quinta-feira, 30 de novembro de 2017

No bairro



As miúdas, ainda hoje penso o que foi que me distanciou delas logo nos primeiros momentos. Acho que foi o facto de não olharem para mim nos olhos. Das malas colocadas à frente das carteiras para esconderem os telemóveis. Dos rostos tristes que a maioria tinha. Pensava amiúde que eram tão jovens e já estavam tão mortas por dentro. Não imaginam como é quando temos uma turma assim. É um desalento acordar para lhes dar aulas logo às 9 da manhã. Fiz algumas piruetas, as possíveis, para lhes despertar o interesse. Nada com muito êxito, embora de quando em quando as sentisse mais perto, um pouco mais interessadas.

Depois levei-as para um bairro histórico muito pobre aqui na cidade. Lembram-se como era o bairro alto nos anos 80? Era um lugar com gente pobre, bêbados, prostitutas, embarcados, pequenos comerciantes, donas de casa, emigrantes. Pareceram-me ainda miúdas, um nadinha assustadas, uma agarrou-me o braço e pediu para ir com elas, pois iam falar com um adulto homem e tinham medo. Disse-lhes que as pessoas não moram nos livros técnicos que falam de como elas são e que elas  ainda por cima detestavam ler, estavam ali e eram de carne e osso, tinham que aprender a ouvi-las. Escutar é uma competência profissional, uma das maiores. O choque com a realidade fez-se com amortecedor, mas aconteceu. Houve pequenas lágrimas, bocas que se abriram de espanto, confissões que vieram veladas.  Até para mim que às vezes acho que já vi tudo quanto se chama miséria. Mas não vi, nunca se vê tudo, cada história é singular, mesmo que se assemelhem no desespero que nos provocam.

As miúdas mudaram um bocadinho, já olham para mim quando falam comigo. Às vezes chegam-nos estas coisas pequenas.

~CC~






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