segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Fotossíntese

 

Às vezes doem-me bocados de mim, uma veia  que fica a latejar durante dias, um ombro que parece querer sair do corpo, uma pontada no lado direito que alterna com o lado esquerdo por baixo das costelas. Os ouvidos não suportam gotas de água nem ruído excessivo, tornaram-se mais sensíveis, assim como os olhos que mal o sol desparece teimam em ficar com sombras.

Luto contra o meu corpo para não sucumbir às maleitas que tentam travar-me uma vida em pleno. Mas às vezes acho que não é só com o corpo que travo a maior luta mas também com as dores interiores, mágoas que ficaram e que sobraram das relações, sejam de amor ou amizade, todas elas, com destaque para as mais recentes. Não gosto quando essas mágoas se aprofundam e se tornam rancor, uma espécie de ódio pequenino que é um veneno lento, conheço-lhe o sabor com que me amarga a boca.

Quando me apercebo que o deve-haver está a ganhar espaço, penso em cortar com ele radicalmente, ligando, por exemplo, a um amigo/a que quase nunca liga ou em marcar um café com outro/a que nunca manifestou saudades minhas, não me ligou a saber como tinha sido o resultado de um exame médico ou nada disse no longo Inverno. Ir comentar a um blogue que nunca me visitou ou não visita ninguém. Levar uma prenda a quem não as dá, mesmo que seja uma pequena graça. Creio que isto assenta, talvez na ideia falsa de que a mágoa interior não tem a força do sismo que tudo abala mas a persistência do pequeno sismo que insistentemente vai abalando e destruindo. Nem sequer é generosidade, muito menos o voltar da outra face a quem nos dá a bofetada. É em prol de mim própria. Trata-se de tirar cinco minutos para ser árvore recebendo o sol e fazendo a fotossíntese.

~CC~


4 comentários:

  1. Que contributo lhe posso eu dar CC se não sou médico nem pastor de almas. E no entanto, como gostaria. Gostaria por que, sem a conhecer, tenho uma imagem toda ela azul, de si.
    As relações são ralações. De amor, de amizade. É difícil entre o deve e o haver da entrega haver equilíbrio, que é sempre negativo para o que se deu mais. Contudo, nesse défice, repito: é sempre mais feliz quem mais amou, quem mais foi amigo.
    Gostei de ler esta sua página íntima e deixo-lhe em despedida um texto de Pessoa para a CC refletir:

    "Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro. Mas cada um via uma coisa diferente, e cada um portanto, tinha razão.
    Fiquei confuso desta dupla existência da verdade."

    PS: e nessa sua fotossíntese o que importa mais: a presença de A, a transformação de B em C ou a libertação de D?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Azul Oceano, Verde natureza...e amarelo sol. Tudo isso, às vezes passam sombras e as cores desbotam, empalidecem, quase morrem...mas luto pelo seu fulgor. Obrigada Joaquim.

      Eliminar
  2. Seja lá o que for, acho muito meritório e nunca eu me lembraria de actividades como dar prendas a quem não as dá. Nem sequer penso dessa forma. Dou a quem gosto e a quem julgo que as precisa, por ter necessidade, por solidão, por ser um mimo que a mim me apetece e, à outra pessoa, imagino que caia bem. As pequenas alegrias dos outros, se provocadas por nós, sabem sempre bem. Não tenho rancores e não perco tempo a aprofundar sentimentos e emoções nocivos, já me basta orientar os que a vida dá sem a gente querer e os provocados por outras pessoas, voluntaria ou involuntariamente.
    Desconheço ódios salutares.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Borges dizia qualquer coisa do género "se odeias é porque ainda amas", parece estranho mas ele queria provavelmente falar da força dos dois sentimentos e de que se odiamos permanecemos ligados a essa pessoa/objecto ou coisa. Já Edgar Morin atribui a sua longevidade ao facto de não ter qualquer rancor. Não sou naturalmente isenta deles, mas trabalho para os expulsar. A injustiça e a ingratidão magoam-me muito, mas até dessas mágoas tento livrar-me se elas se relacionam em concreto com A ou B. Um abracinho.
      ~CC~

      Eliminar

Passagens