terça-feira, 28 de janeiro de 2025

É sublime

 

Ainda estou aqui

Creio que nunca tinha visto uma câmara captar tão bem a felicidade e o amor conjugal, aquele que se situa entre o pequeno almoço e o deitar, se enrola nos risos das crianças, desdobra-se pela praia, vive também com os amigos e se demora na tarde lenta de um Domingo, num jogo a dois. Uma família em tudo o que ela representa dos laços que são necessários para iluminar a vida com um sol doce. 

Muito depois do filme ter acabado viviam dentro de mim as imagens daquelas crianças, tão próximas das crianças que nós também fomos em Luanda, inocentes em tudo, imunes a tudo.

O que interrompe tal felicidade é brutal, intenso e doloroso. Um pai intensamente amado retirado à força de um dia para o outro. Eis o caroço da Ditadura Militar, a capacidade de levar pessoas das suas casas sem ter que indicar qualquer culpa ou crime, interrogando-as, torturando-as, matando-as. Pior, não sendo capaz de assumir essa morte, deixando um corpo por enterrar, a família com um luto por fazer. Uma ausência que mata e corrói, que deixa lágrimas no lugar daqueles risos tão belos. A luta daquela mulher é soberba porque é também a da sua transformação, embora venha aliada a tanta dor.

Um dos filmes que ficará para sempre em mim.

E eu que vi uma vida interrompida, perdendo aquela casa da infância, tantas coisas parecidas naquela largueza, no chão, na inocência, até as nossas lágrimas de crianças e sobretudo dos meus irmãos adolescentes, também nós deixando para trás um pai (que eu muito amava àquela data), eu soube que ao menos a minha dor significou a liberdade de um povo e  isso foi um bálsamo que mais tarde actuou como um penso sobre a ferida. Ali não, nada houve de sentido ou significado, a ferida está aberta pois os responsáveis nem sequer foram julgados. 

Este filme, neste português doce de além mar, é sublime.

~CC~


5 comentários:

  1. E contudo resisto a vê-lo. Quanto mais sei que é verdade, mais resisto. A resistência vem daí, de ser verdadeiro, como Auschwitz o é ainda hoje na memória de quem visita esse campo de desumanidade. Hei-de vê-lo.
    Pelo que li e ouvi de várias pessoas, é um bom filme muito bem interpretado e provavelmente com um bom realizador. Gosto de Fernanda Torres desde que surgiu menina e moça nas novelas brasileiras.
    E o seu texto, CC, está em sintonia com o filme. Nem de outro modo seria, não é?

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    1. Vá sem medo Bea, o filme não escancara a tortura, aliás cerca de metade do filme é pura felicidade e isso é lindo de ver. Eu só chorei depois de sair, mas a minha companhia do lado (que mal conhecia, isto é, sabia quem era porque trabalha no mesmo sitio que eu) soluçou muitas vezes. Mas havia outros a comer pipocas:) (não foi no meu querido cinema).

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  2. Não gostei do filme. Enquanto filme. As vivências lá dentro, é outra coisa.

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    1. Gostei das duas coisas. Do ponto de vista da realização achei que o filme dentro do filme, a inclusão do filme doméstico em super 8, mostrando como os próprios se filmavam e fotografavam é muito interessante. Tem muita poesia Diogo, mesmo que a narrativa seja Linear, no sentido de anteciparmos com facilidade o fim.

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  3. Estou curiosa, mas só vou poder vê-lo quando chegar à televisão ou às plataformas de "streaming".

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