam pelo menos neste um abraço genuíno e quente neste Natal e que a vossa luta, seja ela qual for, se alimente com ele.





domingo, 18 de dezembro de 2016

À conta das células felizes que me sobram



Dia 16, sexta feira, iniciei o 3º ciclo da quimioterapia, o último antes da operação. Estes primeiros dias são os mais difíceis, um cansaço que nem sempre é sono, mas custa mais a ausência de quase tudo o que seja desejo, como é possível que um químico possa matar isso. Não é só não ter fome, é rejeitar ver pessoas a comer. Passará, um pouco mais à frente.

Penso que devia chorar pois ainda não o fiz uma única vez, quatro pessoas fizeram-no por mim ou por elas mesmo, já que a relação com algumas delas não justificaria tal. Em vez de chorar, escrevo. Sabemos como a escrita exorciza o mal, uma vez escrito saiu fora da nossa pele e já só dói metade.

Não tomo antidepressivos nem ansiolíticos, aguento-me à conta das células felizes que me sobram, tentando animá-las com a hipótese de cumprir os sonhos e desejos que são ainda fulgurantes dentro de mim. Parece que é o tempo de alinhá-los numa lista mas não sei se terei racionalidade suficiente para tal ordenação. Umas vezes aparece um com muita intensidade para no dia seguinte lembrar-me de outra coisa que sempre quis. Recorrente é apenas a vontade de retomar grande parte da vida, o que estranhamente me mostra que afinal era uma vida feliz. Na semana passada voltei por um breve momento às escolas difíceis que eu apoiava (como amiga crítica ou perita externa, mas confesso não gostar de nenhum desses nomes) e o encontro, verdadeiramente caloroso, evidenciou-me o quanto estou ligada a eles. E quantas vezes antes pensei desistir, não só pelo cansaço de acumular essa tarefa com muitas outras, mas por ter pensado que tinha esgotado o meu poder de ajuda e a minha crença na sua vontade real de vencer dificuldades e mudar coisas. A vida dá voltas e voltas, deve ser por isso que a terra é redonda.

E numa dessas voltas, também eu hei-de voltar, se não igual, um tudo nada semelhante ao que fui.

~CC~





terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Entulho natalício



Vi num pequeno largo três laranjeiras carregadas de laranjas, alinhadas na continuidade umas das outras, formavam um conjunto de verde harmonia. Ao olhá-las senti o aroma da laranja e do limão que acompanham esta quadra, só faltava a canela. Foi a única coisa que me tocou.

Deviam deixar a natureza vestir-se por si própria para festejar o Natal. Ela veste-se sem nós, há laranjas, limões, pinheiros, azevinho, castanheiros, nogueiras, água, neve.

A maior parte dos enfeites de rua são puras aberrações natalícias, como não chamar isso a pacotes de prendas penduradas em candeeiros? Quando há pinheiros naturais nas rotundas, estragam-nos com bolas gigantes brilhantes.  Há ainda umas árvores compostas de arame e luzes, uns cilindros enormes que parecem competir entre si para dizer qual é a cidade com a árvore mais alta, deve ter sido uma empresa a vendê-las a todas as câmaras, pois são praticamente iguais. E que dizer das aldeias de natal que são amontados de casinhas com um pai natal e vária mães natal, elas quase sempre de mini saia? As ruas estão cheias de entulho natalício, um carnaval antes de tempo, um desperdício.

Tudo isto fez com que não coloque em minha casa mais do que um apontamento minimalista que este ano ainda nem sequer encontrei. E isto é escrito por alguém que gosta muito do Natal.

~CC~








sábado, 10 de dezembro de 2016

Esta manhã




Uma semana sem a bomba infusora da quimioterapia. Sem o fio que me atrapalha e condiciona os movimentos, pude tomar um banho completo e enrolar-me numa toalha, isto, que é quase um nada, foi a suprema maravilha.

~CC~

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Ele, Daniel




É verdade, o Daniel também sou eu, tu, ele. Todos somos Daniel.

Afogados pela burocracia que tudo engole como um mostro silencioso, inumana, feroz, insaciável.

Ontem ao telefone para o centro de saúde; eu queria saber...Do outro lado: não é aqui! Telefone pousado com estrondo sem me deixar fazer a pergunta seguinte que me ficou a morrer na garganta. Sou eu quando o médico me interrompe depois de me ter perguntado pelos meus sintomas e continua a falar como se estivesse dentro de mim, somos nós sempre que somos atendidos por gente que nem nos olha e apenas se fixa no computador.

Daniel é todas as pessoas idosas que quando as bilheteiras estão fechadas não conseguem comprar um bilhete de comboio, remetidas para as máquinas que não sabem usar. 

Daniel sou eu a ler o decreto lei sobre incapacidades (desafio-vos), um objecto intragável que classifica ao pormenor cada parte do nosso corpo como se estivéssemos no talho. Daniel são todas as pessoas que não usam caixa directa e esperam ordeiramente na fila da CGD, agora que os balcões desataram a fechar (e pelos vistos ainda fecharão mais).

Ele revolta-se, ele deprimi-se, ele resiste. Não precisava morrer para nos mostrar o absurdo que é este sistema, mas é verdade, muitos morrem quando estão à beira da solução, é a exaustão.

Não percam, além de verem Daniel Blake, vão ver-se a vocês próprios, ao tio, a uma avó, um vizinho.

~CC~






terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Mas que loucura tão boa...



O barco, uma traineira pequenina veio andando devagar, quase de meio do estuário. Aproximou-se mais e mais da fina margem de areia, parecia prestes a encalhar. Lá de dentro um homem acenava, apenas um. Estaria talvez a sentir-se mal, pensei. Gritava qualquer coisa mas não se percebia bem. Preocupei-me com a manobra perigosa, com o pescador que a arriscava. Até que consegui ouvir o que dizia: olha o avô, aqui o avô!! Acenava e acenava mas era com alegria. Consegui então ver melhor, na estreita margem de areia uma mulher com uma criança ao colo, o bebé não conseguia ainda acenar mas a mãe fazia-o por ele. Que loucura trazer o barco até tão perto da margem para o neto o ver. Mas que loucura tão boa. 

~CC~

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Quase feliz



Nunca tinha achado o Outono tão belo. Demorei tempo e tempo a olhar o modo como as folhas vestiam o chão. Demorei tempo a ver as árvores daquela alameda, os seus troncos ocos onde as aves fizeram ninhos. Demorei tempo para espreitar se entre as sebes havia cogumelos. Abri e fechei o guarda chuva muitas vezes, ainda assim sempre contente por poder sentir a rua, o dia, o vento no início da noite.

Encontrei também uma aldeia a que poderia chamar minha. Não chamarei porque não fica no meu caminho, apareceu do nada para manter o meu sonho vivo de um dia ter uma aldeia. Pensei em tudo o que faria nela, com ela. Os amigos riram e comentaram que seria uma revolução. Mas não sou já capaz de tal, faria antes umas ondas pequeninas, qual mar em dia sereno.

Fui capaz de dormir fora, mesmo com a bomba infusora presa à cintura. Senti-me bem, quase feliz. Não sou, contudo, capaz de tirar este quase.

~CC~