quinta-feira, 10 de junho de 2021

País

 

As memórias antes dos cinco são ténues.

Mas estou certa que entre os seis e os dez saí muitas vezes do carro para ficar de pé enquanto o meu pai fazia continência e os adultos cantavam o hino, eu sabia meia dúzia de frases ensaiadas à força na escola e não tinha nenhum gosto em cantá-las. Era um ritual estranho que a qualquer momento podia acontecer ou então eu não percebia as razões pelas quais acontecia, havia invariavelmente uma bandeira a subir num mastro e um nome de um sítio chamado Portugal ao qual diziam que também pertencíamos, ou pelo menos eram de lá os avós que não conhecia. 

Mais tarde, muito mais tarde percebi que para o meu pai seria apenas o sítio onde viria morrer, regressou como os elefantes regressam depois de uma longa jornada, quando já não têm força para caminhar. Com ele aprendi a amar outros continentes e países que não este, já velho ainda o desdenhava, caracterizando-o como um lugar em que se todas as mesas num café estiverem ocupadas, ninguém convida alguém que está a beber ou a comer em pé para se sentar na sua mesa. 

Nem no leite materno (que não bebi) nem nas palavras paternas que bebi maravilhada até à adolescência encontrei o caminho para gostar deste país, tive que fazer um trilho longo, solitário, com muitas curvas e curvinhas. Só depois de voltar á terra em que nasci, já nos quarenta, é que percebi que afinal o nosso lugar não é forçosamente aquele em que nascemos e vivemos a infância, por mais que isso nos deixe marcas. Hoje sinto que pertenço aqui, que é bom ter um país para pertencer.

~CC~

2 comentários:

  1. Parabéns, CC. Foi feito que muitos não conseguiram e ainda hoje se sentem órfãos da terra mãe que os viu crescer e não era esta. São os desenraizados, vivem na saudade dos bens perdidos que se tornam mais e maiores bens à medida que o tempo passa.
    É natural que o Hino Nacional nada lhe dissesse se ninguém lho explicou primeiro e a sua identidade estava noutro lugar. Mas não sei se é verdade que, num café cheio e de mesas todas ocupadas, ninguém puxa quem come de pé. Talvez pensem que prefere assim, ou, se acaso sucede, nem reparem no pormenor. E isto não é defeito exclusivo de portugueses, é universal, acontece em qualquer lugar. Ainda que, nos tempos de seu pai o povo nem pusesse pé nos cafés. Mas ele teria as suas razões.

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  2. Ele sempre foi um homem de cafés, lisboeta de gema. E dava conta da sua experiência de homem de muitos continentes, viveu na Índia, em Angola e no Brasil, povos que dizia mais expansivos e generosos. Para ele Portugal mantinha muitos dos traços do Estado Novo, um certo fechamento e muita desconfiança.
    ~CC~

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