segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Anoitece no Outono



Com o frio chegou também o silêncio. Enrolo-me nele como numa manta, gosto dele. Encho a cozinha com o cheiro a maçã assada. Mais logo aquecerei a sopa intensamente verde, intensamente laranja ou avermelhada, gosto delas com cor.

Esqueço a dor no braço direito, a enfermeira disse que não podia doer, logo não dói. 

Tenho saudades. Essas sim, sem dor. São só a nostalgia do teu barulho, do teu desalinho. 

Desarrumo devagarinho alguns sonhos. Faço-o muito mais quando anoitece no Outono.

~CC~

domingo, 28 de outubro de 2018

Pela virada


Pela virada no país irmão!

~CC~

E um dia depois sabemos que não se conseguiu!

Talvez por isto...obrigada pela história.

~CC~


sábado, 27 de outubro de 2018

As pessoas assimétricas.


De ano a ano lá tenho que ir à Medicina no Trabalho. Não sei se os outros também vão com a mesma regularidade, parece que sim. Passaram mais de dez anos sem nunca nos chamarem. O médico do ano passado era um velhote surdo, não ouviu praticamente nada do que lhe disse, o que até foi bom. O deste ano era um jovem brasileiro e fez-me perguntas inusitadas para esta consulta de rotina. Mas até lhe achei piada, sobretudo quando disse que já tinha pedido para substituírem todas as cadeiras onde habitualmente nos sentamos pois não eram adequadas, ainda acrescentou que o Siza não perceba nada de mobiliário (sim, a minha escola foi concebida pelo Siza Vieira).

Mas o que gostei mais de saber foi que sou uma pessoa assimétrica. O meu olho direito vê abaixo da média (mesmo com óculos) e o meu ouvido esquerdo não ouve os sons graves, apenas os agudos. Por pouco disse ao médico que isso apenas acrescentava mais algo ao que já sabia sobre mim. Ao calçar sapatos e, sobretudo ao experimentá-los na sapataria, um fica sempre apertado enquanto o outro está bem. Tenho cicatrizes apenas do lado direito e umas ao centro, o lado esquerdo está direitinho. 

Dava-me jeito haver descontos para pessoas assimétricas porque como podem compreender não é fácil viver assim. Mas lá me vou arranjando, viro o ouvido direito para o som quando quero ouvir melhor os graves e uso o olho direito para ver melhor. Também chinelo um pouco com um dos sapatos mas o outro pé ajuda e hei-de encontrar um fato de banho (triquini) com uma abertura para o meu lado esquerdo para poder mostrar um bocadinho de pele sem cicatrizes. Pensei fundar o clube das pessoas assimétricas, querem pertencer?

Mas percam a vossa esperança se se julgam simétricos, por dentro parece que nada o é.

~CC~





quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Sacudo sombras



É dia de voltar.

Devia estar feliz, vou finalmente retirar o cateter da quimioterapia. Coloquei-o há mais de dois anos, foi a primeira de uma série de intervenções, ainda num hospital geral, fiquei num quarto muito pequeno com uma velhota com demência que a todo o momento me pedia para a levar para casa, ameaçava fugir. O bloco era também muito pequeno e ouvi os médicos a discutir antes de adormecer.

Desta vez será no meu sítio do costume, nada de assustador, em princípio uma pequena cirurgia.

Mas é assim que reparo nas marcas que não são as que tenho no corpo. É a rejeição do lugar, da bata, dos chinelos, das luzes, do bloco, da espera, do jejum das seis horas. Tento moderar o sentimento, o receio, extrair da memória dias infelizes, relembrar o quanto o optimismo foi o meu farol, pedir-lhe que não me abandone. Poderei usar decotes, ser menos cuidadosa com a escolha dos fatos de banho. Sacudo sombras.

~CC~


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Foi a isto que chegámos



Na mesa só havia carnes grelhadas e peixe grelhado. Mas como o restaurante era do tipo popular, brilhavam no centro duas travessas de batatas fritas. Ninguém lhes tocou. Depois levaram os pratos e houve aquele interregno até às sobremesas. E a senhora deixou ficar as travessas com as batatas fritas. E foi naquele momento entre uma coisa e outra, distraídos, que uma ali, outra acolá, nas pinças dos dedos, as batatas foram desaparecendo. Até que a senhora mais magra da mesa (não, não era eu, já não) comentou horrorizada: mas vocês comem batatas fritas!!!! E foi um limpar de dedos nos guardanapos, que tinha sido só uma, quanto muito duas, e que tão poucas nem podiam fazer mal, que nunca comiam, passavam "meses" sem. E eu ainda vejo a expressão de horror nos olhos dela, nem quero imaginar como seria se fossem  antes passarinhos fritos. Foi a isto que chegámos.

~CC~