quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Muito a custo e sem chegar ao fim

 

A Ruivinha tão nova e singela, de olho azul, talvez por me ver ali a almoçar confortável numa mesa de um, pediu também uma mesa. De salientar que a especialidade da casa eram os hambúrgueres mas havia algumas outras opções, outra que escolhi e estava bem deliciosa. Ela demorou e demorou na escolha, embora a lista não fosse grande e optou pelo mais simples, apenas com queijo. Reparei no seu uso da língua castelhana, em vez da inglesa, que lhe parecia assentar melhor como (sua) língua nativa. Talvez se julgasse em Espanha ou talvez por simpatia tenha querido escolher a língua mais próxima da nossa. Numa eternidade de tempo, talvez uma hora ou mais, ela apenas debicou o seu repasto, tendo deixado rigorosamente metade no prato. Vi-lhe o esforço que parecia quase causar-lhe lágrimas. O empregado esforçou-se por não a incomodar, mas depois de tanto tempo lá lhe perguntou se já tinha terminado, uma vez que ela não tinha usado os talheres e não havia nenhum sinal da sua decisão. Envergonhada, disse que levava aquela metade, que estava bom mas não tinha fome. 

Acabei o meu livro, li-o numa hora*, exactamente o tempo que ela dedicou ao seu esforço de comer uma refeição. Pensei em como eu própria, por motivos de saúde, já tinha tido igual vergonha. No caso dela, a juventude não me parecia poder coincidir com uma doença como a minha, mas de modo igual, o seu desconforto. Apontaria qualquer distúrbio alimentar pois ela sentou-se para fazer uma refeição, simplesmente não conseguiu. Do mesmo modo que outros não conseguem parar de comer ou de beber. 

Tão nova, tão bonita, tão singela. Apeteceu-me abraçá-la. Mas claro que me impedi, não fosse levar um tabefe em espanhol.

~CC~

* o livro é o último do Gabriel Garcia Márquez, bem pequenino.




6 comentários:

  1. A observação do inferno dos outros. Talvez anorexia?
    Um abraço.

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    1. Não arrisco num diagnóstico preciso, apenas sei que havia rejeição alimentar. Não se poupe a um mil folhas:)

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  2. E que tal é o livro? Só não o compro por saber que GGM não o queria publicado e, estando na minha mão, obedeço à voz dos mortos.
    A anorexia é lixada. Vi pais completamente transtornados e garotas que dfinhavam e mentiam com quantos dentes tinham na boca em relação ao tema ingestão de alimentos. Não sei o que as fez dar o salto, mas hoje são mães e pessoas normalíssimas. Porém, se essa menina fez o esforço e entrou num restaurante sozinha e por vontade própria, não sei se seria anoréctica. Podia ter um problema grave para resolver. Ou desgosto de igual quilate. Os anorécticos, em geral, não mandam embrulhar restos de refeições que atiram ao lixo logo depois.
    Boa noite, CC.

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    1. Também não o compraria Bea, ofereceram-me. Muito aquém do que GGM nos habituou, ainda assim algo curioso e interessante. Imagino esta menina a deitar fora o que levou com muita culpabilidade misturada. De resto, o esforço para superar costuma ser constante numa fase em que a pessoa já está em tratamento e se consciencializou, não raro há mesmo "tarefas" como esta que lhes são dadas. Bom fds Bea.

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  3. Sair de casa, estar atento ao que se passa em redor, não ser indiferente aos outros, tentar compreender os porquês, relatar o que se acha interessante, divulgar situações, também é serviço público.

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    1. Não almejo tanto mas gosto de saber que assim o entende. Estar atenta é fundamental, em tudo. Um abraço

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